quinta-feira, outubro 25, 2007

Mutum


Eu já discuti neste blog o como é difícil fazer filmes baseados em livros de João Guimarães Rosa. Assim que tive notícias da mais nova tentativa, minhas esperanças se renovaram. Foi com esse espírito que fui ver Mutum (Brasil, 2007, dir.: Sandra Kogut), em exibição na 31ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Antes de mais nada, folguei em saber que a fila enorme era para ver “o Tarantino”. A sala ao lado também estava cheia, mas sem filas. Entrei nela e aguardei. Mutum, debute ficcional da diretora carioca Sandra Kogut – que antes só tinha realizado documentários e vídeo-arte – é inspirado na novela Miguilim, que, junto com Manuelzão, faz parte do livro Campo Geral, de Guimarães Rosa. A história é a do final de infância de um menino (Miguilim no original, Tiago no filme) que vive naquele pedaço do sertão sem marcações muito específicas de espaço ou de tempo, naquele sertão mítico que só o autor de Grande Sertão: Veredas ousou criar. As experiências subjetivas e objetivas por que o menino passa, sejam elas dolorosas ou alegres, caracterizam muito poeticamente o processo de crescimento e amadurecimento, no início de uma vida cujos limites ainda são completamente desconhecidos. Dentre essas vivências, destacam-se o relacionamento com o irmão adorado (Dito ali, Felipe aqui) e com o pai brutal.

Pois bem, vamos ao que interessa. Sandra Kogut soube manter o tom e o caráter de parábola da narrativa original. Ela também filmou com muita poesia a paisagem do sertão de Mutum e as pessoas que ali vivem, intimamente ligadas àquele espaço. Reconhece-se algo (mas não tudo, logicamente) da poesia e da sensibilidade da linguagem de Guimarães Rosa na câmera da cineasta. Mas o que mais vale a pena destacar neste filme é a simplicidade e o despojamento do discurso cinematográfico, perfeitamente adequado ao universo retratado. Muito da qualidade de Mutum – seja do filme em si, seja pensando-se na sua relação com a obra original – vem de escolhas muito raras no nosso Cinema mas bastante acertadas quando feitas e trabalhadas com cuidado. Que escolhas são essas? Podemos citar: a escolha de atores não-profissionais e do ótimo e sábio trabalho que foi feito com eles, fazendo-os manterem nos diálogos a linguagem natural, espontânea e coloquial do sertanejo de Minas Gerais – os atores, especialmente as crianças, foram escolhidos na própria região em que foi feito o filme. Isso traz uma coerência e uma arte incríveis. Algumas falas foram tiradas do livro quase que literalmente, mas sem soarem de modo algum artificiais ou “literárias”. Isso apenas mostra a genialidade de Guimarães Rosa (que foi um dos escritores que mais soube incorporar a língua popular ao discurso literário) e a sabedoria dos roteiristas e dos preparadores de atores do filme.

O engraçado é que a variante lingüística falada no filme é tão específica que não seria tão absurdo se Mutum fosse legendado em “português culto urbano”. O efeito negativo de tal trabalho de linguagem é que ela fica ainda mais difícil de entender em alguns momentos por causa do péssimo som do filme – muito abafado (a sonoridade das nossas produções ainda tem muito o que melhorar). Eu acompanhei a história facilmente, pois já tinha lido a novela. Mas quem não estiver preparado poderá encontrar dificuldades – embora parecesse que muitas pessoas na sala também já conheciam a obra de Rosa, haja vista a comoção forte e geral na cena em que Felipe / Dito “apenas” machuca o pé. Enfim, Mutum não tem aquela afetação, aquele pedantismo discursivo de alguns atores profissionais, particularmente os vindos do teatro ou da TV. O ator mais profissional e conhecido do filme é o promissor João Miguel (como o pai de Tiago), que é justamente um modelo para a atuação natural que o cinema pede, tendo já ganhado prêmios por sua participação em Cinema, Aspirinas e Urubus (2005).

Além do trabalho simples e espontâneo dos atores, a outra feliz escolha do filme foi a ausência total de música na trilha sonora. Em nenhum plano, o conteúdo dramático ou emocional é assinalado por aquela melodia chata. Todos os sons são diegéticos, ou seja, da própria cena. A verdadeira música do filme é o som da “fala gostosa do povo” (no dizer do poeta Manuel Bandeira) e o som da natureza do sertão: o vento nas árvores, a chuva, os passarinhos... De novo, a produção ganha em simplicidade e numa poesia coerentes tanto com o que é mostrado na tela quanto com o que foi escrito por Guimarães Rosa. A melhor qualidade mesmo de Mutum é essa simplicidade e naturalidade poéticas. Sandra Kogut mostra aquele povo sem o preconceito de uma visão apegada ao aspecto exótico, pitoresco ou grotesco que infectou muito a nossa Literatura antes de Guimarães Rosa e que continua infectando o nosso Cinema até hoje. Não há crítica ou conteúdo social em Mutum / Miguilim. Por que é que, no Brasil, toda obra que fale do “povo” tem que ter aparência de tese sociológica? A obra de Kogut / Rosa é uma parábola de cunho universal. O Cinema brasileiro respiraria muito melhor, com um fôlego mais profundo e longo, se se fizessem mais filmes universais.

Entretanto, o conteúdo universal não pode cair no pedantismo de um discurso filosófico que se debruça sobre um fato como uma jibóia abraça sua presa. Na obra de Rosa, o universal nasce do particular, da maneira a mais natural e espontânea possível. Guimarães Rosa incorpora a linguagem e o pensamento do povo sertanejo, misturando ao seu próprio pensamento, de um modo que não aparece aquela visão hierárquica, elitista, do escritor sobre o seu assunto, que é precisamente o que contamina muitos livros e filmes já cometidos neste país. Um problema antigo para a nossa Literatura e contemporâneo para o nosso Cinema é o da dissociação explícita entre o discurso narrativo do autor e o universo cultural representado, predominando uma visão “de cima para baixo” do escritor ou do cineasta sobre o seu objeto temático (que, no caso, envolve o universo das classes mais baixas). Sandra Kogut soube muito bem manter no discurso do filme a simplicidade, a naturalidade e a espontaneidade do olhar daquele povo, aliados ao “matutar” filosófico que pertence igualmente àquele povo (incorporado também por Guimarães Rosa). Esse é um sinal de respeito, de uma verdadeira sabedoria antropológica. Sem contar que, artisticamente, o filme ganha muito mais coerência. Aquele povo no filme não se enxerga a si mesmo como “povo”, como “classe popular”, mas como pessoas que vivem alegrias e tristezas de pessoas, daí o caráter universal.

Simplicidade, sensibilidade, coerência e universalismo. Lições para o Cinema tupiniquim.


domingo, outubro 21, 2007

O Caminho do Diabo


O Cinema pode não ser necessariamente um “campo de batalha”, como quis Samuel Fuller, mas alguns filmes possuem tanta coragem que merecem medalhas de honra. Um deles é O Caminho do Diabo (“The Devil’s Doorway”, EUA, 1950), dirigido por Anthony Mann, um dos mestres do faroeste norte-americano, que também se notabilizou em outros gêneros, sendo responsável pelos sucessos épicos de El Cid (1961) e de A Queda do Império Romano (1964). Mann também começou a filmar Spartacus (1960), mas desentendimentos com o estúdio fizeram a bola ser passada para Stanley Kubrick. O Caminho do Diabo é quase o primeiro (tirando Broken Arrow, dirigido por Delmer Daves no mesmo ano) a colocar o índio como indivíduo consciente e vítima do processo de ocupação do oeste, e não mais como um selvagem ingênuo ou cruel. Por isso, o estúdio (MGM) relutou em lançá-lo, mas quando o fez, o filme mostrou a que veio, causando muito impacto nos espectadores em geral e polêmica em críticas mais negativas.

O enredo trata de Lance Poole (Robert Taylor), um índio shoshone que retorna à sua terra e ao seu povo no estado do Wyoming após ter lutado como alto oficial (comandando homens brancos) pelos exércitos da União, na Guerra Civil. Porém, como é comum no cinema norte-americano, o filho pródigo que à casa torna não encontrará as coisas na mesma situação em que as deixou, e sim muito piores, dificultando muito sua adaptação a elas. No caso, o mesmo governo que Lance defendeu na guerra está investindo na ocupação de terras livres, incentivando com muitas facilidades os pioneiros que tomarem conta delas. Entretanto, algumas dessas terras “livres” pertencem à família de Lance Poole há incontáveis gerações. E aí, como é que fica? O resultado final facilmente já se adivinha.

O bravo e pobre Poole passa a sofrer um tratamento muito pior do que aquele que sempre fora dispensado ao seu pai (o líder da tribo). Na cidade e na região em redor, ele só encontra segregação, em todas as formas. Mas enfrenta os bullies (os valentões racistas) de cabeça e punho erguidos – afinal, ele é um soldado, tendo recebido até mesmo a medalha de honra do congresso (a maior honraria concedida até hoje pelo governo norte-americano). Quanto à questão territorial, Lance Poole, como bom cidadão civilizado, busca primeiramente consolidar e formalizar a posse de suas terras pelos meios legais; para tanto, procura um advogado, que descobre ser uma mulher. As minorias então se unem: Poole e a jovem advogada O. Masters (Paula Raymond) tentam de todas as maneiras civilizadas ajudar a tribo dos shoshone. Sem resultado.

Pressionado pelos fazendeiros e por um advogado racista (Louis Calhern), Lance Poole não retrocede e decide entocar-se em sua propriedade, defendendo-a com toda a força bruta que for necessária. A situação piora quando a tribo recebe um grupo de refugiados fugidios de uma “reserva” indígena, que ficaram sabendo que Poole estava conseguindo manter sua larga propriedade nas mãos. É preciso entender e levar em consideração aqui a forte ligação afetiva e cultural entre o índio e sua terra natal. O deslocamento para “reservas” é simplesmente inaceitável. Uma outra guerra então começa. Uma outra guerra trágica de “secessão”, muito mais pertinente e traumática do que a primeira.

A jovem advogada, preocupada com o massacre verdadeiramente selvagem que será perpetuado pelos fazendeiros que querem fazer “justiça” com as próprias mãos, decide contatar a cavalaria federal, para mediar e controlar o conflito. As tropas chegam; mesmo assim, Lance Poole não se rende. A batalha dura até que o líder (último homem de pé), levando um tiro mortal, faz um acordo com a cavalaria, de que as mulheres e crianças da tribo sejam conduzidas em segurança até a reserva. A cena final é digna dos melhores westerns: Lance Poole, vestindo o casaco de sua farda militar, é saudado em continência pelo comandante da cavalaria, que pergunta sobre os outros homens da tribo. Poole responde: “Morremos todos”. E cai.

Alguém me diga que filme contemporâneo, de conteúdo político polêmico, é realizado de modo tão contundente e ao mesmo tempo tão sutil? A arte de Anthony Mann é insuperável. A fotografia é composta de várias “pinturas”: os enquadramentos são compostos num delicado jogo de forças entre os elementos, procurando colocar o máximo possível na tela, da maneira a mais expressiva possível, trabalhando muito com a profundidade de campo, com os maravilhosos contrastes entre a luz e a sombra no preto-e-branco, com a bela e panorâmica paisagem montanhesa do Wyoming, filmada em locação (aqui sentimos a falta da cor). O domínio da linguagem e da arte cinematográfica é exemplar, temos aqui o melhor do cinema clássico de Hollywood.

O Caminho do Diabo foi o primeiro de muitos faroestes realizados por Anthony Mann, dos quais também se destacam Winchester 73 (idem, 1950), E o Sangue Semeou a Terra (“Bend of the River”, 1952), O Preço de um Homem (“The Naked Spur, 1952) e O Homem dos Olhos Frios (“The Tin Star”, 1957), estrelados por grandes atores como James Stewart, Gary Cooper e Henry Fonda.


quinta-feira, outubro 18, 2007

El Topo


El Topo (“A Toupeira”) é um famoso e típico filme cult (famoso no underground, é lógico). Dirigida e estrelada pelo mexicano Alejandro Jodorowsky em 1970, a película, para lá de experimental, enquadra-se de modo exemplar dentro dos padrões da arte de vanguarda, juntando diversos registros culturais na expressão de uma mensagem muito bem definida. A mistura entre budismo, catolicismo, surrealismo iconoclasta e contra-cultura típica dos anos 60 dá o caldo ao filme. O bizarro assoma de diversas maneiras, seja na violência explícita, no apelo sexual-escatológico, no uso de atores anões e deficientes físicos (numa chave bem circense), no insólito dos acontecimentos e dos cenários. Também chama a atenção o aspecto performático-teatral dos grupos de atores em algumas cenas, fazendo lembrar alguma peça de Zé Celso.

O enredo, basicamente (se é que se pode fazer uma sinopse), gira em torno da peregrinação mística do pistoleiro El Topo – uma mistura de Clint Eastwood e Jim Morrison – pelas paragens áridas do velho oeste mexicano. O atirador, todo vestido de preto, é acompanhado nas diversas etapas da sua jornada de iluminação interior sucessivamente pelo filho de sete anos, por uma mulher misteriosa (Mara), e por uma anã – envolvendo-se amorosamente com as duas figuras femininas. A busca de El Topo envolve vinganças, desafios e atos heróicos de liderança e de resgate – promovendo a libertação física e espiritual de si mesmo e de outros. Mais exatamente, o filme se divide em duas partes. Na primeira, El Topo, como pistoleiro impiedoso, vinga o povo de uma cidade, assassinado e mutilado por uma gangue criminosa, e liberta outra cidadezinha da mesma quadrilha. Depois, tem que duelar com os quatro grandes mestres-de-armas, para se tornar o maior de todos os atiradores. Na segunda parte, arrependido de seus pecados, El Topo passa por um lento e sofrido processo de purificação, vindo a se tornar uma espécie de monge budista, líder de uma comunidade subterrânea de párias sociais. Sua missão é ajudá-la a chegar à superfície, saindo do exílio no interior da terra. No processo, liberta uma outra cidadezinha, dominada por uma seita cruel e pagã.

El Topo é um clássico de cineclubes e bootlegs (cópias não-oficiais em vídeo). É adorado por gente que vai de John Lennon a Marilyn Manson, incluindo o também bizarro David Lynch. Só este ano o filme teve lançamento oficial em DVD – no mercado externo, é claro. “A Toupeira” é considerado o pontapé inicial no movimento dos midnight movies no cinema (filmes de baixo orçamento, geralmente polêmicos, que eram exibidos tarde da noite, inicialmente na TV, e depois na tela grande). A famosa sala Elgin, em Nova York, foi o principal palco dessas fitas nos anos 70. Além da produção de Alejandro Jodorowsky (que lotou a sala por vários meses, existindo fãs que viam o filme todas as semanas), também se destacam: Targets (1968), de Peter Bogdanovich, uma história policial de cunho social estrelada por Boris Karloff; A Noite dos Mortos Vivos (1968), a pedra angular dos filmes de zumbis, de George Romero; o nosso Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, adaptação do clássico da antropofagia literária modernista de Mário de Andrade; Pink Flamingos (1971), que envolve fetiches sexuais, incesto, sadismo e cropofagia (ingestão oral de fezes de animais); The Harder They Come (1972), estrelado por Jimmy Cliff, este filme ajudou a popularizar o reggae nos EUA; The Rocky Horror Picture Show (1976), famoso musical de “terrir”; e, finalmente, Eraserhead (1977), debute de David Lynch. As sessões de “midnight movies” também ressucitaram com grande sucesso o libelo anti-maconha chamado Reefer Madness (1938), ridiculamente pleno de desinformação.

Muitos desses filmes, incluindo naturalmente El Topo, são verdadeiras experiências lisérgicas. Mexem muito com os sentidos e com a mente. Irreverentes, iconoclastas, experimentais, buscam arrancar do automático a nossa visão e o nosso pensamento, fazendo o espectador tomar – nem que seja de maneira desagradável – uma outra consciência das coisas. No fundo, é o que faz a arte de vanguarda. Pode não ser a arte definitiva, mas com certeza ela é muito necessária de tempos em tempos.


quinta-feira, outubro 11, 2007

Tropa de Elite


Tropa de Elite deixa seu lugar marcado no Cinema nacional. O que não quer dizer que o filme seja bom ou ruim, essa é outra discussão. Não vou ficar aqui comentando a polêmica – em boa parte inútil – que se criou em cima da estréia na ficção de José Padilha (que fizera antes Ônibus 174). Acho que às vezes exige-se demais do cinema brasileiro, o que não deixa de ser compreensível. Em vista disso, eu prefiro destacar as escolhas – em forma e em conteúdo – que uma determinada fita faz e pesá-las com o que já se fez e ainda se faz no conjunto da sétima arte de uma nação. Essas escolhas não garantem, necessariamente e por si só, a “qualidade” de uma película; mas assinalam sua importância no contexto artístico e também no social (a arte não deve estar apenas a favor da própria arte). Quero dizer: além de ser bom ou ruim, um filme deverá ser pertinente pelo que mostra e pelo modo como mostra.

Assim sendo, quais são as escolhas de Tropa de Elite? O que fez esse filme que pode ser considerado marco (sem querer sobredourar demais a pílula) em nosso Cinema? É simples, nada muito difícil de perceber para quem vê com os olhos abertos:

1. A obra de Padilha traz o melhor do cinema policial, e sabemos que fazer filme de gênero no Brasil é quase uma utopia. E tem mais: Tropa de Elite ainda flerta com os filmes de guerra. Numa guerra, todas as coisas acabam ganhando uma proporção absurda, insustentável e irremediável, um verdadeiro impasse, inclusive moral. O melhor do cinema de guerra nos mostra o quanto a lógica e os valores se perdem, se misturam, se invertem e se confundem até o nível do pânico (que o diga o Capitão Nascimento).

2. O ponto de vista da narrativa é o de um policial (atenção ao que eu disse: não falei que o ponto de vista é o da polícia, mas o de um policial, devidamente individualizado e construído de modo complexo e profundo como toda personagem verdadeiramente humana; infelizmente muitos espectadores não tiveram o discernimento de perceber isso). Cansei de filme brasileiro que fala de “bandido”. Vamos dar voz também para o outro, ou outros lados, visto que o fenômeno é bem mais complexo do que se quer enxergar; o Brasil não é um país para iniciantes, aqui o maniqueísmo mocinho / bandido só serve à ingenuidade de uns ou à má fé de muitos.

3. José Padilha parece saber (sorte dele) da tolice de se acreditar no maniqueísmo acima. Desse modo, o seu filme toma todas as precauções para escapar ao policiamento ideológico que é uma das pragas neste país. Tropa de Elite chega a ser até irritante e simploriamente didático (especialmente na primeira parte) ao mostrar que o “buraco” do fenômeno social polícia-bandido é bem “mais embaixo”. Inútil. Se mesmo com toda essa pedagogia (o que faz a obra perder em arte), este filme ainda foi alvo dos piores vícios reacionários tanto da “direita” (gente que passa a adorar “o filme do Capitão Nascimento”) quanto da “esquerda” (gente que simplesmente execra “o filme fascista do Capitão Nascimento”), imagine se Tropa de Elite tivesse a sutileza que se pediria a uma obra verdadeiramente adulta... No fundo, muitos espectadores não sabem dissociar a voz do narrador e a voz do autor de uma obra, acredito que o cinema encontra-se num estado como o romance literário no século XIX. Assim, rezo para que apareça na nossa sétima arte um “Machado de Assis”, para quem o narrador não-confiável é o centro da obra. José Padilha mostra o caminho...

4. Tropa de Elite é um dos raríssimos estudos cinematográficos da sociedade brasileira que ousa apontar o dedo para a classe média (o espectador, sentado ou no conforto do cinema ou no conforto do seu sofá após ter comprado a cópia pirata da fita, que riu e se divertiu com o circo pegando fogo, jamais deve se esquecer da última imagem do filme). Pois é fácil botar a culpa no povo, nos bandidos, nos vagabundos, nos políticos corruptos, nos empresários cruéis ou numa alta elite sem rosto. O difícil é reconhecer o papel que todos nós fazemos neste estado de coisas. O playboy que usa drogas alimenta sim a criminalidade. Agora, se o caso é de legalizar as drogas ou de reprimir o usuário, isso é a segunda etapa do processo. Mas se a atitude do Capitão Nascimento é execrável, saibamos que somos nós os responsáveis no fundo por essa atitude. O Capitão Nascimento é apenas aquele que faz o serviço sujo para nós, e ele não gosta disso. O seu discurso como narrador (ponto alto do filme), entre irônico e ressentido, atesta bem os fatos. Mas o que fazer? Afinal, se o papa quer dormir perto da favela, a segurança da sua santidade precisa ser garantida, e nisso alguém vai ter que morrer, dentre polícia e bandido. Pois não se vai revelar para a sua santidade a guerra suja e inútil em que se vive no Brasil, muito menos se vai correr o risco do ocupante do trono de Pedro tomar uma bala perdida, até parece... (apenas reproduzo livremente o discurso do próprio Capitão Nascimento).

Dei muita risada com a cena dos universitários discutindo Foucault (“Vigiar e Punir”) na sala de aula. Esse pseudo-esclarecimento, no fundo hipócrita, das nossas elites intelectuais é foda mesmo. O playboy maconheiro estudante de sociologia com consciência social... que merda! O que é que essa gente entende dos fatos, de todos os horrores da guerra que se passa na vida real, fora da bolha acadêmica? Por isso Tropa de Elite faz muito bem em dar a voz ao policial, pois só o soldado tem credibilidade para falar do front (no fundo, o filme tem muito esse caráter de crônica do front). A obra de Padilha é tão didática que mostra o que significa, na verdade, o fato de a polícia ser uma das instituições que servem apenas aos poderosos (de acordo com Foucault): toda a questão do Batalhão de Operações Especiais “proteger” a todo o custo o papa mostra justamente isso. E mostra o como são difíceis as escolhas do policial numa situação dessas. É triste que aqueles universitários, trancados na sua torre de marfim, estejam muito, mas muito longe de entender isso – assim como muitos espectadores... Polícia para quem precisa, né?

sexta-feira, outubro 05, 2007

Sobre a Cegueira


Mais uma postagem com o bate-bola Cinema-Literatura. Algumas obras literárias são tão, digamos assim, fotogênicas, que a leitura torna-se uma experiência cinematográfica, uma película projetada na nossa imaginação. Transcrevo abaixo um pequeno trecho do Ensaio Sobre a Cegueira, do gigante José Saramago:

“Metido na guarita para proteger-se do frio, ao soldado de sentinela tinha-lhe parecido ouvir uns ligeiros ruídos que não conseguira identificar, de todo o modo não pensou que pudessem vir de dentro, teria sido o ramalhar breve das árvores, uma ramagem que o vento fizesse roçar de leve na grade. Outro ruído lhe chegou de súbito aos ouvidos, mas este foi diferente, uma pancada, um choque, para ser mais preciso, não podia ser obra de vento. Nervoso, o soldado saiu da guarita engatilhando a espingarda automática e olhou na direcção do portão. Não viu nada. O ruído, porém, voltara, mais forte, agora era como o de unhas raspando na superfície rugosa. A chapa do portão, pensou. Deu um passo para a tenda de campanha onde o sargento dormia, mas reteve-o o pensamento de que se desse falso alarme teria de ouvir das boas, os sargentos não gostam que os acordem, mesmo quando haja motivo. Tornou a olhar para o portão e esperou, tenso. Muito devagar, no intervalo entre dois ferros verticais, como um fantasma, começou a aparecer uma cara branca. A cara de um cego. O medo fez gelar o sangue do soldado, e foi o medo que o fez apontar a arma e disparar uma rajada à queima-roupa.”

Eu leio esse trecho como se estivesse assistindo a um filme. A cena inteira já me vem à cabeça, natural e espontânea, rigorosamente fotografada e montada. E essa cena me faz lembrar bastante os filmes de zumbis, principalmente os do mestre George Romero. Alguém mais percebe isso? Será que Fernando Meireles, que está filmando Blindness – adaptação dessa obra incrível – perceberá isso? A obra de José Saramago alia sutilmente a densidade mítica da fábula à ironia corrosiva do comentário social, temperadas com fino humanismo.. Será que Meireles captará tais sutilezas? No blog do filme, o diretor escreve:

“Ensaio Sobre a Cegueira permite tantas leituras que a toda hora me pego conferindo se este ou aquele viés da história estão contemplados no que tenho filmado. Cada vez que me asseguro de um ponto, outras quatro dúvidas aparecem. – ‘Tudo, não teremos’, dizia meu avô. Mas bem que tento.”
www.blogdeblindness.blogspot.com

Ficamos esperançosos. É esperar para ver (sem trocadilho). Mas bem que a cena acima poderia ser o “teaser trailer” do filme...

quinta-feira, outubro 04, 2007

Vidas Secas


Já discuti em outras postagens a dificuldade de se adaptar uma obra literária para o Cinema. Por ora, vamos apenas relembrar que a fidelidade ao enredo – que tanto se exige – absolutamente não importa. A não ser que o enredo, ou parte dele, seja de pertinência altíssima para a estética da obra ou para a sua mensagem. Um cineasta deve saber reconhecer qual o princípio que orienta uma determinada obra literária, e procurar fazer o seu filme movendo-se pelo mesmo princípio. O sucesso artístico de uma fita “baseada” em um livro depende exclusivamente disso. Um grande filme não será aquele que se agarra ao seu livro e mantém os seus olhos sempre fixos nele, como um apaixonado. Um grande filme e seu grande livro caminharão juntos tendo em vista um ponto comum. É mais uma relação de coordenação do que de subordinação.

O princípio, ou princípios que orientam uma obra literária e que serão tomados pela obra cinematográfica devem ser, logicamente, de caráter profundo e relativamente universal. Um poema ou um romance também se move por princípios particulares relativos à estética, mas esses dificilmente serão assimilados pelo Cinema, visto se tratarem de linguagens obviamente diferentes. Por exemplo: De que maneira Nelson Pereira dos Santos pode levar ao seu filme Vidas Secas a forte presença do discurso indireto livre, que tem grande função estética no romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos? É complicado, não? Mas o diretor pode, com certeza, buscar na “poética” do Cinema algum recurso que ele acredite ser o mais equivalente ao discurso indireto livre literário...

Ou ele pode se orientar apenas por elementos estilísticos mais amplos que o romance possui: o silêncio das personagens; a estrutura narrativa fragmentária e cíclica; a atmosfera claustrofóbica do espaço infinitamente aberto do sertão na seca (paradoxo interessante); a angústia de uma condição da qual não há saída, aliada à esperança profunda que se procura manter com todas as forças, lutando com todas as forças contra as forças do meio; a escrita simples, despojada, concisa e objetiva (na qual a “câmera-caneta” pode muito bem se alfabetizar); dentre outros. Observando esses aspectos, o filme pode provocar no espectador efeitos subjetivos muito similares aos provocados pelo romance em seu leitor. E é justamente isso o que faz Nelson Pereira dos Santos em Vidas Secas (Brasil, 1964). Por isso é um grande filme e grande adaptação de uma obra literária.

Porém, eu não gosto de usar a palavra “adaptação”. Ela traz certa conotação de algo que está apenas subordinado. Prefiro agarrar-me ao termo “equivalência”. A estética do cinema Neo-Realista da Itália é perfeitamente equivalente à estética da obra de Graciliano Ramos que, por sua vez, aproxima-se bastante do romance Neo-Realista dos anos 30. Leia-se As Vinhas da Ira (“The Grapes of Wrath”) de John Steinbeck e faça-se o interessante exercício de comparar os dois livros, e sobretudo os dois filmes que se fizeram sobre eles. É claro que tais aproximações devem ser feitas com todo o cuidado, mas sem medo de ser feliz. Tendo em vista a filmografia anterior de Nelson Pereira dos Santos (principalmente Rio, 40 Graus, 1955; e Rio, Zona Norte, 1957), não consigo pensar em outro que seja mais apto a levar Vidas Secas para a tela grande. O Cinema-Novo brasileiro foi um saco de gatos e de estilos. Mas o Neo-Realismo de Nelson Pereira dos Santos casa muito bem com o de Graciliano Ramos.

Apesar de tudo, o filme Vidas Secas não está livre de problemas: a interpretação dura dos atores e o didatismo da expressão fílmica deixam a coisa um tanto artificial em alguns momentos – mas poucos momentos. O que importa é que a câmera de Nelson tem tanta sobriedade quanto a caneta de Graciliano; não há qualquer música na trilha sonora, não há qualquer apelo emocional. Predomina o silêncio mudo e seco de uma vida seca, de pessoas secas, de um universo seco. É natural que as personagens aqui falem mais do que no livro. Mas essa é apenas a solução encontrada pelo cineasta: o monólogo interior que se manifesta no exterior. É bem significativa a cena em que Fabiano e Sinhá Vitória falam ao mesmo tempo: não se trata de um diálogo, mas de dois fluxos de consciência que vão se atropelando. Em outros momentos, buscando o mergulho na alma das personagens que faz Graciliano Ramos, Nelson Pereira dos Santos simplesmente joga a câmera na cara das pessoas, como que tentando adivinhar o que se passa dentro daquelas cabeças. Eis a expressividade do Cinema. A cena da morte da cachorra Baleia é, por si só, antológica, assim como o seu capítulo equivalente no romance.

Vidas Secas, como todo grande Cinema, é um filme repleto de planos belos e plenos de significado – sem ser excessivamente pretensioso. Repare na fotografia acima deste texto e entenda que o cineasta de verdade é aquele que sabe exatamente onde colocar a câmera...