quarta-feira, dezembro 26, 2007

Vida Besta


Êta, vida besta, meu Deus...

terça-feira, dezembro 25, 2007

So this is Christmas...


O "Sombras Elétricas" deseja a todos os seus visitantes, leitores e colegas de blogs um feliz natal e um ótimo - e produtivo - ano novo! Que o mundo continue assombrado!

sábado, dezembro 22, 2007

Antes Só Do Que Mal Casado


O novo petardo dos irmãos Peter e Bobby Farrelly é uma refilmagem de The Heartbreak Kid (EUA, 1972, dir.: Elaine May), que circulou no Brasil com dois títulos: “Corações em Alta” e “O Rapaz que Partia Corações”. Este último é a tradução quase literal do nome original da película. Já Antes Só Do Que Mal Casado (“The Heartbreak Kid”, EUA, 2007), a releitura feita pelos Farrelly, lembra bastante o já grande clássico dos irmãos: Quem Vai Ficar Com Mary? (“There’s Something About Mary, EUA, 1995). O título em português, assim como o tema das dificuldades de relacionamento entre pessoas disfuncionais em situações disfuncionais – destacando particularmente a difícil busca do “eu” pelo delicado equilíbrio entre o seu próprio bem-estar e o do “outro” com o qual se tem que conviver – lembra também a clássica comédia dos anos 80 Antes Só Do Que Mal Acompanhado (“Planes, Trains and Automobiles”, EUA, 1987), de John Hughes, com Steve Martin e John Candy.

Em “The Heartbreak Kid”, temos o solteirão quarentão Eddie Cantrow (Ben Stiller), que é pressionado pelo pai (Doc, interpretado pelo ótimo Jerry Stiller, pai real de Ben e o eterno Frank Constanza de Seinfeld) e pelo melhor amigo (Mac – Rob Cordry), um molenga que vive um casamento bem estável, mas no qual é totalmente submisso à mulher. Ambos querem que Eddie se case logo, sem criar grandes expectativas, pré-requisitos ou ideais românticos absurdos; afinal, todo mundo tem que se casar, não? Mas Eddie não deseja abandonar seu sonho de viver um grande amor. Nisto, ele conhece uma bela mulher, Lila (Malin Akerman), identifica-se com ela, ambos se apaixonam e se casam, em pouco mais de um mês – mesmo assim, ele só toma definitivamente a decisão de se casar impulsionado pelo pai e pelo amigo.

Chega a lua-de-mel, em um resort paradisíaco no México, e o pobre Eddie descobre o “outro lado” da mulher: manias das mais diversas (principalmente as sexuais, que são as piores), personalidade difícil e teimosa, uma certa burrice, falta de senso de “si-mi-toque”, problemas físicos (o desvio do septo, que a faz botar comida e bebida pelo nariz, e também a faz roncar) e elementos muito ruins de sua vida presente (ela não tem um trabalho “de verdade” e passada (ela era viciada em cocaína e ainda deve dinheiro a traficantes). Mas que roubada, hein? No meio de tudo isso (nos filmes dos Farrelly, tudo acontece ao mesmo tempo agora), Eddie conhece uma garota que, essa sim, tem tudo a ver com ele (Miranda – Michelle Monaghan). Mas que dilema, hein?

No final, tudo acaba se resolvendo pelo melhor. Ou não. Na verdade, as coisas terminam bem, e ao mesmo tempo mal, para todos. Como acabei de dizer: é tudo ao mesmo tempo agora. O filme é múltiplo, sem ser aberto, vago ou ambíguo. Vislumbra-se um princípio moral no meio e acima de tudo, mas nenhum personagem o segue. Além do mais, as situações são complexas e ainda há a ação do destino... Na última parte, a narrativa vai “enganando” o expectador, conduzindo-o falsamente a um final ora trágico, ora feliz. Mas quando o filme termina de verdade mesmo, percebemos que, em certo sentido, não há final algum. Essencialmente, nada muda. É o ciclo mítico do eterno retorno. Quanto mais as coisas mudam, mais elas continuam as mesmas. O destino tem uma parcela de responsabilidade por isso, mas também têm culpa em cartório as atitudes (inclusive mentais) viciosas dos indivíduos, particularmente nosso protagonista Eddie.

Aqui chegamos ao foco da questão moral. O problema não são as mulheres. O problema é e sempre foi, desde o primeiro momento do filme, Eddie. A sua teimosia, sem querer querendo, é o que lhe dá a alcunha de “heartbreak kid”. O casamento, assim como qualquer forma de relacionamento humano (conforme expliquei no começo) é um delicado equilíbrio entre o bem-estar do “eu” e o bem-estar do “outro”. Mas o que fazer quando esse equilíbrio não pode ser atingido de forma alguma? Antes disso, será que o equilíbrio não pode ser atingido de fato, ou será que as partes em jogo é que não se esforçaram o suficiente? De qualquer maneira, na impossibilidade de se chegar a um acordo, será que se deve pensar apenas em si e no próprio bem-estar, independentemente do como que fique o “outro” nesta história? Ou será que o auto-sacrifício aqui não seria mais interessante? Falando em acordo, será que o casamento, ou qualquer outra relação, mede-se apenas pela barganha, seja ela hipócrita ou não?

Assim, Antes Só Que Mal Casado discute algumas “issues” bastante pertinentes para a sociedade norte-americana. Ainda mais pensando-se que de um lado se tem a América cosmopolita de São Francisco (Eddie, seu pai, seu amigo e Lila) e do outro a América profunda do centro-sul-oeste (Miranda e a família dela – os caipiras “rednecks”). Neste particular, é muito bom citar a piada que sai da boca de Doc / Jerry Stiller, aconselhando o filho a não se meter com a família de Miranda: “It´s the bible belt! These people have guns!” (“Este é o cinturão da bíblia! Estas pessoas têm armas!”). Também dentro do humor “sério”, são hilárias as gags visuais que mostram Eddie / Ben Stiller tentando entrar ilegalmente nos EUA, junto com os coyotes mexicanos, e sendo pego todas as vezes pelos patrulheiros da fronteira.

Mas o que pesa mesmo nesta obra típica dos Farrelly é o humor farsesco, vulgar, escatológico, em algumas cenas memoráveis – principalmente a da urina / close-up na tarja preta / ao som dos mariachis. É um absurdo descarado, sem medo de ser feliz, subvertendo completamente os códigos da cultura e das narrativas amorosas. Esta é a marca mais nítida dos irmãos, que fez com que Quem Vai Ficar Com Mary? causasse um grande impacto à sua época. A mistura explosiva entre registros culturais “altos”: o amor romântico, a heroína que é sempre uma mulher de beleza estonteante, o drama do herói em buscar seu grande amor, a tragédia do destino, a pertinência de questões sociais; e registros culturais “baixos”: toda a escatologia que apela aos aspectos mais repugnantes do corpo, suas funções fisiológicas e seus fluídos – afinal de contas, o relacionamento amoroso-sexual envolve uma grande intimidade entre corpos, não? –, a comédia em que invariavelmente desanda a dramática demanda do sujeito por sua própria felicidade amorosa. Mas chega uma hora em que esse humor, também invariavelmente, cansa.

sexta-feira, dezembro 21, 2007

A Lenda de Beowulf


Não há que subestimar a importância da exibição em 3D de A Lenda de Beowulf (“Beowulf”, EUA, 2007). É muito fácil, para o nosso gosto contemporâneo, desprezar esse recurso como uma apenas “pirotecnia” com função exclusivamente comercial: “Os efeitos especiais são arrebatadores, mas o roteiro do filme peca em...” – esse seria um lugar comum por demais... comum, na nossa crítica atual. No entanto, por que é que um filme não poderia ter, como dado de maior importância artística, justamente os chamados “efeitos especiais”? Porque eles estão sempre condicionados ao intuito comercial de atrair mais e mais público pagante? Mas Georges Meliès não foi, neste particular, o primeiro prestidigitador do cinema – e até hoje um dos maiores? Será que vamos desqualificar as experiências dele também?

O que eu gostaria de propor é o seguinte: o fator comercial tem a sua pertinência na descrição, na explicação e até mesmo, em alguns casos, na justificação de certos fenômenos cinematográficos; porém, não há qualquer relação lógica em usá-lo como argumento num juízo de valor a respeito de um filme, a não ser que se paute por uma questão de gosto, e de um gosto estritamente pessoal. Os efeitos especiais em um filme não serão dignos de desprezo por serem construídos sob um propósito “comercial”, mas se forem – em si mesmos – construídos de uma forma esteticamente ruim. Portanto, chamo a atenção para o que é realmente mais importante, algo que vez ou outra é esquecido: a experiência cinematográfica em si. Não quero saber se A Lenda de Beowulf é o mais novo “blockbuster” da temporada; o que interessa é que “Beowulf” resgata no público contemporâneo o olhar fascinado e assustado que tinham as platéias de Lumière ou de Meliès.

Eu nunca tinha visto, até então, uma película em 3D; por isso, o que estou prestes a dizer pode ser inexato (para dizer o mínimo): “Beowulf” pode ser considerado um dos momentos fundadores do Cinema. Um divisor de águas, um experimento que pode ou não abrir caminhos, mas que deixará sua marca. Digo isso não apenas me referindo à 3ª dimensão, mas ao cada vez mais rico processo de animação empregado no filme: a digitalização em computação gráfica da figura de atores reais, o que permite trabalhar os efeitos especiais em outro e altíssimo nível. “Beowulf” promove o resgate da experiência cinematográfica mais elementar, experiência essa que tem se tornado cada vez mais rara desde que o cinematógrafo deixou de ser uma novidade tecnológica quiçá curiosa, há praticamente 100 anos. No entanto, a ciência e a tecnologia devem se colocar sempre em movimento, buscando novas maneiras de reinventar a magia do cinema puro. Repito: não há que subestimar essa demanda.

“Beowulf” nos faz repensar toda a linguagem da sétima arte e da arte representativa em geral. A fotografia do cinema sempre se baseou nos princípios da construção pictórica dos quadros pintados em 2D. Mas quando temos a ponta da espada de Beowulf colocada a poucos centímetros do nosso rosto, saltando literalmente para fora do quadro em perspectiva, não conseguimos deixar de lado a tentação de relacionar esse fenômeno com a “perspectiva” inventada na pintura por Brunelleschi, lá pelos idos do século XV. Se aquilo foi considerado a “invenção da realidade”, agora temos a reinvenção da realidade. Trazendo à tona a terminologia especificamente cinematográfica, o nome “fotografia” – para falar da composição da imagem mostrada na tela, perde a exatidão, uma vez que o espectador torna-se como que uma testemunha de corpo presente aos fatos. Meu ceticismo natural fez com que entrasse na sala de exibição sem botar muita fé na tecnologia em 3D (como eu disse, para mim era algo totalmente desconhecido). Mas bastou ver o primeiro minuto de filme para eu sentir o que é “a coisa” de verdade.

A experiência não é como se a platéia estivesse dentro do cenário, envolvida por todos os lados. É mais como se o filme fosse um holograma exibido à nossa frente, o ponto de vista do espectador, obviamente, mantém-se sempre o mesmo. Usando uma imagem natalina, eu diria que “Beowulf” é como um presépio altamente sofisticado. Em dois ou três momentos do filme, eu tive o forte impulso de estender a mão para pegar uma moeda ou uma pedra à minha frente. Em outro momento, por puro reflexo eu joguei para trás o meu rosto quando um galho apareceu súbita e rapidamente para acertá-lo. Tudo isso pode parecer ridículo aos cinéfilos intelectualizados de hoje em dia, amantes de Bergman e de Godard; mas essas questões são as mais essenciais e originais do Cinema em si. Temos de recorrer aos primeiros teóricos da sétima arte, fascinados com a sua magia: Ricciotto Canudo, Louis Delluc, Germaine Dulac, Bela Balazs, Abel Gance, Jean Epstein, Leon Moussinac, Lotte Eisner, Rudolf Arnheim, Serguei Eisenstein.

Pegue-se, como exemplo, as profundas e sutis reflexões de Bela Balazs, que tanto destacaram a importância estética e dramática do primeiro plano (“close-up”), como elemento mais importante da sétima arte. Ou ainda, num período posterior, a defesa apaixonada que André Bazin faz da profundidade de campo (que mantém no mesmo foco nítido tanto os objetos mais “próximos” quanto os mais “distantes” da tela). “Beowulf” praticamente reinventa o primeiro plano e a profundidade de campo. Imagine Bazin e Balazs assistindo a um filme desses. Faça-se a ligação daquele impulso que eu mencionei no parágrafo anterior ao impulso que tiveram os espectadores daquela lendária primeira exibição de “L’Arrivée d’un Train à la Ciotat”, dos irmãos Lumière: a platéia quis fugir do trem que estava para “sair da tela” e “atropelá-la”.

Enfim, a técnica de “Beowulf” em 3D é magnífica e altamente valorosa em si mesma. Mas é, naturalmente, uma técnica ainda pioneira – conseqüentemente, rara e insipiente. Assim, esperamos ansiosamente o desenvolvimento natural dessa estética, pensando no momento em que o 3D não será algo fascinante apenas em si, mas integrado organicamente, dramaticamente, significativamente ao conteúdo do filme, ajudando a expressá-lo de maneira poética, complexa e sutil. Essa integração semântica entre forma e conteúdo – na qual ambas as instâncias possuem valor em função uma da outra, e não um valor apenas em si mesmas – é o que faz as grandes obras de arte. Por exemplo, imagine uma obra-prima da estética do primeiro plano, como A Paixão de Joana D’Arc de Carl Dreyer, exibida em 3D. Ou uma obra-prima da estética da profundidade de campo, como o Cidadão Kane de Orson Welles, mostrado em três dimensões. É claro que sempre haverá algum “Velho do Restelo” (leia os Lusíadas de Camões) pronto para jogar um balde de água fria nisto tudo, mas tais reações fazem parte da dinâmica das mudanças históricas nas artes.

Agora, vamos ao resto – “last but not least”. A Lenda de Beowulf é a mais nova produção dirigida por Robert Zemeckis (de O Expresso Polar, animação em 3D da mesma natureza que “Beowulf”; Náufrago; Forrest Gump e a série De Volta para o Futuro). O elenco conta com atores de quilate do tipo de Anthony Hopkins, John Malkovich e Angelina Jolie. A história é a adaptação de uma graphic novel (romance em quadrinhos) escrita por Neil Gaiman, autor famoso da “nona arte” que também co-assina o roteiro do filme. Mas a obra em quadrinhos é, por sua vez, uma versão da antiga canção de gesta Beowulf (escrita entre os séculos 8 e 10 da era cristã), um dos mais antigos textos escritos em Língua Inglesa, numa forma pra lá de arcaica. Canção de Gesta é o nome dado a antigos poemas heróico-épicos escritos no início da Idade Média e que, posteriormente, darão origem às famosas Novelas de Cavalaria. Apesar do lado épico, o Beowulf do filme não é exatamente uma história para crianças. A obra literária é rica em temáticas shakespearianas como: as relações familiares e suas intrigas, questões políticas e religiosas (tal a cristianização da Escandinávia pagã).

O roteiro de Gaiman acrescenta algumas discussões mais modernas, como a diferença entre mito e realidade. Nesta história do grande guerreiro Beowulf, cabe aquela famosa frase de O Homem que Matou o Fascínora, de John Ford: “Quando a lenda se torna fato, imprima a lenda”. O filme de Zemeckis é ainda carregado de fortes conotações sexuais. Assim, há grandes diferenças entre o poema original e este filme, e é bom que o espectador saiba disso. No entanto, as diferenças são positivas. Principalmente na cena final, no que ela tem de dramaticamente ambíguo e no trabalho que faz do primeiro plano (lembrando que a exibição é em 3D) em tomadas múltiplas e lentas, contribuindo para o poder de ambigüidade e de sugestão. Aqui, o filme se aproxima de uma arte de nível efetivamente superior.

domingo, dezembro 16, 2007

O Preço de Um Homem


Muito já foi dito sobre a utilização que os faroestes de Anthony Mann fazem dos cenários naturais. Mas tal “utilização” – que vai muito além de uma mera utilização – é tão maravilhosa que nunca será demais falar mais um pouco disso. Em O Preço de Um Homem (“The Naked Spur”, EUA, 1953) a pequenina figura humana dos personagens, com suas mesquinharias, suas ganâncias, suas intrigas, suas mentiras, suas frustrações, seus medos, e principalmente suas lutas, contrasta magnificamente com a grandeza, a beleza pura e nobre da paisagem natural do centro-norte dos EUA, caracterizada por montanhas rochosas, florestas de coníferas e corredeiras d’água.

Muito se fala sobre o cenário como personagem em filmes. Mas é em Anthony Mann que esse recurso torna-se excepcional, com grande rigor formal, carregado de significado e de dramaticidade. Em “The Naked Spur”, mais do que um personagem ativo e independente, a natureza é manipulada estrategicamente como se fosse uma arma por cada pessoa ali na luta de uns contra os outros; da mesma maneira como se manipulam uns aos outros. No fundo, a natureza e o ser humano, no filme, não passam de instrumentos. Ainda no contraste entre a grandeza daquela e a pequenez deste, entre a beleza pura daquela e a feiúra moral deste, cabe no final da história uma ironia de ares moralizantes: é a natureza quem fica com o prêmio não-reclamado; só a terra (ou as águas) cobrará o preço de um homem. “Do pó vieste e ao pó retornarás.”

Assim, o tema mais profundo de O Preço de Um Homem é a relação deste com o mundo natural. Como nas grandes obras de arte, esse tema é encadeado significativamente com vários outros, como a relação dos homens entre si e suas ridículas questões humanas – ridículas se forem postas em perspectiva com as questões da ordem da Natureza, que é o que o filme faz o tempo todo, com grande beleza cinematográfica. No enredo, acompanhamos o drama de Howard Kemp (James Stewart), veterano da Guerra Civil que perdera a mulher e as terras. Ele está à caça do assassino fugitivo Ben Vandergroat (Robert Ryan), pois a recompensa de 5 mil dólares por sua captura – vivo ou morto – é o bastante para Kemp reaver seu rancho.

Nesta jornada, ele encontra um velho e frustrado minerador de ouro (Jesse Tate, vivido por Millard Mitchell) e o contrata para ajudar na busca pelo bandido. Logo em seguida, aparece um ex-militar, Roy Anderson (Ralph Meeker) – ainda vestindo o uniforme da Cavalaria – que vem de receber uma baixa desonrosa (por um comportamento moral “instável”). Os três acabam encontrando e capturando Bem, junto de uma jovem e inocente garota que o acompanha (Lina Patch – Janet Leigh). Quando Roy e Jesse descobrem o preço que tem a cabeça de Ben – informação essa que Howard Kemp tinha estrategicamente escondido – a verdadeira tensão começa. Assim, a viagem por montanhas de rochas íngremes, duras e escarpadas, atravessando corredeiras violentas e florestas escuras para levá-lo de volta a algum entreposto da civilização e entregá-lo à justiça (pela qual ele será enforcado) não ocorrerá sem alguns percalços, para dizer o mínimo.

O título original é bastante poético: “spur” denota “espora”, mas pode ter as seguintes conotações: impulso, estímulo, ambição, vaidade, incentivo, ou seja, algo que nos coloque em movimento assim como a espora ao cavalo. Desse modo, o título poderia se traduzir por: “O impulso nu”, “A ambição desnudada”, etc. Revelador, não? Porém, o título em Português é dotado daquela dramaticidade explícita, chocante e trágica comum em nomes de faroestes - basta lembrar de “Rastros de “Ódio” (The Searchers, ou, mais exatamente, “Aqueles que procuram”) ou de “Os Brutos Também Amam” (Shane, que é apenas o nome do protagonista). Aqui, temos “O Preço de Um Homem”, que, não obstante, já revela um dos aspectos principais da história: a reificação do indivíduo. Ben Vandergroat não é um homem de verdade, ele é apenas um saco de dinheiro para Howard Kemp e os outros. Exceto para Lina. No final, é a visão dela que prevalece. Boa parte da tensão dramática, incluindo os diálogos, é construída com base no fato de que Ben é, desde o começo, um cadáver ambulante – ou melhor, um cadáver carregado pelos demais (cadáveres também, em certo sentido). Ben já está morto, condenado desde antes de sua primeira aparição na tela. Toda a seqüência final torna-se incrível se pensada nesse contexto.

Os faroestes normalmente procuram mostrar o valor dos homens. Para Anthony Mann, os homens têm preço.

sexta-feira, novembro 09, 2007

A Via Láctea


Um fluxo de consciência de 88 minutos. Eis a arrebatadora experiência proporcionada por A Via Láctea (Brasil, 2007, dir.: Lina Chamie). Mas não se pense que o filme apenas mergulha nas sendas herméticas do inconsciente, de uma maneira esteticamente bela, mas inacessível a quem não compartilhe da subjetividade única do personagem ou do seu autor (ou seja, todos nós). A Via Láctea não tem essas presunções vanguardistas. É um filme simples, sincero, honesto, dialogando com o espectador de modo aberto e amigável, num tom entre o (auto) irônico e o auto-complacente de um coração que sente muito mas que já está muito cansado. Tal é o caso do professor de literatura Heitor (Marco Ricca), já na meia-idade, que, após ter uma grave (e definitiva?) discussão com a sua namorada (a jovem estudante de veterinária Júlia, interpretada por Alice Braga), sai desesperado no meio do desespero de São Paulo (trânsito, acidentes, miséria, violência) para tentar encontrar-se com ela e consertar a situação.

Aqui começa a intersecção de planos que dá a grande riqueza ao filme. A viagem de Heitor ocorre por um espaço exterior que é mais do que alegoria do espaço interior, ambas as dimensões estão profunda e indissociavelmente conectadas como num organismo simbiótico. Mas essa ligação se dá através de um choque, de uma violência que muitas vezes não percebemos – o indivíduo sequer percebe a ligação semântica entre o objetivo e o subjetivo. Como diz o poeta Drummond, em A Flor e A Náusea: “O tempo pobre, o poeta pobre / fundem-se no mesmo impasse.” Esse impasse é que marca o movimento de A Via Láctea. Heitor não se soluciona assim como a cidade não se soluciona. O indivíduo está perdido em si mesmo assim como a cidade está perdida em si mesma. E o que tem mais significado poético: o indivíduo tanto se encontra quanto se perde na cidade assim como a cidade se encontra e se perde no indivíduo.

As muitas referências e citações poéticas atestam esse fundir de planos em princípio opostos e independentes, mas que, não obstante, procuram desesperadamente agir de alguma maneira digamos “especial” um no outro, repelindo-se e identificando-se a um só tempo, um tempo quântico, numa fração indefinível de segundo entre o agora e o depois, entre o aqui e o ali, entre o eu e o outro (o mundo), entre a vida e a morte. A Via Láctea equilibra-se entre os limites. O magnífico poema Chuva Interior, do poeta Mário Chamie (pai da diretora), expressa muito bem as relações e as correspondências entre o interior e o exterior. Dentre todos, é um dos dois poemas centrais do filme, quase um mote:

“CHUVA INTERIOR

Quando saía de casa
percebeu que a chuva
soletrava
uma palavra sem nexo
na pedra da calçada.
Não percebeu
que percebia
que a chuva que chovia
não chovia
na rua por onde
andava.
Era a chuva
que trazia
de dentro de sua casa;
era a chuva
que molhava
o seu silêncio
molhado
na pedra que carregava.
Um silêncio
feito mina,
explosivo sem palavra,
quase um fio de conversa
no seu nexo de rotina
em cada esquina
que dobrava.
Fora de casa,
seco na calçada,
percebeu que percebia
no auge de sua raiva
que a chuva não mais chovia
nas águas que imaginava.”

O outro texto-mote é o poema Campo de Flores, de Carlos Drummond de Andrade, do qual o personagem de Marco Ricca destaca a primeira estrofe:

“Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus - ou foi talvez o Diabo - deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.”

A cena do diálogo entre Heitor e o bandido que aborda o seu carro, parado no farol, é a mais sublime, considerando o “diálogo” entre o universo subjetivo e o universo objetivo no qual o filme fundamenta a sua construção. É nela que o filme mais revela a força de sua alma. Eu disse no começo que A Via Láctea é um fluxo de consciência, técnica marcante da narrativa literária moderna. No filme, esse fluxo caracteriza-se como um delírio (daydream), mas aquele delírio específico do poeta que vai aos poucos e trabalhosamente percebendo a natureza da chuva interior, conforme vai contemplando a “chuva exterior”. Todas as cenas da jornada dantesca de Heitor mostram esse processo, o processo da descoberta interior através da viagem exterior. Viagem exterior que, ainda que fosse apenas uma manifestação delirante / alegórica da viagem interior, não derrubaria o valor objetivo e a existência factual e independente do mundo exterior. Não é um tema original, mas é um dos mais pertinentes e universais da história humana, já bastante trabalhado pela Literatura e também pelo Cinema.

O conteúdo poético e lírico de A Via Láctea se expressa num discurso bem equivalente, que envolve profundamente o espectador, não-preocupado apenas em “acompanhar a história”, mas em contemplar e vivenciar de uma maneira especial e profunda o universo mostrado na tela. Esse transporte de espírito, esse caráter meditativo, é o melhor da poesia e do cinema de poesia. Obras assim nos tocam profundamente e fazem com que olhemos para o mundo com outros olhos. É esse aspecto, digamos, lisérgico, que eu procuro no Cinema. Vi este filme numa sala na Avenida Paulista (topos que é muito destacado na tela). Ao sair do cinema para a avenida, eu me senti como que outra pessoa, com um olhar totalmente novo – ou um olhar que recuperei, já que o cotidiano só faz por cegar a nossa visão poética. Sem contar que ver na tela a nossa cidade, lugares que freqüentamos e pelos quais passamos diariamente – prestando atenção neles ou não – sendo trabalhados com toda a fotogenia que só a sétima arte pode conceder é uma experiência vivificante. É por isso que, de quando em quando, é necessário “consumir” Arte, para a saúde da alma. Que o cinema brasileiro nos ofereça mais e mais experiências assim!

terça-feira, novembro 06, 2007

Zodíaco


Como é difícil entregarmo-nos a uma experiência nova, sem preconceitos e sem pré-conceitos, e assimilarmos livremente o que essa experiência nova tem a nos oferecer por si só! O mais comum é, ao nos deparar com algo novo, procurarmos logo enquadrar a novidade dentro de algum padrão já conhecido e aceito. Desse modo, é difícil lermos, de fato, um livro, ou assistirmos verdadeiramente um filme. O que a gente “lê” e o que a gente “assiste” são apenas nossas experiências passadas e nossas idéias já bem estabelecidas. O ideal seria abrir mão e esquecer de todo o nosso repertório pessoal na hora de experimentar uma obra de arte nova. Digo: na hora de experimentar, e não na hora de julgar – pois nesta o repertório tem o seu valor. Naturalmente, o fato de as produções da “indústria cultural” muitas vezes repetirem as mesmas fórmulas de construção e de conteúdo não ajuda nem um pouco para uma boa fenomenologia da recepção.

Assim, quando me sentei para ver Zodíaco (“Zodiac”, EUA, 2007, dir.: David Fincher), não pude deixar de esperar que o filme correspondesse aos (interessantes) padrões das fitas de serial killer, principalmente Seven, Os Sete Crimes Capitais (“Seven”, EUA, 1994), obra-prima do diretor David Fincher. No entanto, que decepção! Zodíaco passa longe de Seven. Mas essa decepção – sem ironia alguma – é o melhor do filme. O diferencial de Zodíaco é que a sua história é muito longa (em torno de 22 anos), confusa, aberta, com várias pontas soltas, sem qualquer definição, sem qualquer significado definitivo, sem desfecho justo ou injusto, sem nem mesmo a famosa justiça poética, sem grandes heroísmos, ou grandes vilanias (a vilania aqui é muito mesquinha e incoerente)... Enfim, a história de Zodíaco é como a própria vida. A vida que é uma obra aberta demais, complexa demais – mas sem qualquer organização perfeitamente lógica ou racional (isso é o pior). A vida não tem aquela grandeza épica, as coisas na vida não se encaixam perfeitamente como numa tragédia clássica, nem tudo na vida se resolve (pelo melhor ou pelo pior). Nesse sentido, a vida não imita a arte. Nem a arte imita a vida. Exceto Zodíaco.

Quando olhamos para uma experiência da vida e dizemos: “Isto bem que daria um filme!”, certamente que essa experiência foge ao comum e cotidiano, isto é, foge à própria vida, vai além dela; por isso, nós nos interessamos, guardamos na memória tal acontecimento e sentimos a vontade de imortalizá-lo numa obra de arte. Assim, em relação a Seven, Os Sete Crimes Capitais, se fosse uma história real ainda não levada ao Cinema, com certeza diríamos que daria um ótimo filme (naturalmente um filme narrativo, com os fatos dramatizados). Porém, não podemos dizer o mesmo de Zodíaco. Filmes de “serial killer” normalmente descobrem verdades, chegam a certezas altamente significativas (isso sem falar na “justiça”) que nós desesperadamente desejamos para as nossas próprias vidas. Mas, como eu disse, a vida nem sempre nos concede esses prêmios. Por isso, muitas vezes o melhor é esquecer, deixar para lá, deixar envelhecer, que o tempo tudo arrasta e apaga e supera, “live and let live” – ou “live and let die” (que é o caso aqui)... Isso é o que recomenda o detetive David Toschi (interpretado por Mark Ruffalo) ao jovem e obsessivo investigador amador Robert Graysmith (Jake Gyllenhaal).

Dessa maneira, Zodíaco está mais para um documentário do que para um filme dramático. A decepção de que eu falei ocorre quando se vê o filme como um suspense policial de ficção, ou, pelo menos, como um enredo baseado em fatos reais onde estes foram romanceados para ficarem mais interessantes. Nada em Zodíaco é feito para ficar mais “interessante”, de acordo com a lógica tipicamente hollywoodiana. Desde Seven, o cinema de David Fincher é um cinema de choque; mas esse choque sempre se pautou pelo inusitado, pelo bizarro, pelo grotesco, pelo violento ou até mesmo pelo fantástico (caso de Alien 3 e de Clube da Luta). Em Zodíaco, o que choca é a ausência desse “choque”; o que choca aqui é a própria vida, absolutamente sem graça, incoerente e frustrante, que nos é jogada na cara. A ausência de respostas, de soluções, de justiças, de verdades, de certezas, de sentidos, de razões... Isso é mais aterrador do que qualquer história romanesca, rocambolesca, mirabolante e fabulosa de “serial killers” sádicos e megalomaníacos. Eu sequer diria que Zodíaco tem um anti-clímax, pois isso já seria um clímax, equivalente a ele, assim como a anti-matéria é equivalente à matéria. Zodíaco simplesmente não tem nada. É um vácuo completo. Quem quiser, que chame isso de niilismo.

quinta-feira, outubro 25, 2007

Mutum


Eu já discuti neste blog o como é difícil fazer filmes baseados em livros de João Guimarães Rosa. Assim que tive notícias da mais nova tentativa, minhas esperanças se renovaram. Foi com esse espírito que fui ver Mutum (Brasil, 2007, dir.: Sandra Kogut), em exibição na 31ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Antes de mais nada, folguei em saber que a fila enorme era para ver “o Tarantino”. A sala ao lado também estava cheia, mas sem filas. Entrei nela e aguardei. Mutum, debute ficcional da diretora carioca Sandra Kogut – que antes só tinha realizado documentários e vídeo-arte – é inspirado na novela Miguilim, que, junto com Manuelzão, faz parte do livro Campo Geral, de Guimarães Rosa. A história é a do final de infância de um menino (Miguilim no original, Tiago no filme) que vive naquele pedaço do sertão sem marcações muito específicas de espaço ou de tempo, naquele sertão mítico que só o autor de Grande Sertão: Veredas ousou criar. As experiências subjetivas e objetivas por que o menino passa, sejam elas dolorosas ou alegres, caracterizam muito poeticamente o processo de crescimento e amadurecimento, no início de uma vida cujos limites ainda são completamente desconhecidos. Dentre essas vivências, destacam-se o relacionamento com o irmão adorado (Dito ali, Felipe aqui) e com o pai brutal.

Pois bem, vamos ao que interessa. Sandra Kogut soube manter o tom e o caráter de parábola da narrativa original. Ela também filmou com muita poesia a paisagem do sertão de Mutum e as pessoas que ali vivem, intimamente ligadas àquele espaço. Reconhece-se algo (mas não tudo, logicamente) da poesia e da sensibilidade da linguagem de Guimarães Rosa na câmera da cineasta. Mas o que mais vale a pena destacar neste filme é a simplicidade e o despojamento do discurso cinematográfico, perfeitamente adequado ao universo retratado. Muito da qualidade de Mutum – seja do filme em si, seja pensando-se na sua relação com a obra original – vem de escolhas muito raras no nosso Cinema mas bastante acertadas quando feitas e trabalhadas com cuidado. Que escolhas são essas? Podemos citar: a escolha de atores não-profissionais e do ótimo e sábio trabalho que foi feito com eles, fazendo-os manterem nos diálogos a linguagem natural, espontânea e coloquial do sertanejo de Minas Gerais – os atores, especialmente as crianças, foram escolhidos na própria região em que foi feito o filme. Isso traz uma coerência e uma arte incríveis. Algumas falas foram tiradas do livro quase que literalmente, mas sem soarem de modo algum artificiais ou “literárias”. Isso apenas mostra a genialidade de Guimarães Rosa (que foi um dos escritores que mais soube incorporar a língua popular ao discurso literário) e a sabedoria dos roteiristas e dos preparadores de atores do filme.

O engraçado é que a variante lingüística falada no filme é tão específica que não seria tão absurdo se Mutum fosse legendado em “português culto urbano”. O efeito negativo de tal trabalho de linguagem é que ela fica ainda mais difícil de entender em alguns momentos por causa do péssimo som do filme – muito abafado (a sonoridade das nossas produções ainda tem muito o que melhorar). Eu acompanhei a história facilmente, pois já tinha lido a novela. Mas quem não estiver preparado poderá encontrar dificuldades – embora parecesse que muitas pessoas na sala também já conheciam a obra de Rosa, haja vista a comoção forte e geral na cena em que Felipe / Dito “apenas” machuca o pé. Enfim, Mutum não tem aquela afetação, aquele pedantismo discursivo de alguns atores profissionais, particularmente os vindos do teatro ou da TV. O ator mais profissional e conhecido do filme é o promissor João Miguel (como o pai de Tiago), que é justamente um modelo para a atuação natural que o cinema pede, tendo já ganhado prêmios por sua participação em Cinema, Aspirinas e Urubus (2005).

Além do trabalho simples e espontâneo dos atores, a outra feliz escolha do filme foi a ausência total de música na trilha sonora. Em nenhum plano, o conteúdo dramático ou emocional é assinalado por aquela melodia chata. Todos os sons são diegéticos, ou seja, da própria cena. A verdadeira música do filme é o som da “fala gostosa do povo” (no dizer do poeta Manuel Bandeira) e o som da natureza do sertão: o vento nas árvores, a chuva, os passarinhos... De novo, a produção ganha em simplicidade e numa poesia coerentes tanto com o que é mostrado na tela quanto com o que foi escrito por Guimarães Rosa. A melhor qualidade mesmo de Mutum é essa simplicidade e naturalidade poéticas. Sandra Kogut mostra aquele povo sem o preconceito de uma visão apegada ao aspecto exótico, pitoresco ou grotesco que infectou muito a nossa Literatura antes de Guimarães Rosa e que continua infectando o nosso Cinema até hoje. Não há crítica ou conteúdo social em Mutum / Miguilim. Por que é que, no Brasil, toda obra que fale do “povo” tem que ter aparência de tese sociológica? A obra de Kogut / Rosa é uma parábola de cunho universal. O Cinema brasileiro respiraria muito melhor, com um fôlego mais profundo e longo, se se fizessem mais filmes universais.

Entretanto, o conteúdo universal não pode cair no pedantismo de um discurso filosófico que se debruça sobre um fato como uma jibóia abraça sua presa. Na obra de Rosa, o universal nasce do particular, da maneira a mais natural e espontânea possível. Guimarães Rosa incorpora a linguagem e o pensamento do povo sertanejo, misturando ao seu próprio pensamento, de um modo que não aparece aquela visão hierárquica, elitista, do escritor sobre o seu assunto, que é precisamente o que contamina muitos livros e filmes já cometidos neste país. Um problema antigo para a nossa Literatura e contemporâneo para o nosso Cinema é o da dissociação explícita entre o discurso narrativo do autor e o universo cultural representado, predominando uma visão “de cima para baixo” do escritor ou do cineasta sobre o seu objeto temático (que, no caso, envolve o universo das classes mais baixas). Sandra Kogut soube muito bem manter no discurso do filme a simplicidade, a naturalidade e a espontaneidade do olhar daquele povo, aliados ao “matutar” filosófico que pertence igualmente àquele povo (incorporado também por Guimarães Rosa). Esse é um sinal de respeito, de uma verdadeira sabedoria antropológica. Sem contar que, artisticamente, o filme ganha muito mais coerência. Aquele povo no filme não se enxerga a si mesmo como “povo”, como “classe popular”, mas como pessoas que vivem alegrias e tristezas de pessoas, daí o caráter universal.

Simplicidade, sensibilidade, coerência e universalismo. Lições para o Cinema tupiniquim.


domingo, outubro 21, 2007

O Caminho do Diabo


O Cinema pode não ser necessariamente um “campo de batalha”, como quis Samuel Fuller, mas alguns filmes possuem tanta coragem que merecem medalhas de honra. Um deles é O Caminho do Diabo (“The Devil’s Doorway”, EUA, 1950), dirigido por Anthony Mann, um dos mestres do faroeste norte-americano, que também se notabilizou em outros gêneros, sendo responsável pelos sucessos épicos de El Cid (1961) e de A Queda do Império Romano (1964). Mann também começou a filmar Spartacus (1960), mas desentendimentos com o estúdio fizeram a bola ser passada para Stanley Kubrick. O Caminho do Diabo é quase o primeiro (tirando Broken Arrow, dirigido por Delmer Daves no mesmo ano) a colocar o índio como indivíduo consciente e vítima do processo de ocupação do oeste, e não mais como um selvagem ingênuo ou cruel. Por isso, o estúdio (MGM) relutou em lançá-lo, mas quando o fez, o filme mostrou a que veio, causando muito impacto nos espectadores em geral e polêmica em críticas mais negativas.

O enredo trata de Lance Poole (Robert Taylor), um índio shoshone que retorna à sua terra e ao seu povo no estado do Wyoming após ter lutado como alto oficial (comandando homens brancos) pelos exércitos da União, na Guerra Civil. Porém, como é comum no cinema norte-americano, o filho pródigo que à casa torna não encontrará as coisas na mesma situação em que as deixou, e sim muito piores, dificultando muito sua adaptação a elas. No caso, o mesmo governo que Lance defendeu na guerra está investindo na ocupação de terras livres, incentivando com muitas facilidades os pioneiros que tomarem conta delas. Entretanto, algumas dessas terras “livres” pertencem à família de Lance Poole há incontáveis gerações. E aí, como é que fica? O resultado final facilmente já se adivinha.

O bravo e pobre Poole passa a sofrer um tratamento muito pior do que aquele que sempre fora dispensado ao seu pai (o líder da tribo). Na cidade e na região em redor, ele só encontra segregação, em todas as formas. Mas enfrenta os bullies (os valentões racistas) de cabeça e punho erguidos – afinal, ele é um soldado, tendo recebido até mesmo a medalha de honra do congresso (a maior honraria concedida até hoje pelo governo norte-americano). Quanto à questão territorial, Lance Poole, como bom cidadão civilizado, busca primeiramente consolidar e formalizar a posse de suas terras pelos meios legais; para tanto, procura um advogado, que descobre ser uma mulher. As minorias então se unem: Poole e a jovem advogada O. Masters (Paula Raymond) tentam de todas as maneiras civilizadas ajudar a tribo dos shoshone. Sem resultado.

Pressionado pelos fazendeiros e por um advogado racista (Louis Calhern), Lance Poole não retrocede e decide entocar-se em sua propriedade, defendendo-a com toda a força bruta que for necessária. A situação piora quando a tribo recebe um grupo de refugiados fugidios de uma “reserva” indígena, que ficaram sabendo que Poole estava conseguindo manter sua larga propriedade nas mãos. É preciso entender e levar em consideração aqui a forte ligação afetiva e cultural entre o índio e sua terra natal. O deslocamento para “reservas” é simplesmente inaceitável. Uma outra guerra então começa. Uma outra guerra trágica de “secessão”, muito mais pertinente e traumática do que a primeira.

A jovem advogada, preocupada com o massacre verdadeiramente selvagem que será perpetuado pelos fazendeiros que querem fazer “justiça” com as próprias mãos, decide contatar a cavalaria federal, para mediar e controlar o conflito. As tropas chegam; mesmo assim, Lance Poole não se rende. A batalha dura até que o líder (último homem de pé), levando um tiro mortal, faz um acordo com a cavalaria, de que as mulheres e crianças da tribo sejam conduzidas em segurança até a reserva. A cena final é digna dos melhores westerns: Lance Poole, vestindo o casaco de sua farda militar, é saudado em continência pelo comandante da cavalaria, que pergunta sobre os outros homens da tribo. Poole responde: “Morremos todos”. E cai.

Alguém me diga que filme contemporâneo, de conteúdo político polêmico, é realizado de modo tão contundente e ao mesmo tempo tão sutil? A arte de Anthony Mann é insuperável. A fotografia é composta de várias “pinturas”: os enquadramentos são compostos num delicado jogo de forças entre os elementos, procurando colocar o máximo possível na tela, da maneira a mais expressiva possível, trabalhando muito com a profundidade de campo, com os maravilhosos contrastes entre a luz e a sombra no preto-e-branco, com a bela e panorâmica paisagem montanhesa do Wyoming, filmada em locação (aqui sentimos a falta da cor). O domínio da linguagem e da arte cinematográfica é exemplar, temos aqui o melhor do cinema clássico de Hollywood.

O Caminho do Diabo foi o primeiro de muitos faroestes realizados por Anthony Mann, dos quais também se destacam Winchester 73 (idem, 1950), E o Sangue Semeou a Terra (“Bend of the River”, 1952), O Preço de um Homem (“The Naked Spur, 1952) e O Homem dos Olhos Frios (“The Tin Star”, 1957), estrelados por grandes atores como James Stewart, Gary Cooper e Henry Fonda.


quinta-feira, outubro 18, 2007

El Topo


El Topo (“A Toupeira”) é um famoso e típico filme cult (famoso no underground, é lógico). Dirigida e estrelada pelo mexicano Alejandro Jodorowsky em 1970, a película, para lá de experimental, enquadra-se de modo exemplar dentro dos padrões da arte de vanguarda, juntando diversos registros culturais na expressão de uma mensagem muito bem definida. A mistura entre budismo, catolicismo, surrealismo iconoclasta e contra-cultura típica dos anos 60 dá o caldo ao filme. O bizarro assoma de diversas maneiras, seja na violência explícita, no apelo sexual-escatológico, no uso de atores anões e deficientes físicos (numa chave bem circense), no insólito dos acontecimentos e dos cenários. Também chama a atenção o aspecto performático-teatral dos grupos de atores em algumas cenas, fazendo lembrar alguma peça de Zé Celso.

O enredo, basicamente (se é que se pode fazer uma sinopse), gira em torno da peregrinação mística do pistoleiro El Topo – uma mistura de Clint Eastwood e Jim Morrison – pelas paragens áridas do velho oeste mexicano. O atirador, todo vestido de preto, é acompanhado nas diversas etapas da sua jornada de iluminação interior sucessivamente pelo filho de sete anos, por uma mulher misteriosa (Mara), e por uma anã – envolvendo-se amorosamente com as duas figuras femininas. A busca de El Topo envolve vinganças, desafios e atos heróicos de liderança e de resgate – promovendo a libertação física e espiritual de si mesmo e de outros. Mais exatamente, o filme se divide em duas partes. Na primeira, El Topo, como pistoleiro impiedoso, vinga o povo de uma cidade, assassinado e mutilado por uma gangue criminosa, e liberta outra cidadezinha da mesma quadrilha. Depois, tem que duelar com os quatro grandes mestres-de-armas, para se tornar o maior de todos os atiradores. Na segunda parte, arrependido de seus pecados, El Topo passa por um lento e sofrido processo de purificação, vindo a se tornar uma espécie de monge budista, líder de uma comunidade subterrânea de párias sociais. Sua missão é ajudá-la a chegar à superfície, saindo do exílio no interior da terra. No processo, liberta uma outra cidadezinha, dominada por uma seita cruel e pagã.

El Topo é um clássico de cineclubes e bootlegs (cópias não-oficiais em vídeo). É adorado por gente que vai de John Lennon a Marilyn Manson, incluindo o também bizarro David Lynch. Só este ano o filme teve lançamento oficial em DVD – no mercado externo, é claro. “A Toupeira” é considerado o pontapé inicial no movimento dos midnight movies no cinema (filmes de baixo orçamento, geralmente polêmicos, que eram exibidos tarde da noite, inicialmente na TV, e depois na tela grande). A famosa sala Elgin, em Nova York, foi o principal palco dessas fitas nos anos 70. Além da produção de Alejandro Jodorowsky (que lotou a sala por vários meses, existindo fãs que viam o filme todas as semanas), também se destacam: Targets (1968), de Peter Bogdanovich, uma história policial de cunho social estrelada por Boris Karloff; A Noite dos Mortos Vivos (1968), a pedra angular dos filmes de zumbis, de George Romero; o nosso Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, adaptação do clássico da antropofagia literária modernista de Mário de Andrade; Pink Flamingos (1971), que envolve fetiches sexuais, incesto, sadismo e cropofagia (ingestão oral de fezes de animais); The Harder They Come (1972), estrelado por Jimmy Cliff, este filme ajudou a popularizar o reggae nos EUA; The Rocky Horror Picture Show (1976), famoso musical de “terrir”; e, finalmente, Eraserhead (1977), debute de David Lynch. As sessões de “midnight movies” também ressucitaram com grande sucesso o libelo anti-maconha chamado Reefer Madness (1938), ridiculamente pleno de desinformação.

Muitos desses filmes, incluindo naturalmente El Topo, são verdadeiras experiências lisérgicas. Mexem muito com os sentidos e com a mente. Irreverentes, iconoclastas, experimentais, buscam arrancar do automático a nossa visão e o nosso pensamento, fazendo o espectador tomar – nem que seja de maneira desagradável – uma outra consciência das coisas. No fundo, é o que faz a arte de vanguarda. Pode não ser a arte definitiva, mas com certeza ela é muito necessária de tempos em tempos.


quinta-feira, outubro 11, 2007

Tropa de Elite


Tropa de Elite deixa seu lugar marcado no Cinema nacional. O que não quer dizer que o filme seja bom ou ruim, essa é outra discussão. Não vou ficar aqui comentando a polêmica – em boa parte inútil – que se criou em cima da estréia na ficção de José Padilha (que fizera antes Ônibus 174). Acho que às vezes exige-se demais do cinema brasileiro, o que não deixa de ser compreensível. Em vista disso, eu prefiro destacar as escolhas – em forma e em conteúdo – que uma determinada fita faz e pesá-las com o que já se fez e ainda se faz no conjunto da sétima arte de uma nação. Essas escolhas não garantem, necessariamente e por si só, a “qualidade” de uma película; mas assinalam sua importância no contexto artístico e também no social (a arte não deve estar apenas a favor da própria arte). Quero dizer: além de ser bom ou ruim, um filme deverá ser pertinente pelo que mostra e pelo modo como mostra.

Assim sendo, quais são as escolhas de Tropa de Elite? O que fez esse filme que pode ser considerado marco (sem querer sobredourar demais a pílula) em nosso Cinema? É simples, nada muito difícil de perceber para quem vê com os olhos abertos:

1. A obra de Padilha traz o melhor do cinema policial, e sabemos que fazer filme de gênero no Brasil é quase uma utopia. E tem mais: Tropa de Elite ainda flerta com os filmes de guerra. Numa guerra, todas as coisas acabam ganhando uma proporção absurda, insustentável e irremediável, um verdadeiro impasse, inclusive moral. O melhor do cinema de guerra nos mostra o quanto a lógica e os valores se perdem, se misturam, se invertem e se confundem até o nível do pânico (que o diga o Capitão Nascimento).

2. O ponto de vista da narrativa é o de um policial (atenção ao que eu disse: não falei que o ponto de vista é o da polícia, mas o de um policial, devidamente individualizado e construído de modo complexo e profundo como toda personagem verdadeiramente humana; infelizmente muitos espectadores não tiveram o discernimento de perceber isso). Cansei de filme brasileiro que fala de “bandido”. Vamos dar voz também para o outro, ou outros lados, visto que o fenômeno é bem mais complexo do que se quer enxergar; o Brasil não é um país para iniciantes, aqui o maniqueísmo mocinho / bandido só serve à ingenuidade de uns ou à má fé de muitos.

3. José Padilha parece saber (sorte dele) da tolice de se acreditar no maniqueísmo acima. Desse modo, o seu filme toma todas as precauções para escapar ao policiamento ideológico que é uma das pragas neste país. Tropa de Elite chega a ser até irritante e simploriamente didático (especialmente na primeira parte) ao mostrar que o “buraco” do fenômeno social polícia-bandido é bem “mais embaixo”. Inútil. Se mesmo com toda essa pedagogia (o que faz a obra perder em arte), este filme ainda foi alvo dos piores vícios reacionários tanto da “direita” (gente que passa a adorar “o filme do Capitão Nascimento”) quanto da “esquerda” (gente que simplesmente execra “o filme fascista do Capitão Nascimento”), imagine se Tropa de Elite tivesse a sutileza que se pediria a uma obra verdadeiramente adulta... No fundo, muitos espectadores não sabem dissociar a voz do narrador e a voz do autor de uma obra, acredito que o cinema encontra-se num estado como o romance literário no século XIX. Assim, rezo para que apareça na nossa sétima arte um “Machado de Assis”, para quem o narrador não-confiável é o centro da obra. José Padilha mostra o caminho...

4. Tropa de Elite é um dos raríssimos estudos cinematográficos da sociedade brasileira que ousa apontar o dedo para a classe média (o espectador, sentado ou no conforto do cinema ou no conforto do seu sofá após ter comprado a cópia pirata da fita, que riu e se divertiu com o circo pegando fogo, jamais deve se esquecer da última imagem do filme). Pois é fácil botar a culpa no povo, nos bandidos, nos vagabundos, nos políticos corruptos, nos empresários cruéis ou numa alta elite sem rosto. O difícil é reconhecer o papel que todos nós fazemos neste estado de coisas. O playboy que usa drogas alimenta sim a criminalidade. Agora, se o caso é de legalizar as drogas ou de reprimir o usuário, isso é a segunda etapa do processo. Mas se a atitude do Capitão Nascimento é execrável, saibamos que somos nós os responsáveis no fundo por essa atitude. O Capitão Nascimento é apenas aquele que faz o serviço sujo para nós, e ele não gosta disso. O seu discurso como narrador (ponto alto do filme), entre irônico e ressentido, atesta bem os fatos. Mas o que fazer? Afinal, se o papa quer dormir perto da favela, a segurança da sua santidade precisa ser garantida, e nisso alguém vai ter que morrer, dentre polícia e bandido. Pois não se vai revelar para a sua santidade a guerra suja e inútil em que se vive no Brasil, muito menos se vai correr o risco do ocupante do trono de Pedro tomar uma bala perdida, até parece... (apenas reproduzo livremente o discurso do próprio Capitão Nascimento).

Dei muita risada com a cena dos universitários discutindo Foucault (“Vigiar e Punir”) na sala de aula. Esse pseudo-esclarecimento, no fundo hipócrita, das nossas elites intelectuais é foda mesmo. O playboy maconheiro estudante de sociologia com consciência social... que merda! O que é que essa gente entende dos fatos, de todos os horrores da guerra que se passa na vida real, fora da bolha acadêmica? Por isso Tropa de Elite faz muito bem em dar a voz ao policial, pois só o soldado tem credibilidade para falar do front (no fundo, o filme tem muito esse caráter de crônica do front). A obra de Padilha é tão didática que mostra o que significa, na verdade, o fato de a polícia ser uma das instituições que servem apenas aos poderosos (de acordo com Foucault): toda a questão do Batalhão de Operações Especiais “proteger” a todo o custo o papa mostra justamente isso. E mostra o como são difíceis as escolhas do policial numa situação dessas. É triste que aqueles universitários, trancados na sua torre de marfim, estejam muito, mas muito longe de entender isso – assim como muitos espectadores... Polícia para quem precisa, né?

sexta-feira, outubro 05, 2007

Sobre a Cegueira


Mais uma postagem com o bate-bola Cinema-Literatura. Algumas obras literárias são tão, digamos assim, fotogênicas, que a leitura torna-se uma experiência cinematográfica, uma película projetada na nossa imaginação. Transcrevo abaixo um pequeno trecho do Ensaio Sobre a Cegueira, do gigante José Saramago:

“Metido na guarita para proteger-se do frio, ao soldado de sentinela tinha-lhe parecido ouvir uns ligeiros ruídos que não conseguira identificar, de todo o modo não pensou que pudessem vir de dentro, teria sido o ramalhar breve das árvores, uma ramagem que o vento fizesse roçar de leve na grade. Outro ruído lhe chegou de súbito aos ouvidos, mas este foi diferente, uma pancada, um choque, para ser mais preciso, não podia ser obra de vento. Nervoso, o soldado saiu da guarita engatilhando a espingarda automática e olhou na direcção do portão. Não viu nada. O ruído, porém, voltara, mais forte, agora era como o de unhas raspando na superfície rugosa. A chapa do portão, pensou. Deu um passo para a tenda de campanha onde o sargento dormia, mas reteve-o o pensamento de que se desse falso alarme teria de ouvir das boas, os sargentos não gostam que os acordem, mesmo quando haja motivo. Tornou a olhar para o portão e esperou, tenso. Muito devagar, no intervalo entre dois ferros verticais, como um fantasma, começou a aparecer uma cara branca. A cara de um cego. O medo fez gelar o sangue do soldado, e foi o medo que o fez apontar a arma e disparar uma rajada à queima-roupa.”

Eu leio esse trecho como se estivesse assistindo a um filme. A cena inteira já me vem à cabeça, natural e espontânea, rigorosamente fotografada e montada. E essa cena me faz lembrar bastante os filmes de zumbis, principalmente os do mestre George Romero. Alguém mais percebe isso? Será que Fernando Meireles, que está filmando Blindness – adaptação dessa obra incrível – perceberá isso? A obra de José Saramago alia sutilmente a densidade mítica da fábula à ironia corrosiva do comentário social, temperadas com fino humanismo.. Será que Meireles captará tais sutilezas? No blog do filme, o diretor escreve:

“Ensaio Sobre a Cegueira permite tantas leituras que a toda hora me pego conferindo se este ou aquele viés da história estão contemplados no que tenho filmado. Cada vez que me asseguro de um ponto, outras quatro dúvidas aparecem. – ‘Tudo, não teremos’, dizia meu avô. Mas bem que tento.”
www.blogdeblindness.blogspot.com

Ficamos esperançosos. É esperar para ver (sem trocadilho). Mas bem que a cena acima poderia ser o “teaser trailer” do filme...

quinta-feira, outubro 04, 2007

Vidas Secas


Já discuti em outras postagens a dificuldade de se adaptar uma obra literária para o Cinema. Por ora, vamos apenas relembrar que a fidelidade ao enredo – que tanto se exige – absolutamente não importa. A não ser que o enredo, ou parte dele, seja de pertinência altíssima para a estética da obra ou para a sua mensagem. Um cineasta deve saber reconhecer qual o princípio que orienta uma determinada obra literária, e procurar fazer o seu filme movendo-se pelo mesmo princípio. O sucesso artístico de uma fita “baseada” em um livro depende exclusivamente disso. Um grande filme não será aquele que se agarra ao seu livro e mantém os seus olhos sempre fixos nele, como um apaixonado. Um grande filme e seu grande livro caminharão juntos tendo em vista um ponto comum. É mais uma relação de coordenação do que de subordinação.

O princípio, ou princípios que orientam uma obra literária e que serão tomados pela obra cinematográfica devem ser, logicamente, de caráter profundo e relativamente universal. Um poema ou um romance também se move por princípios particulares relativos à estética, mas esses dificilmente serão assimilados pelo Cinema, visto se tratarem de linguagens obviamente diferentes. Por exemplo: De que maneira Nelson Pereira dos Santos pode levar ao seu filme Vidas Secas a forte presença do discurso indireto livre, que tem grande função estética no romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos? É complicado, não? Mas o diretor pode, com certeza, buscar na “poética” do Cinema algum recurso que ele acredite ser o mais equivalente ao discurso indireto livre literário...

Ou ele pode se orientar apenas por elementos estilísticos mais amplos que o romance possui: o silêncio das personagens; a estrutura narrativa fragmentária e cíclica; a atmosfera claustrofóbica do espaço infinitamente aberto do sertão na seca (paradoxo interessante); a angústia de uma condição da qual não há saída, aliada à esperança profunda que se procura manter com todas as forças, lutando com todas as forças contra as forças do meio; a escrita simples, despojada, concisa e objetiva (na qual a “câmera-caneta” pode muito bem se alfabetizar); dentre outros. Observando esses aspectos, o filme pode provocar no espectador efeitos subjetivos muito similares aos provocados pelo romance em seu leitor. E é justamente isso o que faz Nelson Pereira dos Santos em Vidas Secas (Brasil, 1964). Por isso é um grande filme e grande adaptação de uma obra literária.

Porém, eu não gosto de usar a palavra “adaptação”. Ela traz certa conotação de algo que está apenas subordinado. Prefiro agarrar-me ao termo “equivalência”. A estética do cinema Neo-Realista da Itália é perfeitamente equivalente à estética da obra de Graciliano Ramos que, por sua vez, aproxima-se bastante do romance Neo-Realista dos anos 30. Leia-se As Vinhas da Ira (“The Grapes of Wrath”) de John Steinbeck e faça-se o interessante exercício de comparar os dois livros, e sobretudo os dois filmes que se fizeram sobre eles. É claro que tais aproximações devem ser feitas com todo o cuidado, mas sem medo de ser feliz. Tendo em vista a filmografia anterior de Nelson Pereira dos Santos (principalmente Rio, 40 Graus, 1955; e Rio, Zona Norte, 1957), não consigo pensar em outro que seja mais apto a levar Vidas Secas para a tela grande. O Cinema-Novo brasileiro foi um saco de gatos e de estilos. Mas o Neo-Realismo de Nelson Pereira dos Santos casa muito bem com o de Graciliano Ramos.

Apesar de tudo, o filme Vidas Secas não está livre de problemas: a interpretação dura dos atores e o didatismo da expressão fílmica deixam a coisa um tanto artificial em alguns momentos – mas poucos momentos. O que importa é que a câmera de Nelson tem tanta sobriedade quanto a caneta de Graciliano; não há qualquer música na trilha sonora, não há qualquer apelo emocional. Predomina o silêncio mudo e seco de uma vida seca, de pessoas secas, de um universo seco. É natural que as personagens aqui falem mais do que no livro. Mas essa é apenas a solução encontrada pelo cineasta: o monólogo interior que se manifesta no exterior. É bem significativa a cena em que Fabiano e Sinhá Vitória falam ao mesmo tempo: não se trata de um diálogo, mas de dois fluxos de consciência que vão se atropelando. Em outros momentos, buscando o mergulho na alma das personagens que faz Graciliano Ramos, Nelson Pereira dos Santos simplesmente joga a câmera na cara das pessoas, como que tentando adivinhar o que se passa dentro daquelas cabeças. Eis a expressividade do Cinema. A cena da morte da cachorra Baleia é, por si só, antológica, assim como o seu capítulo equivalente no romance.

Vidas Secas, como todo grande Cinema, é um filme repleto de planos belos e plenos de significado – sem ser excessivamente pretensioso. Repare na fotografia acima deste texto e entenda que o cineasta de verdade é aquele que sabe exatamente onde colocar a câmera...


segunda-feira, setembro 24, 2007

Possuídos


Possuídos (EUA, 2006, dir.: William Friedkin) assusta. E muito. Mas esse susto não é aquele pular fácil do espectador na cadeira que infesta os filmes “de susto”. Possuídos não é um filme de susto. É um filme de horror, no sentido mais pleno da palavra. William Friedkin vai semeando e cultivando a semente do horror na alma do espectador com a paciência com que se cuida de um bonsai. Um horror sufocante que, no entanto, temos de encarar de frente. Melhor dizendo: temos de vivenciá-lo. Assim, o incômodo do filme não é físico, ninguém vai ficar se agitando ou pulando na cadeira. É a nossa alma que vai ferver, até chegar num estado de pasmo quase catatônico. Possuídos nos envolve na claustrofobia de uma atmosfera tão absurda que chega a flertar com o surreal; porém, essas são as tintas que colorem um retrato absolutamente realista ao extremo, humildemente mimético.

Pensando nessas características, não podemos deixar de nos lembrar do realismo mágico na Literatura, particularmente na obra de Júlio Cortázar. Dando lenha à sanha de enquadrar (ou aproximar) tudo dentro de gêneros, vamos ter que dizer que Possuídos não é um filme de horror; é um filme realista-mágico / fantástico. Esse gênero, que guarda proximidades com o surrealismo, é para mim muito mais assustador do que aquele terror propriamente sobrenatural de um Romantismo pueril, ou aquele terror psicopata / sádico que (não é de se surpreender) agrada tanto a nossa época pós-moderninha. Dizer que películas do tipo Jogos Mortais são de terror psicológico é uma besteira própria de quem não sabe (ainda) a real e profunda dimensão do “psicológico”. É aí que filmes como Possuídos ganham peso.

A obra de Friedkin – assim como as do realismo mágico ou as do surrealismo – mergulha fundo na psicologia do indivíduo e da sociedade, cutucando com vara curta as feridas sempre abertas do inconsciente (seja individual seja coletivo) ainda não integrado de maneira saudável ao consciente iluminista. Essa dissociação consciente-inconsciente se manifesta na vida e na cultura de formas variadas. Possuídos é uma delas. Este filme naturalmente mexe com temas sócio-políticos muito contemporâneos e muito pertinentes – o realismo mágico e o surrealismo também têm um engajamento social, já que o inconsciente também é coletivo – mas o buraco é muito mais embaixo (ou mais em cima, quer dizer, o problema está na cabeça das pessoas). Isso nos faz especular o quanto de problemas sociais e políticos são, no fundo, problemas psicológicos.

É nisso que Possuídos assusta, e assusta mais do que muitas coisas aparentemente mais assustadoras por aí. O filme nos coloca em contato com questões muito interiores que estão longe de serem resolvidas, por exemplo: a difícil integração – inclusive psicológica – do indivíduo na coletividade; a obsessão para com o corpo, a conquista e a manutenção dos relacionamentos afetivos e amorosos; o medo paranóico que o “eu” tem de um “outro” diferente, desconhecido e incompreendido. Essas coisas todas não despertam em nós um mero susto; elas provocam uma sensação de horror ao mesmo tempo depressivo e ansioso, que nos envolve e sufoca até os limites do pânico. Repito: a sensação é similar à de quando entramos em contato com certas obras do realismo mágico e do surrealismo, ou quando vemos filmes do tipo Apocalipse Now (de Francis Ford Coppola) ou Cidade dos Sonhos (de David Lynch). O mal-estar psíquico é muito grande.

A estética com que todo esse conteúdo é apresentado é digna de admiração, porque contribui muito para o efeito provocado no espectador. Como eu disse no começo, William Friedkin filma com o cuidado, com a paciência e a simplicidade de um lavrador. A fotografia não tem aquelas descolorações, aquelas granulações ou outros artifícios “fáceis” do tratamento de imagem que não passam de purpurina nos olhos de muitos filmes “de horror”. É claro que alguns chicotes (movimentos de câmera rápidos) e trepidações no enquadramento incomodam um pouco (para mim, que sou classicizante, eu admito), mas são mínimos esses elementos dinâmicos de vídeo-clipe. O ritmo do filme é lento e despretensioso: durante a primeira metade a gente se pergunta se é realmente um filme de terror. Mas essa demora só contribui para aumentar o choque violentíssimo que a segunda metade (e especialmente o final) provocará no espectador. O diretor vai mesmo plantando, quase que imperceptivelmente, as sementes do horror; e elas vão crescendo lentamente, de uma maneira que nós não calculamos o resultado absurdo de tudo, mas uma hora nós nos descobrimos envolvidos incondicionalmente numa loucura irremediável e irreversível.

O ótimo trabalho do casal de atores centrais: Ashley Judd (vivendo Agnes White) e Michael Shannon (como Peter Evans), e dos poucos coadjuvantes: Harry Connick Jr. (Jerry Goss), Lynn Collins (R. C.) e Brian F. O’Byrne (Dr. Sweet) e o cenário (a maior parte da narrativa se passa num quarto de motel de estrada no meio do deserto do meio-oeste americano) contribuem poeticamente para a criação da atmosfera psiquicamente hermética da história. Todo esse fechamento excludente (em torno de poucos atores, num cenário único, pequeno e fechado – o filme foi baseado numa peça teatral), o cerceamento, o sufoco claustrofóbico de um meio (psíquico ou social, interior ou exterior), compõem o clima, o assunto e a mensagem de cunho psicológico do filme.

continuação de Possuídos


William Friedkin parece escarnecer da paranóia tradicional das teorias da conspiração: veja-se o diálogo, que mais está para dois monólogos encadeados (a dimensão teatral do filme é magnífica), entre Agnes e Peter em que ambos vão tecendo os fatos, as causas, as conseqüências e todas as relações “lógicas” que compõem a fabulosa trama “de espionagem” em que o casal “vive”. Essa cena é, fascinantemente, ao mesmo tempo muito risível e patética. Os personagens vão tricotando a “rede” ao seu redor de maneira admiravelmente criativa e de modo tão espontâneo quanto no processo da imaginação ativa (Jung explica). Apesar disso, Friedkin dá a entender nas entrelinhas do filme que tudo aquilo pode ter um fundo de verdade, mas lá no fundo mesmo. Porém, essa verdade é diferente do que se pensa. Os insetos não existem. Mas “experiências” militares altamente secretas com cobaias humanas (particularmente experiências psicológicas) podem existir.

Quando aproximamos Possuídos do realismo mágico, do surrealismo ou mesmo da ficção científica, é preciso lembrar sempre de guardar as devidas proporções. A aproximação que eu faço está focada no tom, na atmosfera e no clima do desenvolvimento narrativo, e também nos temas mais profundos que são discutidos usando tais traços estilísticos (questões psicológicas e sociais). Agora, no aspecto propriamente dito da fabulação, William Friedkin é bem claro em deixar de lado qualquer elemento fantástico. O diretor não mantém sequer uma ambigüidade em relação aos “insetos”; é óbvio que eles são fruto da mente doentia ou adoecida do personagem. Ao contrário de filmes como Alien, O Oitavo Passageiro (de Ridley Scott) ou as fitas de zumbis de George Romero, ou muito da ficção científica ao mesmo tempo realista e mágica, em que o elemento fantástico possui uma carga metafórica que lhe dá significado amplo e é a razão da sua “existência”, Possuídos renega o fato dos insetos misteriosos per si. Sua imagem não tem qualquer validade factual (apenas os vê os personagens contaminados pela paranóia alucinante), o próprio filme admite que eles são apenas “desculpa” para tratar de outros assuntos, propriamente psicológicos e sociais. Essa é a diferença entre o realismo de Possuídos e o realismo fantástico.

Mas eis que outras ambigüidades permanecem: será que a mente de Peter Evans é doentia ou está apenas adoecida? Quem garante que a sua paranóia delirante não é fruto de “experiências” que o soldado “deserdado” sofreu nas mãos das forças armadas? Os insetos são com certeza irreais; mas e se essa obsessão tiver alguma coisa a ver, de fato, com a vida militar do personagem? E os telefonemas misteriosos que Agnes White recebia ANTES de ser “contagiada” pela loucura de Peter, e que continuou recebendo após? Enfim, a abertura semântica do filme reside entre o que NÓS espectadores vemos e o que nós não vemos. O Cinema, como arte que mais se aproxima da realidade objetiva, apega-se muito à verdade do ícone, que é a imagem denotada, que “fala” de si e por si mesma (citando as idéias do lingüista Charles Sanders Peirce, pioneiro no pragmatismo e na semiótica). Assim, normalmente, o que vemos na tela é real. E ponto. Eu disse “normalmente” porque muitos filmes representam iconograficamente a visão de algo subjetivo da personagem (o visionário), até mesmo um delírio ou alucinação propriamente dita. O exemplo mais claro é a transformação de Carlitos em um frango de proporções humanas (Em Busca do Ouro, 1925, de Charles Chaplin); nós nos divertimos em ver um enorme frango perseguido por um homem esfomeado, mas sabemos que esse “frango” não passa do delírio provocado pela fome.

Agora, o que temos em Possuídos? William Friedkin decidiu por não mostrar objetivamente para o espectador os insetos fantásticos, nem com o significado de serem apenas imagem icônica da alucinação de certas personagens (pois outras também não os enxergam). Ou seja: os insetos são indiscutivelmente elementos do delírio de pessoas com doenças psiquiátricas. Entretanto, o espectador vê o telefone tocando naquelas ligações misteriosas. E mais importante ainda: o espectador vê as fortes luzes e ouve o som próximo e ensurdecedor do que parecem ser helicópteros cercando o quarto em que Agnes e Peter se escondem. Acreditando no ícone, será que poderíamos dizer que o casal está de fato sendo perseguido pelos militares e que pelo menos parte da paranóia se comprova de fato? Ou será que a perseguição é da polícia a um fugitivo do hospício, e apenas isso? (A figura do Dr. Sweet mantém e contribui mais ainda para a ambigüidade, quando ele assimila e mergulha no delírio paranóico de Agnes, dialogando com ela usando o mesmo discurso; seria isso apenas uma técnica psiquiátrica?).

Mas e se esses elementos fizerem apenas parte também da alucinação? (Há indícios que argumentam em favor dessa tese: no cerco dos “helicópteros” o quarto inteiro treme e chacoalha absurdamente, como a casinha levada pelo tornado em O Mágico de Oz; o próprio som das hélices nasce quando as personagens voltam o rosto para o teto e fixam o olhar no ventilador em funcionamento – a câmera o mostra em primeiro plano – lembrando o começo de Apocalipse Now). Se os telefonemas misteriosos e os helicópteros também são alucinações, por que o diretor escolheu mostrá-los ao espectador, e não aos insetos? Enfim, Possuídos envolve MESMO o espectador no universo da dúvida insolúvel, do medo irremediável e da paranóia irreversível. Preciso dizer que o fim é trágico?

quarta-feira, setembro 19, 2007

Last Days


Gus Van Sant é um cineasta estiloso. Não digo estilístico, apenas “estiloso” mesmo. A fotografia milimetricamente calculada, aproveitando bastante a profundidade de campo, e a montagem em planos muito, muito longos, imprimindo um ritmo pra lá de lento, são os principais cacoetes da técnica do diretor que ousou fazer um “remake” (parecido demais com o original) de Psicose (1998). Vendo os filmes de Van Sant, particularmente este mais recente Last Days (EUA, 2005), entendemos que essas marcas de estilo – que por si só, em princípio, já chamam muito a atenção – são usadas para mostrar e imprimir (quase que literalmente) em nossos olhos e na memória aquilo que foi captado pela câmera. Para Van Sant, o conteúdo da imagem é colocado no mais alto pedestal. O estilo do cineasta chama a atenção porque mostra o que ele quer mostrar de maneira excessiva, até o esgotamento, cansando o espectador.

Porém, antes que alguém já pense em aproximar o diretor de Elephant (2003) do Neo-Realismo italiano, ou da estética minimalista e meditativa de Andrei Tarkovski ou do cinema iraniano, façamos uma ressalva: falta a Gus Van Sant o olhar humanista, condescendente, subjetivamente próximo do objeto focalizado. Gênio Indomável (“Good Will Hunting”, 1997)) pode até ser um filme mais meigo, mas com certeza não é o caso de Last Days. A pseudo / quase-biografia de Kurt Cobain é uma visão excessivamente distanciada (a própria fotografia atesta isso em muitas cenas focadas no decadente Blake, o astro “clichê” do rock, particularmente na seqüência inicial). O olhar de Van Sant sobre um ídolo do rock está nos antípodas do olhar de Oliver Stone em The Doors (1991), sobre Jim Morrison. É claro que Morrison e Cobain são figuras absolutamente diferentes, pertencentes a contextos muito diferentes; e é claro também que Van Sant não precisaria ser tão elegíaco quanto Stone, mas a frieza aqui chega perigosamente perto de uma reificação do indivíduo humano. Tal reificação, usada para quem sabe criticar o star system do Rock And Roll, acaba equivalendo-se a esse mesmo “sistema”. É impressão minha ou eu senti até mesmo um tom escarnecedor na cena em que as autoridades retiram o corpo de Blake? (especialmente no uso da trilha sonora). Outro momento escarninho: a câmera fixa na TV que mostra um vídeo-clipe de R&B enquanto Blake fica “fritando”...

O distanciamento do olhar de Van Sant, por um lado, traz liberdade ao nosso próprio olhar e julgamento, mas, numa perspectiva tão ampla, numa profundidade de campo tão larga, a figura humana reduz-se a apenas mais um elemento do cenário. Não concordo com isso. Last Days teria muito a ganhar se fosse apenas um pouco mais próximo (inclusive no uso de primeiros planos) e subjetivo. Num plano médio, o elemento humano mantém a sua importância e ainda somos capazes de perceber a sua relação com o meio. De qualquer maneira, Last Days está graças a Deus longe daquela elegia descarada e condescendente demais que infesta os filmes-biografias de astros e estrelas da indústria cultural.

Apesar de tudo, a solução estética de Van Sant não é desprovida de pertinência. É significativo o contraste entre a câmera sóbria e serena que acompanha Blake e o caráter insólito e errático dos seus últimos dias. Percebemos com outros olhos o absurdo daquele personagem e da sua vida. Sem apresentar qualquer elemento de fantástico, o filme nos envolve na atmosfera do irremediavelmente insano, do incondicionalmente irracional, numa claustrofobia psíquica asfixiante e sem saída, quase como nos filmes “surreais” de David Lynch. Torna-se esteticamente bela uma existência vazia, bagunçada e destruída das piores maneiras possíveis, totalmente em ruínas, captada e transmitida melancolicamente por um filme monótono e lento.


segunda-feira, setembro 17, 2007

A Hora e Vez de Clint Eastwood


Clint Eastwood é o artista mais clássico do cinema contemporâneo. O rigor e a sobriedade formais com que ele nos apresenta os seus filmes remetem à disciplina de um quadro do Renascimento; junto disso, os temas e mensagens veiculadas são tão antigos e universais quanto a própria cultura humana. Clint Eastwood sempre toma as circunstâncias mais particulares (a Segunda Guerra Mundial, o universo do boxe, o “far-west”) para arrancar delas o máximo de pertinência humana, que transcende qualquer tempo e lugar. Os filmes de Eastwood podem muito bem ser estudados como documentos, mas o cineasta vai bem além do documental. Tomemos aqui o caso particular de Os Imperdoáveis (“Unforgiven”, EUA, 1992). Os maiores westerns já produzidos pelo cinema não ficam apenas na discussão das questões particulares da ocupação do oeste americano. Eles ascendem à esfera do mito (personagens e situações míticas), carregado de significado arquetípico. Os grandes “faroestes” são parábolas em que o vazio e a amplidão do espaço diegético (o lugar em que se passa a narrativa fílmica) sugerem a abrangência universal dos conteúdos (o Monumental Valley, imortalizado nos filmes de John Ford, possui uma força poética e sugestiva que vai além de qualquer descrição em palavras); as estórias poderiam acontecer em qualquer lugar ou época, com quaisquer pessoas (já citei o aforismo do nosso Guimarães Rosa: “O sertão é do tamanho do mundo”). Essa dimensão é o melhor dos filmes de “bangue-bangue”. Basta lembrarmos de No Tempo das Diligências, Rastros de Ódio, Sete Homens e um Destino, Duelo de Titãs, Matar ou Morrer, Era Uma Vez no Oeste... Façamos a conexão entre essas obras e as velhas novelas de cavalaria medievais, a literatura sertaneja de Guimarães Rosa (particularmente o romance Grande Sertão: Veredas), os filmes de samurai de Akira Kurosawa, e teremos uma idéia do verdadeiro cosmo de mitos universais que povoam culturas das mais diferentes. As maiores fitas de “bangue-bangue” são carregadas de épico e de lírico misturados e elevados a uma potência que só encontramos nos maiores clássicos da Literatura.

Em Os Imperdoáveis, Clint Eastwood, mais do que com o épico e com o lírico, vai trabalhar com o terceiro gênero fundamental da Literatura Clássica: o dramático. Este filme – assim como outros do diretor: Sobre Meninos e Lobos (“Mystic River, EUA, 2003), por exemplo – constrói-se como uma tragédia grega clássica: temos aí o indivíduo que se vê preso em uma teia cada vez mais elaborada de acontecimentos cruéis, de uma tal forma que parece (é o que queremos acreditar) ser ação de forças superiores (o destino ou os deuses caprichosos); não obstante, trata-se apenas das conseqüências de suas próprias atitudes. Assim sendo, esse sujeito deve superar o próprio karma para consolidar a mudança de vida e a redenção por pecados passados (ainda que tal redenção seja apenas psicológica, pois o que mais importa às vezes é o indivíduo perdoar-se a si mesmo). Eis o caso do personagem de Clint Eastwood em Os Imperdoáveis – e também em Menina de Ouro (“Million Dollar Baby”, EUA, 2004). Além disso, o filme apresenta de interessante o fato paradoxal de que, para se reabilitar perante si próprio, o ex-pistoleiro tem que voltar a pecar. Alguém aí se lembra de A Hora e Vez de Augusto Matraga, magnífico conto de Guimarães Rosa? Frankie Dunn aceita pegar em armas mais uma (última) vez, com a meta de fazer justiça a outro (vingar a prostituta) e a si mesmo (ganhar a recompensa financeira). Entretanto, o desenrolar dos acontecimentos (eis o aspecto trágico) leva-o a perder a objetividade de suas ações, assim como o equilíbrio tão duramente conquistado ao abandonar a vida do crime; Frankie acaba cometendo atos realmente cruéis; em seu âmago, ele volta a ser e a sentir coisas que acreditava superadas, mas cuja lembrança ainda o atormentava.

Com isso, chegamos à mistura entre Classicismo e Romantismo que a fita (e outras do cineasta) promove. É do Romantismo essa demanda subjetiva e os tormentos psíquicos que explicamos, são românticas as questões de honra (a dignidade das prostitutas), amor (lembre-se que era a falecida esposa de Eastwood que o tinha salvado da vida bandida) e lealdade (o amigo Morgan Freeman) que também definem outros grandes westerns. No plano formal, temos a decupagem clássica – simples e objetiva – junto de um tom melancólico trazido pelos rostos e pela trilha sonora; porém, tudo com muita sobriedade. Um Romantismo sóbrio. Ou um Classicismo ébrio.

Eis a hora e vez de Clint Eastwood.


sexta-feira, setembro 14, 2007

Cinema, Aspirinas e Urubus


Cinema, Aspirinas e Urubus é um filme que chama a atenção. Chama a atenção porque é diferente de muita coisa que se vê na produção nacional da atualidade. E o melhor é que a película de Marcelo Gomes chama a atenção não pela simples e pueril razão de “chamar a atenção” – que é justamente o que ocorre com muito do cinema tupiniquim, particularmente com o do seu conterrâneo Cláudio Assis. Cinema, Aspirinas e Urubus é verdadeiramente dotado de uma densidade poética, que carrega muito o que dizer e mostrar. Tal densidade nunca se desloca do foco essencialmente humano. O homem é o elemento mais importante, muito mais do que o ambiente físico ou o meio social. O filme exala uma paixão e um respeito reverentes pela humanidade. Um olhar abrangente e livre em cima dos personagens, um olhar que não julga, que não “analisa”, que não busca compreender ou explicar dentro de categorias muitas vezes questionáveis, um olhar que simplesmente vê. E ponto. Não é isso o que deveria ser o Cinema? No entanto, já é muito mais do que se pode pedir da moda “naturalista” que assola a nossa sétima arte e os seus filmes “de tese”.

É claro que Cinema, Aspirinas e Urubus mostra muitas coisas sobre as quais o espectador pode – e deve – exercer um julgamento discernente. Mas isso caberá ao espectador. O filme em si, em seu próprio discurso, não se encaminha para qualquer linha argumentativa, não defende nenhuma “tese”. É uma obra aberta. Como a vida é aberta. Como o homem é aberto. Repito: Cinema, Aspirinas e Urubus é uma obra notável porque não apresenta os vícios e as afetações que infestam o cinema brasileiro contemporâneo. É um filme sóbrio e sereno: na fotografia, na montagem e na direção dos atores (isso é o melhor, pois os atores aqui passam longe daquela afetação teatral-televisiva que polui muitos filmes com pretensão a serem “grande arte”). A fita de Marcelo Gomes deixa-se levar natural e espontaneamente, como um rio, pelo embalo de suas próprias forças simples – particularmente o enredo (minimalista e fluente, bem amarrado e centrado no cotidiano, quase “neo-realista”) e os personagens. Se o problema tão falado do nosso cinema é o roteiro, este filme é a solução.

Cinema, Aspirinas e Urubus passa longe de virtuosismos barrocos / parnasianos. É claro que a estética do filme é muito bem trabalhada, mas sempre e exclusivamente a serviço do conteúdo humano, trabalhado de maneira sadia. É o que fazem as grandes obras de arte. Só o fato de chamá-lo de “road movie” já seria uma pretensão, um excesso de análise e de categorização racionalizante a que o filme não se propõe de maneira alguma. O máximo de análise a que nos permitimos aqui é dizer que Cinema, Aspirinas e Urubus trata de grandes temas (a seca no sertão nordestino, a Segunda Guerra Mundial) sem descair para a pretensão, a prepotência ou a auto-indulgência. Repito: a humanidade simples dos fatos e questões humanas essenciais é o que prevalece. O filme une o particular e o universal, o micro e o macro de maneira admiravelmente equilibrada e pertinente. Isso é raro de se atingir. A tensão entre esses elementos opostos – que não obstante se unem e se igualam – é o que faz a força e a beleza da película.

Deixo para que o leitor reflita sobre o significado desses elementos: um imigrante alemão vendendo aspirinas no sertão nordestino em 1942; a sua amizade com um retirante da seca; o fato de o próprio alemão acabar se tornando um retirante (spoiler: tendo o Brasil declarado guerra à Alemanha nazista); as bombas que caem na Europa fria e escura e a quietude faminta do sertão ensolarado vigiado pelos urubus; uma cena altamente poética: as imagens cinematográficas do Rio de Janeiro projetadas na mão do retirante cujo sonho é ir para lá. Por mais remoto que pareça, o sertão não é tão isolado assim. A confluência dessas oposições que o filme trabalha tão sabiamente, a confluência do sertão e do mundo, faz-nos pensar nas antológicas frase de João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas:

O sertão é do tamanho do mundo.

O sertão está em toda parte.

Cinema, Aspirinas e Urubus desnuda-se completamente daquela pretensão messiânica que o nosso cinema, cronicamente carente de auto-afirmação, possui. Cinema, Aspirinas e Urubus não pretende vir para ficar. Por isso é que acaba ficando. O filme não pretende ser coisa alguma além de um filme. Por isso acaba sendo um grande e notável filme. É muito difícil encontrar paralelos em nossa produção audiovisual atual, por isso apelamos (mais uma vez) para a Literatura: a poesia de Marcelo Gomes tem aquela simplicidade e espontaneidade (que, no entanto, são frutos de uma elaboração estética conscienciosa), aquele olhar generoso, humilde e apaixonado pelo gênero humano e pelas coisas que encontramos na poesia de Manuel Bandeira.

Maçã

Por um lado te vejo como um seio murcho
Pelo outro como um ventre de cujo umbigo pende ainda o cordão placentário

És vermelha como o amor divino

Dentro de ti em pequenas pevides
Palpita a vida prodigiosa
Infinitamente

E quedas tão simples
Ao lado de um talher
Num quarto pobre de hotel.