quarta-feira, agosto 27, 2008

Lemon Tree


As grandes coisas estão nas pequenas. A parte sempre revela o todo, com singular expressividade. Não há nada que seja tão banal, simples e “sem importância” o suficiente que não mereça a melhor de nossa atenção, pois lá é que as nossas “questões” se revelarão de maneira mais peculiar. Segundo a única perspectiva que realmente interessa – a “humana”, individual ou coletiva, isso não vem ao caso – as coisas mais desprezadas tornam-se as mais valiosas, porque significativas. O olhar míope da História, da Política ou de qualquer outra artimanha de segunda natureza que inventemos para justificar nossa cegueira somente faz por nos afastar das verdades mais essenciais. Assim, alguns limoeiros pode sim – e deve – ser o ponto mais importante dos conflitos entre israelenses e palestinos.

A alegoria, aqui, vai mais longe do que parece. Os limoeiros não apenas representam a terra, a etnia, a religião, a cultura em conflito; os limoeiros são a própria humanidade de uma mulher, sua história de vida, seus afetos, sua alma. Os limoeiros não são nada que diga respeito exclusiva e particularmente ao povo palestino, os limoeiros somos todos nós – inclusive os israelenses. Essa dimensão de sensibilidade nunca, nunca, jamais deve ser deixada de lado nas reflexões e debates sociais, políticos, históricos, econômicos, ou o diabo que o seja. Com o risco de repetirmos (mais uma vez) formas de barbárie cujos resultados já conhecemos bem demais. Eis o que de melhor pode ser destacado neste Lemon Tree (França / Alemanha / Israel, 2008, dir.: Eran Riklis).

A sensibilidade e o foco no pequeno, no particular, mas na medida apenas em que revelam o universal, são as ricas experiências que este filme pode nos proporcionar. O mais incrível – ou o mais lógico, por outro lado – é que o roteiro se baseia numa história real, o que serve para mostrar o quanto a vida e o mundo são repletos de coisas e de acontecimentos altamente significativos em sua “insignificância”, dotados naturalmente de incríveis potenciais estéticos, apenas a espera da atenção do artista. Ou de qualquer um de nós. A história é a de uma solitária viúva palestina, Salma Zidane, que vive a cuidar de um pomar de limoeiros herdados do seu falecido pai. Quando se muda para a propriedade do lado ninguém menos que o ministro da defesa de Israel, Israel Navon, o “inferno” da pobre senhora começa.

O ministro, apoiado pelo serviço secreto – ou vice-versa, isso pouco importa – dá a ordem para que se derrubem as árvores, uma vez que elas “poderiam” servir de esconderijo para terroristas. A Sra. Zidane não acata a decisão, e resolve trilhar uma verdadeira “via crucis” jurídica (com o perdão do trocadilho cristão) para tentar derrubar a “política territorial” do ministro, com a ajuda de um jovem e inexperiente advogado (também palestino). É a jornada solitária do “fraco” contra os “fortes”, embora a Sra. Zidane não estará tão sozinha assim: ela encontrará apoio de onde menos espera, mas também oposição. É um filme bem equilibrado, com narrativa e personagens bem consistentes, sem deixar perder a consistência dos temas e mensagens alegóricas trabalhados por esta parábola sensível.

O leitmotiv visual do filme são muros e cercas que separam, isolam as pessoas. É uma solução demasiado fácil para nossas dificuldades de convivência e aceitação do outro. Os limoeiros representam o poder de uma natureza que compõe um sistema orgânico com tudo e com todos. Todos precisamos de limões – inclusive o ministro de Israel, como se vê – assim como os limões precisam de todos nós; quero dizer, os limões não escolherão entre as mãos de um lavrador judeu ou árabe. A cegueira lúcida da natureza, mais uma vez, contra a lucidez cega de uma “civilização” sectária, dissociada, no final das contas moribunda. Através desse foco específico, o filme discute as coisas em uma dimensão totalizante. Só mesmo um espírito mesquinho (mas comum) para desdenhar da luta da Sra. Zidane com os seus limões, dando preferência a coisas mais “importantes”, quaisquer que sejam elas.

terça-feira, agosto 26, 2008

The Clone Wars


A saga Star Wars, de George Lucas, foi pensada e construída com a colaboração do famoso mitólogo norte-americano Joseph Campbell (pelo menos um de seus livros, “O Poder do Mito”, é de leitura obrigatória para qualquer um interessado em cultura humana – existe uma versão em DVD, já que a obra se baseia numa série de entrevistas para a televisão). Na era da indústria cultural, “Guerra nas Estrelas” é o que mais se aproxima de Homero. Contudo, todo o poder do mito está mais concentrado nos seis filmes de longa-metragem live-action que constituem o “básico” da narrativa (a ascensão e queda – e ascensão final – de Anakin Skywalker).

Os capítulos em desenho animado da saga – mais recentes – não apresentam o mesmo conteúdo filosófico; pelo menos, nada muito original ou diferente do que já foi tratado. Mesmo assim, podem apresentar algum – ou muito – interesse para os fãs da série e para espectadores sem preconceitos contra as coisas “infantis” ou de “mero entretenimento”. Primeiramente, foi produzida uma série de 25 animações curtas, e desenhadas “à mão”, para a rede de TV paga Cartoon Network, entre 2003 e 2005, intitulada Clone Wars (que trata dos acontecimentos ocorridos entre o episódio II e o III da série live-action).

Agora, é lançado nos cinemas o longa The Clone Wars, espécie de continuação daquela série (antes que falem das incoerências cronológicas da obra de Lucas, estude-se a natureza diferencial do tempo do mito em qualquer obra séria que analise a mitologia clássica). Em outubro, estreará – mais uma vez no Cartoon Network – uma nova série animada, homônima e também computadorizada, com episódios mais longos (30 minutos cada um), que dará seqüência a este longa, por sua vez. A narrativa deste filme não se apresenta como uma obra fechada e acabada, mas como um capítulo em media res mesmo (o que caracteriza também as partes com atores de “carne e osso”).

Algumas referências míticas e históricas continuam sendo feitas: os traços dos personagens levemente inspirados na pintura egípcia, sem contar o turbante da jovem “padawan” de Anakin, Ahsoka Tano, ou a mistura de colar e ombreira dos soldados clones, também de design faraônico. Também é criativa uma das naves espaciais, que se movimenta como uma água-viva (o desenho de máquinas inspiradas na natureza é algo muito presente na cultura humana). É o encontro entre o extremo passado e o extremo futuro, sendo o tempo em “Star Wars” de natureza mítica (ou seja, sem qualquer referência cronológica em relação ao nosso próprio tempo). O encontro entre o homem e o animal, no cosmo onírico.

quinta-feira, agosto 21, 2008

Diary Of The Dead


Se o cinema é um campo de batalha, como dizia Samuel Fuller, George A. Romero é um dos grandes generais. Ou melhor, um soldado raso, voluntarioso e intrépido, um guerrilheiro, um terrorista. Seus filmes continuam subversivos, insistindo em velhos ideais que se recusam a envelhecer. Ainda mais que, quanto mais as coisas mudam, mais elas continuam as mesmas. Sendo assim, a contra-cultura anárquica de Romero e de Mojica (que discuti ontem) continuam sendo mais do que bem-vindas e necessárias. Mas talvez eu esteja exagerando. Talvez Diary Of The Dead (EUA, 2007) seja apenas um caça-níquel. Mesmo assim, o filme é um caça-níquel de muito melhor qualidade e integridade artística do que muitas obras “independentes” por aí. George Romero e seus filmes de zumbi podem estar velhos, mas ainda não se cansaram. Ainda há surpreendentes lenhas a queimar.

O cinema ideológico do mestre Romero é bem simples, no fundo. Mas, a cada filme, o inventor das fitas “de zumbi” sabe se reinventar, sabe promover variações novas e estimulantes de um mesmo tema básico que, nas mãos de qualquer outro diretor, já teria se esgotado há muito tempo, longe no entanto de atingir o ápice do seu potencial de fabulação. Neste “spin off” de A Noite dos Mortos Vivos (1968), a astúcia do cineasta se aproveita da filmagem “amadora” que é uma das grandes tendências do cinema contemporâneo. O amadorismo aqui não é apenas um princípio estético, mas um recurso de fabulação narrativa, quero dizer, seguindo a linha iniciada pela Bruxa de Blair (1999) e que, recentemente, produziu dois frutos interessantíssimos: Cloverfield (2008) e Rec (2007), este último também um filme de zumbi.

A mitologia dos mortos que andam e comem a carne dos vivos está em todo lugar hoje em dia, até mesmo nos vídeo-games (vide as séries “Resident Evil” e Silent Hill”). E, por mais que sejam interessantes algumas produções, Romero sempre reaparece e mostra quem é o criador e mestre. Se, no meio de tantas porcarias, tinha surgido algo interessante como Extermínio (2002), veio Romero e fez A Terra dos Mortos (2005), melhor ainda, obra não apenas de mestre, mas de gênio inventor. Então, apareceu o espanhol Rec, que trouxe para o gênero a estética e o princípio de fabulação da “câmera na mão” (o filme que nada mais é do que a filmagem “documental” dos acontecimentos captados por alguém, sem qualquer “decupagem”). Mas eis que surge Romero com o seu “diário” dos mortos e bate de lavada, vencendo a partida, por mais que o adversário tivesse valor e tenha feito uma boa luta.

O ultra-realismo da filmagem amadora, inconsciente, sem decupagem, aproveita-se aqui de citações à estética dos “reality shows”, do uso de câmeras de telefones celulares, de computadores ligados à Internet, com os devidos sites de vídeo do tipo Youtube, sem contar as velhas imagens de TV captadas por cinegrafistas amadores. Há um diálogo entre os personagens que expressa exatamente o espírito do filme: fala-se das pessoas normais com suas câmeras caseiras no meio de grandes catástrofes, compelidas a mostrar sua visão pessoal das coisas... O filme tem várias sacadas assim. Entretanto, no meio da estética “amadora”, percebemos a arte cinematográfica muito bem pensada de Romero. Por exemplo, na bem sacada profundidade de campo logo no começo do filme, que mostra o primeiro ataque zumbi com uma surpresa digna mesmo desse primeiro ataque, surpresa que impressiona muito o espectador, graças a tal profundidade de campo, da maneira como ela foi construída ali.

Mas vamos lá. Qual é o grande diferencial dos filmes de zumbi de Romero, e que se faz muito presente também neste “Diário dos Mortos”? Vamos começar pela ironia. São hilários aqui o Amish surdo, confundido com zumbi, o palhaço de festa infantil – efetivamente zumbi – e principalmente a incrível ironia de uma cena perto do final, que retoma outra cena, do começo do filme. Outro elemento tipicamente romeriano é o comentário social, crítico, subversivo e contra-cultural: de novo aparece aqui a questão racial dos EUA, com os negros aproveitando a oportunidade do apocalipse zumbi para finalmente “assumir” o poder; milícias brancas de saqueadores; caipiras que brincam de tiro ao alvo com zumbis; execuções sumárias; questões de família (em cenas bem fortes, nas quais entra a questão dos limites psicológicos das pessoas em situações de limites sociais).

Mas o principal neste filme, a respeito dos fatos sociais, é o poder da imagem audiovisual, de mostrar ou inventar a realidade, revelar ou esconder, muito graças ao trabalho discursivo da edição / montagem de vídeo, que é o verdadeiro caráter da linguagem cinematográfica, de acordo com a melhor tradição do cinema ideológico, que é a de Eisenstein e cia. A fábula / parábola social de Romero é bem explícita e didática: discute-se aqui o poder da mídia que “constrói” os fatos, orientando com isso a visão e a opinião do público. Mais uma alfinetada na política norte-americana pós-11/09. De resto, Romero é um revolucionário da velha guarda: sua fábula-apocalipse da “morte da morte” (parece Saramago isso), no fundo, não é nenhuma tragédia. É uma história de esperança (!). Pode acreditar. Os zumbis de Romero encarnam a marcha revolucionária que ameaçou, mas não chegou, lá nos anos 60. Mas o cineasta não perde as esperanças.

quarta-feira, agosto 20, 2008

A Encarnação do Demônio


Chamar de cinema de autor a obra de José Mojica Marins é um eufemismo. Seus filmes estão mais para um cinema de idiossincrasias, tão exageradas, explícitas e fascinantes quanto incoerentes. É lugar-comum dizer que seu mítico personagem, o Zé do Caixão, encarna as contradições do Brasil. O coveiro que busca a mulher que gerará a prole perfeita representa as contradições do próprio mundo contemporâneo. Zé do Caixão é a alegoria do intelectual, cientista ou artista moderno: alguém que quer ser maior do que Deus, mas através de meios exclusivamente humanos, materiais. Atingir a imortalidade na mortalidade, experimentar, torturar, provocar a carne além dos seus limites, para que ela se transforme, de alguma maneira que não se sabe exatamente como, em algo superior, mais evoluído, mais puro, mas sem deixar de ser carne.

É em tal perspectiva que se compreendem os rituais pagãos – mas sem nada de mágico, a não ser a magia da própria matéria orgânica, vermelha, quente – do sadismo explícito perpetrados por Zé do Caixão e seus seguidores. Zé do Caixão é uma mistura de Dr. Frankenstein com um sacerdote asteca, com um psicopata assassino em série desses que pululam em filmes norte-americanos, com um clown de Shakespeare (com o devido lirismo louco, no dizer do poeta Manuel Bandeira). Será que há espaço, no cinema e no mundo contemporâneo, para um dândi satânico de cartola, capa preta, unhas exageradamente crescidas e um discurso cheio da retórica dos bruxos de velhos tempos? Talvez nunca tenha havido, nem nos anos 60, mas é justamente aí que sentimos melhor o drama de Zé do Caixão, tão arcaico e tão moderno.

Sim, moderno, porque seu discurso, ainda que emule as formas e fórmulas da antiga magia, é prenhe de um conteúdo descrente, niilista, materialista, relativista, ou seja lá o diabo que estiver em moda no pensamento de nossos tempos. O entusiasmo, a fé, o progresso buscado por Zé do Caixão são relativos tão somente à parca condição humana. Gerar um filho... Existe algo mais grandioso e, ao mesmo tempo, mais ridículo do que isso? Algo mais raro e, não obstante, tão banal? Partindo da condição humana, ele quer chegar ao seu ápice e ultrapassá-la. Mas até que ponto o ser humano pode se aproximar dos deuses – e deuses mortos já, graças à modernidade? Zé do Caixão atualiza e adapta o grande tema mítico da tragédia clássica: as ridículas tentativas de o homem possuir atributos “divinos” e a assombrosa tragédia que, inevitavelmente, advirá de tamanha ambição.

O cinema de Mojica é sério e não-sério ao mesmo tempo. Há algo nele de risivelmente naïf, mas algo também de assustadoramente lúcido. Um poeta disse que o homem tem vocação para a transcendência. Se é assim, José Mojica Marins tem uma verdadeira ânsia, e uma ânsia nauseabunda pela transcendência. Ainda que seja uma transcendência que elide Deus e o diabo, uma transcendência sábia de um homem simples que entende que a substância humana não é nada mais do que alimento para os vermes desta terra. Enfim, é um cinema com verdadeira substância, com todo o peso de uma visão de mundo, de uma vontade bem sedimentada, ainda que perfeitamente questionável, logicamente (não é este o ponto). O problema é que Mojica é da velha guarda já. Quem é que, hoje em dia, possui essa mesma substância? Cláudio Assis? Heitor Dhália? Pelo amor de Deus – ou do diabo... Cinema não é publicidade! (Quando é que vamos entender isso?).

domingo, agosto 17, 2008

A Noiva Cadáver


Como não se compadecer com o destino de Emily, a “Noiva Cadáver”? Quisera eu estar lá para ficar com ela, para mostrar a ela que existe sim o amor para todos e para qualquer um. Mas será que algumas pessoas estão destinadas à solidão? Que sina!... De qualquer maneira, personagens assim, por mais que nos deixem tristes, também são extremamente fascinantes, por causa mesmo de sua tragédia, bela e triste, triste e bela. O sacrifício por outrem também é belo: personagens que se tornam párias apenas por quererem se enquadrar. Enquadrar-se na vida de alguém, de modo meio desajeitado, meio desesperado. Personagens com tanto carinho para dar, mas quem é que vai querer o carinho de uma mão esquelética? Ou o beijo de uma boca fria e enrugada da decomposição? As fábulas de Tim Burton são muito cruéis, mas reais. Terrivelmente reais.

Todos os “mortos”, os “loosers”, as vítimas de “bullying”, os corações demasiado sensíveis, quebrados – ou que nunca chegaram a se “construir” – encontram a sua expressão na arte de Burton. Mas antes que o chamem de romântico, gótico ou “emo”, saibam que o diretor de A Noiva Cadáver (“Corpse Bride”, EUA, 2005) é um artista que supera as rotulações. Ele é dotado de uma visão de mundo pessoal e facilmente perceptível, ainda que influenciada fortemente por certas tradições culturais muito bem fundamentadas. Mas é justamente esta a dialética do artista. Talvez o mais interessante em Burton seja a leveza com que conduz conteúdos e formas pesadas, uma leveza mesmo infanto-juvenil, fresca, ingênua e dotada de um sensível humor – mas não aquela ironia macabra do Ultra-Romantismo, pelo menos não o tempo todo.

Daí que Burton é altamente recomendável para as crianças que querem encontrar o lado adulto das coisas mais essenciais da vida, do mundo e do ser humano; assim como aproveitará bem seus filmes o adulto que deseja (re)encontrar a infância. Também isto é muito dialético. Burton revela o lado “dark” do universo infantil e o lado infantil do universo “dark”. E sabe o que é melhor? Nem dá pra saber qual é qual direito... De qualquer modo, o mundo “downstairs” é muito mais colorido mesmo que o “upstairs”. O “morto” é mais vivo do que os vivos, que são verdadeiramente mortos... Mas, antes que isto sirva de inspiração aqueles espíritos maliciosos e sectários (góticos, emos, e outras laias) que se trancam em sua própria torre de marfim, saibam que Tim Burton promove, acima de tudo, o encontro, a reconciliação e a mistura entre os dois mundos. Eis o toque do artista.

domingo, agosto 10, 2008

A Hora e Vez de Augusto Matraga


A Hora e Vez de Augusto Matraga (Brasil, 1965, dir.: Roberto Santos) é uma adaptação digna da obra de João Guimarães Rosa. Mesmo o filme estando mais para o Cinema Novo do que para o “cosmo de mitos” (Alfredo Bosi) do autor de Sagarana. A dimensão épica do conto se revela com mais força apenas no final – o grande clímax – genuinamente apoteótico: dizem que o próprio Guimarães Rosa se orgulhava do filme, dizendo que o final tinha ficado melhor que o da história escrita. De qualquer modo, é uma fita dotada de sensibilidade poética: nas imagens, trilha sonora e, principalmente, no roteiro muito bem elaborado, cujos diálogos fluem muito bem pelas bocas de grandes e clássicos atores como Leonardo Villar (Augusto Matraga) e Jofre Soares (Joãozinho Bem-Bem).

Escrito por Gianfrancesco Guarnieri, o “script” aproveita muito bem a linguagem sertaneja e poética do escritor mineiro, e de um modo que não soa teatral ou artificial demais – apesar de a encenação de certos trechos lembrar muito algo do tipo Teatro Oficina (coisa do cinema dos anos 60). A história de Nhô Augusto, a última do volume Sagarana, é uma das mais míticas e transcendentes de Rosa. A trágica e epifânica jornada de Nhô Augusto é a própria jornada do herói: jornada de ascensão – queda – redenção – ascensão final, jornada dialética que mistura e resolve as grandes contradições do espírito humano: bem e mal, salvação e pecado, passado e presente (sem esquecer o futuro em vista).

Nhô Augusto atinge a síntese que todos nós tanto buscamos, a síntese entre todos os mais diferentes aspectos e impulsos do seu caráter, devidamente processados em função de uma missão de vida realmente significativa, missão essa que envolve o bem não apenas do indivíduo, mas também do outro – o coletivo. A jornada de abnegação de Nhô Augusto revela-se uma jornada (com a devida conquista) da grande realização pessoal. Enquanto se afirmava a si próprio, Nhô Augusto negava-se; passando a se negar, ele conquistou a verdadeira auto-afirmação.

É uma dialética complexa mesmo, mas que está presente em narrativas das mais diversas religiões, mitologias de povos distintos, e até mesmo em nossa indústria cultural: basta ver as histórias dos heróis em “Super-Homem”, “Star Wars”, “Matrix”, ou em “Os Imperdoáveis” de Clint Eastwood (principalmente neste último exemplo, guardadas as devidas variantes e proporções, naturalmente). Todo mundo tem a sua hora e vez. A nossa ainda há de chegar. Iremos para o céu nem que seja “a porrete”... Enfim, ainda não apareceu o filme que incorpore em sua própria linguagem a grandeza do conteúdo e da forma artística de Rosa.

As melhores tentativas ainda são muito tímidas, e fazem a escolha pelo caráter “regionalista” das narrativas (o menor dos aspectos que compõem a grande contribuição do escritor), daí o aspecto de Cinema Novo, neo-realista, que perdura até hoje nas adaptações: basta ver Mutum (2007) – inspirado pela novela Miguilim. No entanto, para expressar as altas ambições filosóficas, míticas e místicas do autor de “Grande Sertão: Veredas”, é preciso trabalhar com outros códigos cinematográficos, a partir de outras tradições. Por exemplo: que tal fazer um filme baseado na obra de Rosa inspirado pelo cinema de Carl Dreyer, Andrei Tarkovski, Akira Kurosawa, Francis Ford Coppola, etc? Ainda estamos esperando...

sábado, agosto 09, 2008

The Science of Sleep


A ciência do sono? A arte do sono. Para a Psicologia Analítica de Jung, são as vivências íntimas que definem o sujeito, no constante e turbulento processo de individuação. E o mais maravilhoso de tudo, é que há sujeitos com uma riqueza avassaladora de conteúdos psíquicos em seu universo interior. Pode parecer tudo muito romântico isto, mas é do tipo de romantismo que só faz bem. Trocando em miúdos, tratam-se daquelas pessoas que “viajam na maionese”, pessoas que sonham tanto dormindo quanto acordadas – o devaneio, ou “daydream”, é a fonte mais essencial de boa parte da grande poesia e da grande arte que fazem com que nos orgulhemos de sermos humanos. Nada mais do que humanos. Mas também nada menos.

Os sonhos: não importa qual seja a sua fórmula – tão sucintamente explicada pelo personagem de Gael Garcia Bernal –: não interessa se os sonhos são construídos no inconsciente à base dos processos de condensação e deslocamento com vistas a expressar conteúdos reprimidos pelo ego; assim como não tem qualquer relevância a hipótese de os mesmos sonhos serem atualizações de velhos arquétipos que promovam a comunhão do indivíduo com a alma íntima de toda a espécie humana. Os nossos melhores sonhos (tanto o “nightdream” quanto o “daydream”) são assombrosamente dotados de imagens voluptuosas. Algumas delas de grande e perturbadora volúpia, e não só no velho e manjado sentido sexual.

Representar artisticamente a tão famosa atmosfera onírica é algo tão difícil quanto fascinante, um desafio que marca sua viva presença em toda a história da cultura humana. Uma das mais ricas soluções para isso é a escolha por imagens desconcertantes. Simples assim. Imagens construídas a partir de elementos que não sejam apenas concretos – obviamente –, mas que expressem, exalem, derramem, gritem sua “concretude” a plenos pulmões. Imagens fortes, chocantes, curiosas, inquietantes, que expressem (o Expressionismo onírico) e que impressionem (o Impressionismo, também sonhador). Mas tudo isso é paradigmático. Quanto ao plano do sintagma, a grande “arte do sono” busca combinações não menos criativas entre tais imagens (o Surrealismo, a conexão metafórica entre elementos dos mais distantes entre si).

Eis a tão peculiar linguagem do sonho. Eis a tão peculiar imagética utilizada por Michel Gondry em The Science of Sleep (“La Science des Rêves”, França, Itália, 2006). Um belo filme de imagens desconcertantes, concretas e abstratas a um só tempo, objetivas e subjetivas, reais e imaginárias – as fronteiras em questão são mais do que cambiáveis. Acredito que a grande vocação do Cinema não seja a épica (imagens da realidade exterior), mas a lírica (a tão fugidia realidade “interior”). Um cinema de poesia, que objetiva a subjetividade, e subjetiva a objetividade. Antropomorfismo e Cosmomorfismo, na expressão tão feliz de Edgar Morin (em “O Cinema ou o Homem Imaginário”). Eis a grande metafísica da Sétima Arte.

Tentar mostrar, o tanto quanto se deseja, tudo aquilo que não é passível de ser mostrado. Eis o heróico e o ridículo dos filmes. Como eu disse a respeito de Be Kind Rewind (2008), a decupagem, a construção material das imagens neste “A Ciência do Sono”, também de Michel Gondry, emula algo dos pioneiros do cinema, algo de Méliès, Zecca e cia. Os movimentos desajeitados do cavalo onírico de Gondry parecem uma resposta ao cavalo “real” de Muybridge (que realizou a primeira filmagem da história, em 1872). Uma resposta que diz: o cinema não está lá fora, mas aqui dentro... Além do mais, The Science of Sleep compõe, junto de Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembrança (2004), o grande par das histórias de amor disfuncionais (apesar de tal classificação ser terrivelmente banal, deixando de lado toda a magnífica sensibilidade e sutileza dessas obras). The Science of Sleep jamais foi exibido no circuito comercial brasileiro, tampouco foi lançado em DVD.

Para encerrar, deixo este filme como receita a todos os corações sonhadores, criativos e sobretudo os apaixonados, mas tímidos...

terça-feira, agosto 05, 2008

Filmes de Julho


Filminhos vistos ou revistos em julho:

Conduta de Risco (“Michael Clayton”, EUA, 2007)
Grande “thriller” sobre ética no mundo corporativo pós-globalizado. Grande personagem o de George Clooney. Filme didático – no bom sentido.

Meu Nome Não É Johnny (Brasil, 2008)
Filme didático – no pior sentido.

Tubarão (“Jaws”, EUA, 1975)
O ponto de contato na linha de passagem entre o cinema hollywoodiano clássico e o “moderno”.

O Escafandro e a Borboleta ( “Le Scaphandre et le Papillon”, França, 2007)
Filme singelo. Os maliciosos reclamarão do seu caráter edificante, mas esta fita não é para pessoas maliciosas.

Férias do Barulho (“Private Resort”, EUA, 1985)
Um dos clássicos da sessão da tarde da minha infância. Johnny Depp no começo de carreira.

Viagem ao Centro da Terra (“Journey to the Center of the Earth – 3D”, EUA, 2008)
3D: o futuro do cinema?

Vidas Amargas (“East of Eden”, EUA, 1955)
Como é que eu nunca tinha visto antes esse filme? Clássico absoluto de Elia Kazan. Pode ser colocado facilmente entre os 20 melhores filmes de todos os tempos.

Terror em Silent Hill (“Silent Hill”, EUA, 2006)
Até agora, a melhor adaptação feita de um jogo de vídeo-game. Abre caminho para as próximas (será devidamente aproveitado esse caminho?). Foi a primeira resenha publicada neste BLOG, assim que nasceu, há quase dois anos atrás.

Batman, O Cavaleiro das Trevas (“The Dark Knight”, EUA, 2008)
Como sempre, o Coringa dá um show. Filme maduro de super-herói.

Casablanca (“Casablanca”, EUA, 1942)
Patrimônio cultural da humanidade.

Bubba Ho-Tep (sem título em Português, EUA, 2002)
Criatividade é tudo

Be Kind Rewind (sem título em Português, EUA, 2008)
Criatividade é tudo²

domingo, agosto 03, 2008

Antes de Partir


Antes de Partir (“The Bucket List”, EUA, 2007, dir.: Rob Reiner) é simplesmente um daqueles filmes bonitos; que em primeiro momento não chamam muita atenção, parecem não querer dizer muita coisa, mas se a gente passar pela experiência de assistir a eles com atenção, sairemos inesperadamente transformados. A história e as imagens misturam o grande e o pequeno de uma maneira que cabe perfeitamente no coração humano. O comum e o raro, o pobre e o rico, o vivo e o morto, o velho e o novo, o bom e o mal, o alto e o baixo, o presente e o passado, todas essas coisas não se agitam em tensão (como geralmente acontece), mas bailam gentilmente, de mãos e almas dadas, até que se encerre a música. Música da vida. Há filmes cuja experiência de ver lembra a experiência de ouvir alguma música (que nunca se sabe qual é).

Não se tratam de filmes musicais, mas filmes cuja melodia está no roteiro, na fotografia, na montagem, filmes com uma personalidade musical, digamos assim. Antes de Partir é um desses pequenos grandes filmes. Seria, é claro, a maior das banalidades dizer que esta fita é um elogio à vida, uma declaração de amor à vida, à amizade, ao mundo, uma fita que mostra a terceira idade com dignidade, o como que a vida só acaba quando se morre, que o importante é ter o espírito jovem e nunca desistir dos seus sonhos, nunca é tarde pra (re)começar, que nunca se deve desistir de lutar contra as adversidades, etc (nossa, isso parece sinopse de contra-capa de DVD). Mas o filme não tem nada do épico sentimental que tais palavras podem sugerir. Ele não é piegas de maneira alguma – eis sua grande qualidade: pegar um tema assim e tratá-lo de maneira bem sutil e com classe.

Para ser franco, este filme não tem nada de mais. Por isso é que ele é interessante. Não estará, nem de longe, entre as melhores produções do ano, da década, etc. Mas é um belo filme, para ser ver numa tarde de domingo – sem qualquer desqualificação relativa ao contexto. E a dupla Jack Nicholson / Morgan Freeman funcionou muito bem – apesar de, ou talvez por, serem atores tão diferentes na escolha de papéis. Nicholson é sempre o “bad mothafocka”, enquanto Freeman se faz incondicionalmente de bom velhinho, companheiro, condescendente, gentil – ele já foi até Deus... (em “Todo Poderoso”). Os diálogos entre os dois ficaram muito bem afinados, um “tour de force” bastante sutil. Enfim, não é um filme para ser lembrado eternamente, mas não será também logo esquecível.

sexta-feira, agosto 01, 2008

An American in Paris

We got the movies...

Who could ask for anything more?