Continuando com o texto de Jorge Coli:
Há uma outra possível separação. Ela ocorre não entre o erudito e o homem culto, mas entre o homem culto e o intelectual. É bem possível que o traço diferenciador mais forte seja, de um lado, o prazer, de outro, o dever.
O homem da cultura é um hedonista. Ele, primeiro, aprendeu a saborear, a degustar numa espessura concreta, aquilo que cada obra, com a intensidade que pode, lhe oferece. Seus critérios, por isso mesmo, são mais intuitivos que objetivos, e suas categorias têm fronteiras permeáveis.
O intelectual instaura processos de compreensão, desenvolve raciocínios, necessita menos sentir que articular e explicitar. Sua embriaguez chega ao apogeu quando vence as etapas de uma argumentação e constrói um arcabouço de relações nítidas.
No primeiro caso, há algo de empírico e de sensual; no segundo, muito de abstrato e de rarefeito. As meias de Hitler, para um, têm concretude, textura, cor. Elas completam uma cena dramática. O outro pode tomá-las como exemplo, ao construir uma análise socioeconômica sobre a moda masculina na Alemanha daqueles tempos.
Sem dúvida nenhuma, eu me assumo muito mais como “culto” do que como “intelectual”, quando me relaciono com as artes e com os bens culturais (especialmente o cinema). O prazer ou a dor da experiência de vida proporcionada por um filme é algo incomparável e dificilmente discutível; um filme vivido – como qualquer outra coisa vivida – torna-se vigorosamente arredio quando se tenta processá-lo racionalmente, explicá-lo em termos lingüísticos buscando um entendimento lógico.
É por isso que eu tenho severas críticas à semiologia (ou semiótica) fílmica, ideologia teórica e método de análise muito em voga no meio acadêmico há pelo menos trinta anos. Reconheço a contribuição única dessa ciência, mas dói-me no coração ler uma análise semiótica de Intolerância (obra prima de D. W. Griffith), no importante livro A Estética do Filme, organizado por Jacques Aumont. Será que a Arte é tão reduzível assim à Ciência? É natural que muito do poder de um filme pode ser explicado “cientificamente”, mas radicalizar, exagerar e generalizar esse pensamento destrói qualquer coisa de mágica e humana que pode haver na obra artística, que acaba por virar uma máquina, cujo processo de funcionamento é destrinchado pelos semióticos.
Podem me achar ingênuo, mas acredito que a Arte transcende essas coisas todas. Não que ela não possa ser uma máquina, mas a verdade é que há sempre um fantasma na máquina. A expressão deus ex machina é necessária e pertinente para compreendermos aquilo que na arte escapa às garras da semiologia e de outras análises formalistas e racionais.
Nenhum “caça-fantasma” pode aprisionar, esconder ou destruir a magia do cinema como arte.
É por isso que, em teoria e análise cinematográfica, prefiro muito mais a fenomenologia de André Bazin e outros. Melhor ainda, fico com Jean Mitry, que une sabiamente o pensamento fenomenológico ao semiótico-estruturalista – destacando suas contribuições específicas e podando os exageros presentes em ambos.
Para encerrarmos com Jorge Coli:
O híbrido culto-intelectual, se existe, é raríssimo. Há casos em que o homem culto quer se tornar intelectual: os resultados nem sempre são convincentes. O intelectual, por sua vez, é mais seguro em seu modo de ser; para ele a cultura é apenas um meio, não um universo, que não lhe passa pela cabeça habitar, porque ele não saberia como. Seu conhecimento é cerebral (grifo meu): quantas teses universitárias sobre objetos da cultura, mesmo inteligentes, iluminadoras, se completam sem a experiência pessoal da cultura.
São estudos que mergulham num tema, ignorando o que está à volta dele ou explorando os outros setores de maneira “instrumental”, para algum infeliz capítulo introdutório de “contextualização”, como se diz.
A cultura é uma prática, no sentido de um hábito, de um costume, de uma freqüentação; o trabalho intelectual é um exercício. Há um clima bem aventurado de divãs e almofadas no Oriente, num caso; há o rigor exato do trapézio, no outro. Um pressupõe o ócio; o outro pressupõe o trabalho.
Assumo-me, já que é assim, como um vagabundo, no que se refere ao contato com as artes (incluindo de maneira especial, nem preciso dizer, o cinema). Jorge Coli destaca, nesses três últimos parágrafos, a cultura como experiência de vida, necessária e enriquecedora. Por isso sou fenomenológico de carteirinha.
O trabalho intelectual, abstrato, científico e racional também exerce sua sedução em mim. É preciso, no fundo e a bem da verdade, não esquecermos o valor e a contribuição particulares do “intelectual”. Mas, quando este exagera, sai de baixo... Essa é a chatice do meio acadêmico, infestado dessa atmosfera intelectualóide. Por mais que o lado científico também me agrade, tenho a certeza de que seria terrível se eu começasse a trabalhar com cinema (como professor, pesquisador ou crítico), apesar da minha vontade. Chegaria um ponto em que eu ficaria extremamente “empapuçado” de qualquer coisa que estivesse ainda que indiretamente relacionada ao cinema. Talvez algumas férias resolvessem, talvez não. Talvez o encanto se perderia para sempre, assim como o poder da ingenuidade inicial.
É por isso que a criança é a criatura mais sábia e artística, uma vez que ela vê todas as coisas com o frescor da primeira vez, e tem uma disposição invejável para vivenciá-las e compreendê-las, em sua infinita curiosidade.
Há uma outra possível separação. Ela ocorre não entre o erudito e o homem culto, mas entre o homem culto e o intelectual. É bem possível que o traço diferenciador mais forte seja, de um lado, o prazer, de outro, o dever.
O homem da cultura é um hedonista. Ele, primeiro, aprendeu a saborear, a degustar numa espessura concreta, aquilo que cada obra, com a intensidade que pode, lhe oferece. Seus critérios, por isso mesmo, são mais intuitivos que objetivos, e suas categorias têm fronteiras permeáveis.
O intelectual instaura processos de compreensão, desenvolve raciocínios, necessita menos sentir que articular e explicitar. Sua embriaguez chega ao apogeu quando vence as etapas de uma argumentação e constrói um arcabouço de relações nítidas.
No primeiro caso, há algo de empírico e de sensual; no segundo, muito de abstrato e de rarefeito. As meias de Hitler, para um, têm concretude, textura, cor. Elas completam uma cena dramática. O outro pode tomá-las como exemplo, ao construir uma análise socioeconômica sobre a moda masculina na Alemanha daqueles tempos.
Sem dúvida nenhuma, eu me assumo muito mais como “culto” do que como “intelectual”, quando me relaciono com as artes e com os bens culturais (especialmente o cinema). O prazer ou a dor da experiência de vida proporcionada por um filme é algo incomparável e dificilmente discutível; um filme vivido – como qualquer outra coisa vivida – torna-se vigorosamente arredio quando se tenta processá-lo racionalmente, explicá-lo em termos lingüísticos buscando um entendimento lógico.
É por isso que eu tenho severas críticas à semiologia (ou semiótica) fílmica, ideologia teórica e método de análise muito em voga no meio acadêmico há pelo menos trinta anos. Reconheço a contribuição única dessa ciência, mas dói-me no coração ler uma análise semiótica de Intolerância (obra prima de D. W. Griffith), no importante livro A Estética do Filme, organizado por Jacques Aumont. Será que a Arte é tão reduzível assim à Ciência? É natural que muito do poder de um filme pode ser explicado “cientificamente”, mas radicalizar, exagerar e generalizar esse pensamento destrói qualquer coisa de mágica e humana que pode haver na obra artística, que acaba por virar uma máquina, cujo processo de funcionamento é destrinchado pelos semióticos.
Podem me achar ingênuo, mas acredito que a Arte transcende essas coisas todas. Não que ela não possa ser uma máquina, mas a verdade é que há sempre um fantasma na máquina. A expressão deus ex machina é necessária e pertinente para compreendermos aquilo que na arte escapa às garras da semiologia e de outras análises formalistas e racionais.
Nenhum “caça-fantasma” pode aprisionar, esconder ou destruir a magia do cinema como arte.
É por isso que, em teoria e análise cinematográfica, prefiro muito mais a fenomenologia de André Bazin e outros. Melhor ainda, fico com Jean Mitry, que une sabiamente o pensamento fenomenológico ao semiótico-estruturalista – destacando suas contribuições específicas e podando os exageros presentes em ambos.
Para encerrarmos com Jorge Coli:
O híbrido culto-intelectual, se existe, é raríssimo. Há casos em que o homem culto quer se tornar intelectual: os resultados nem sempre são convincentes. O intelectual, por sua vez, é mais seguro em seu modo de ser; para ele a cultura é apenas um meio, não um universo, que não lhe passa pela cabeça habitar, porque ele não saberia como. Seu conhecimento é cerebral (grifo meu): quantas teses universitárias sobre objetos da cultura, mesmo inteligentes, iluminadoras, se completam sem a experiência pessoal da cultura.
São estudos que mergulham num tema, ignorando o que está à volta dele ou explorando os outros setores de maneira “instrumental”, para algum infeliz capítulo introdutório de “contextualização”, como se diz.
A cultura é uma prática, no sentido de um hábito, de um costume, de uma freqüentação; o trabalho intelectual é um exercício. Há um clima bem aventurado de divãs e almofadas no Oriente, num caso; há o rigor exato do trapézio, no outro. Um pressupõe o ócio; o outro pressupõe o trabalho.
Assumo-me, já que é assim, como um vagabundo, no que se refere ao contato com as artes (incluindo de maneira especial, nem preciso dizer, o cinema). Jorge Coli destaca, nesses três últimos parágrafos, a cultura como experiência de vida, necessária e enriquecedora. Por isso sou fenomenológico de carteirinha.
O trabalho intelectual, abstrato, científico e racional também exerce sua sedução em mim. É preciso, no fundo e a bem da verdade, não esquecermos o valor e a contribuição particulares do “intelectual”. Mas, quando este exagera, sai de baixo... Essa é a chatice do meio acadêmico, infestado dessa atmosfera intelectualóide. Por mais que o lado científico também me agrade, tenho a certeza de que seria terrível se eu começasse a trabalhar com cinema (como professor, pesquisador ou crítico), apesar da minha vontade. Chegaria um ponto em que eu ficaria extremamente “empapuçado” de qualquer coisa que estivesse ainda que indiretamente relacionada ao cinema. Talvez algumas férias resolvessem, talvez não. Talvez o encanto se perderia para sempre, assim como o poder da ingenuidade inicial.
É por isso que a criança é a criatura mais sábia e artística, uma vez que ela vê todas as coisas com o frescor da primeira vez, e tem uma disposição invejável para vivenciá-las e compreendê-las, em sua infinita curiosidade.
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