terça-feira, julho 07, 2009

A Mulher Invisível


TRANSFORMA-SE o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semidéia,
Que, como acidente em seu sujeito,
Assim com a alma minha se conforma,

Está no pensamento com idéia;
[E] o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples, busca a forma.

Luis Vaz de Camões

Não há melhor definição e resumo para A Mulher Invisível (Brasil, 2009, dir.: Cláudio Torres) do que o famoso soneto acima. O link camoniano já se percebe desde o trailer. Pequenos parêntesis: os brasileiros ainda têm muito a aprender na arte de fazer trailers de filmes, pois os nossos parecem os dos europeus – pior ainda, os dos asiáticos –, tenta-se espremer o filme inteiro em poucos – ou muitos – minutos, parece que tentando vendê-lo a qualquer custo; resultado: spoiling, spoiling, spoiling.

Agora, vamos ao que interessa. Os fãs das películas de Cláudio Assis, Heitor Dhalia e cia. não podem assistir à Mulher Invisível. De jeito nenhum. Afinal, este é um filme absoluta e descaradamente comercial, vendido, alienado, medíocre, popularesco, imitação submissa de Hollywood, padrão Globo de “qualidade”. Clichês, clichês, clichês. Eis algumas das avaliações dos críticos da Folha de S. Paulo, naquele quadro do Guia:

“nem Luana vale o sacrifício”; “uma boa idéia e um caminhão de clichês” (esse pelo menos admitiu a “idéia” do filme); “não é invisível, é não visível” (esse foi poético, deve ter estudado na faculdade o quadrado semiótico de Greimas). Tem uma que parece ser assepticamente neutra: “na nova onda da comédia popular brasileira”. E outra, que achei a mais equilibrada, embora mantendo mesmo assim o altivo distanciamento do crítico em relação às coisas do povão: “inocente e simpático, mas de final prolixo”.

Tem razão. Só que é mesmo difícil dar fecho à premissa e a todos os desdobramentos fantásticos de um filme assim. Muito bem, pessoal. Como é difícil ter alguns discernimentos básicos: 1. filme comercial mal feito é um negócio muito diferente de filme comercial bem feito; 2. quanto mais se desenvolver a indústria cinematográfica no Brasil, maiores probabilidades teremos de produzir uma (ou algumas) obras-primas a serem veneradas por toda a intelligentzia

ou alguém acha que haveria em nossa literatura um Machado de Assis se não tivesse aparecido antes um José de Alencar? Tomo a liberdade de reproduzir e comentar um trecho da entrevista de Júlio Bressane à Revista Época. O clássico cineasta experimental é autor do recente A Erva do Rato (cujo título, assim como o de O Cheiro do Ralo – até rimou! – e o do O Baixio das Bestas, mostra a quantas anda o nosso cinema-cabeça).

ÉPOCA – Tanto “Cleópatra” quanto “A Erva do Rato” foram exibidos em Veneza. Você acha que esse tipo de cinema mais autoral e mais difícil tem um público maior no exterior do que aqui?
BressaneEu acho que o filme autoral desapareceu. É um cinema que sumiu. Não se faz mais isso, esse cinema acabou. É agônico esse final. Alguns diretores de 70, 80 anos sabem fazer ainda, se equiparam, se aparelharam, se adestraram nessa coisa difícil que é a construção da imagem e da montagem do cinema. Mas esse tipo de filme não tem mais nem público para ver. É um processo imenso de mediocrização de tudo. Essa questão das artes foi colocada no campo do entretenimento, no sentido mais bruto e piegas dessa expressão americana, entertainment. Foi reduzida a isso. Esse cinema de arte e de experimento desapareceu.

Tudo bem que, sem as festas dionisíacas na Atenas do século V a.C., que foram promovidas como política populista por parte dos tiranos e graças às quais se instalaram os concursos de tragédias que fizeram surgir os nomes de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes, jamais haveria... por exemplo, um Shakespeare, não? Ou que, sem os autos e farsas do populacho medieval não conheceríamos Gil Vicente ou Ariano Suassuna... Sem os vaudevilles, quem seriam Charles Chaplin, Buster Keaton, Jacques Tati?

E finalmente, sem os nickelodeons, circos e feiras “medíocres” da passagem do século XIX para o XX, esqueçam o Cinema todos os que hoje o adoram – inclusive aqueles que preferem o cinema dito “experimental”. Medíocre é a crença numa dicotomia tão simplista entre arte e entretenimento. Miopia, miopia, miopia. Bressane ainda diz que “o cinema é a mais ativa vacina contra a mediocridade” e que “o filme de público foi o que destruiu o cinema brasileiro”.

Os maiores cineastas brasileiros de todos os tempos ainda estão para surgir. Espero por eles como quem aguarda um messias (apesar de uma mentalidade messiânica em relação ao nosso cinema ser algo bem problemático). Os futuros gênios da Sétima Arte tupiniquim saberão incorporar, utilizar, equilibrar e discutir dialeticamente em sua arte as formas mais “medíocres”, venham elas de dentro ou de fora do Brasil. Equivalente ao que fizeram, na literatura, os supremos Machado de Assis e João Guimarães Rosa. Quero ver!