terça-feira, fevereiro 24, 2009

Emenda

Não saiu o link para comentários na postagem abaixo. Então, quem quiser se expressar e trocar idéias, basta clicar aí embaixo...

Gauches do mundo, uni-vos!

Não vou dizer nada. Alguém há de entender...



"Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida."
Carlos Drummond de Andrade, "Poema de Sete Faces"



"Exausto de pesquisa,
caiu-lhe o vasto engenho
como simples papel.
A cola se dissolve
e todo seu conteúdo
de perdão, de carícia,
de pluma, de algodão,
jorra sobre o tapete,
qual mito desmontado.
Amanhã recomeço."
Carlos Drummond de Andrade, "O Elefante"

sábado, fevereiro 21, 2009

Textos novos no Cinefilia.net

Há dois textos inéditos do autor de Sombras Elétricas no site Cinefilia.

Um deles é sobre o clássico do realismo poético francês, Trágico Amanhecer, de Marcel Carné.

O outro trata da experiência de se assistir a Batman, O Cavaleiro das Trevas em I-MAX.

Obrigado a todos.

quinta-feira, fevereiro 19, 2009

O Lutador


O Lutador é um moderno filme de personagem. Mas, ao contrário do moderno romance de personagem – cujo discurso narrativo é indissociável do ponto de vista do protagonista-herói –, este filme prefere assumir uma apresentação “documental”, mais de acordo com o tão contemporâneo fetiche do registro natural, espontâneo (o já velho estilo reportagem “câmera-na-mão”). Essa forma de documentário, por sua vez, busca atingir a aproximação, digamos, suficientemente humana em relação ao personagem-objeto sem cair nas armadilhas da mera condescendência romântico-folhetinesca. Randy “Ram” Robinson é um character profunda e irremediavelmente romântico, mas não o filme que o mostra para nós.

A proximidade entre o olhar cinematográfico e a figura de Ram é patente principalmente na maneira como a câmera o segue insistentemente pelas costas: é inevitável não lembrar o Gus Van Sant de Elephant e de Last Days. E, assim como sentimos no filme que trata dos “últimos dias” de Kurt Cobain, o discurso audiovisual em O Lutador não apenas mostra a curiosa mistura entre o patético e o ridículo do personagem anti-herói; ele constrói boa parte dessas impressões e as comunica ao espectador com uma clareza quase dissertativa. Documentário? Tal classificação poderia soar como um eufemismo, em alguns momentos.

Por exemplo: a cena da primeira entrada de Ram no balcão de frios, dentro do supermercado no qual ele deverá trabalhar após sofrer um infarto e não poder mais lutar nos ringues. Esta cena emula a primeira do filme: vemos Ram – sempre pelas costas – saindo dos mais profundos “backstages” e atravessando áreas e pessoas até chegar no seu “palco”, enquanto ouvimos aumentar gradativamente o som entusiasmado das platéias ansiosas. No entanto, esse mesmo som, aplicado de modo obviamente não-diegético na cena do supermercado, atribui à cena toda um comentário não só irônico, como extremamente sarcástico.

Toda a decupagem aqui é um comentário, que evoca o das colunas sociais – ou esportivas. Ram, com todas as suas idiossincrasias, é um personagem amável, e o filme o mostra com carinho. Mas um carinho nem um pouco ingênuo. A câmera não desgruda dele. Praticamente todo o filme se passa a uma distância não maior do que a de um plano americano, em relação a Ram e a outros personagens que interagem com ele. No entanto, não vemos o que ele vê. Proximidade do personagem, mas um olhar que não se confunde com o seu. O efeito disso no espectador é bem peculiar. O Lutador é dotado de toda a carga de auto-afirmação do protagonista que o título já sugere.

Mas repito: não se trata de uma elegia ingênua. A última imagem que vemos na tela é exemplar: num contre-plongée de ângulo rigorosamente reto de 90 graus, vemos Ram saltando de cima do “corner” do ringue sobre seu oponente caído no chão – ou seja, saltando sobre nós, espectadores. Contando assim, pode parecer um recurso cinematograficamente ingênuo, mas considerando que este final possui um significado – para alguns, perturbadoramente – aberto, saímos do cinema curvados com todo o peso do corpo de Ram sobre nós e curvados também sob o peso da dúvida. Mas a dúvida – meramente factual – é aqui o de menos.

Talvez o que mais pese, junto do corpo, é o peso do espírito de Ram, dotado daquelas personalidades que não nos oferecem segurança alguma, mas que intuímos, nelas próprias, a mais inabalável segurança. O mesmo pode ser dito, talvez, da personalidade do próprio filme. Outra cena, deliciosa e cruelmente sarcástica, é a que começa mostrando uma luta pelo seu final e “afterwards” no vestiário, com os lutadores completamente ensangüentados, e logo em seguida, passa a mostrar, em montagem paralela, o início da mesma luta, com os “wrestlers” delicadamente sentados em cadeiras no ringue, dando tapas um na cara do outro. Enfim, é um filme bem divertido.

terça-feira, fevereiro 17, 2009

O Leitor


É estimulante pensar na função da narrativa em O Leitor (“The Reader”, EUA / Alemanha, 2008, dir.: Stephen Daldry). Não só a narrativa do filme enquanto discurso, ou a narrativa do romance (da autoria de Bernhard Schilnk, recém-lançado no Brasil pela Editora Record) no qual o roteiro de David Hare (As Horas – 2004) se baseou. Falo da função psíquica- sócio-mítica das múltiplas narrativas que se realizam e se entrecruzam neste filme. O filósofo alemão Walter Benjamin reflete de maneira bastante crítica sobre a decadência da experiência coletiva dentro do regime capitalista.

No modo de vida “fordista” da era industrial, o indivíduo é transformado em um autômato, condenado a repetir solitariamente os mesmos gestos, já esvaziados de qualquer significação (pelo menos, no âmbito de sua própria consciência). Para Benjamin, ao exilar o indivíduo das trocas humanas da coletividade (e do seu próprio conhecimento), o capitalismo arranca dele a sua própria história – uma vez que esta se acha sempre vinculada a uma tradição. Desmantelado o coletivo, desaparecerá do indivíduo a capacidade de narrar, pois a narrativa supõe uma experiência em comum (o contato e as vivências comuns entre o “contador” e o ouvinte).

Extinta a narrativa – grande elo de ligação entre a dimensão individual e a coletiva da vida e da história – extinguir-se-á também a faculdade da memória. A dissociação entre as pessoas e o seu próprio patrimônio cultural é o princípio do nascimento da barbárie, ainda segundo o filósofo. É por aí que começamos a compreender a natureza da “culpa” de todos nós, segundo o curto e tão inflamado discurso do jovem estudante companheiro do protagonista Michael Berg, no filme de Daldry. É por aí também que devemos analisar o fato de a proletária e analfabeta Hanna Schmitz ter tomado parte na barbárie, mesmo sem revelar dentro de si qualquer sinal de uma personalidade sádica, doentia, ou o que quer que seja.

E também sem revelar qualquer sinal de concordância ideológica com o regime vigente (muito provavelmente, ela mal saberia explicar qual era a proposta político-ideológica do partido “nacional-socialista”). Perceba-se que este caso, que se enquadra bem dentro daquele dos autômatos da era industrial de que fala Benjamin, vítimas e autores da barbárie a um só tempo e que se encontram particularmente dentre as classes proletárias, este caso é bem diferente dos oficiais que em Nuremberg alegavam que apenas “cumpriam ordens”. O pragmatismo das ações “criminosas” de Hanna Schmitz, conforme ela as explica aos juízes em seu próprio julgamento, condiz antes com uma visão – digamos – “fordista” do seu trabalho do que com qualquer princípio de “maldade”, psicológica, social ou filosófica.

Hanna é antes uma ingênua, “alienada” – para colocar em termos sociológicos –, do que propriamente “nazista”. Assim como muitos dos trabalhadores do nosso tempo, estejam eles nas fábricas, nos escritórios, nas escolas, hospitais, etc. Agora, a pergunta que surgirá é: mas será que nossos trabalhadores seriam capazes de assassinar? E alguém quer fazer o teste? Ou seja, oferecendo de novo todas as condições para o estabelecimento social e político da barbárie? Hanna Schmitz é o paradigma do indivíduo desvinculado de uma coletividade significativa; conseqüentemente, desvinculado de si mesmo, sem memória, sem história e sem a capacidade de narrar.

Quem é ela, exatamente? O filme só nos revela sua pseudo-história da pseudo-coletividade do capitalismo na barbárie; ou seja, ela era funcionária de uma grande corporação que decidiu alistar-se na SS em busca de melhores condições profissionais. Mas qual é a sua família? Qual a sua história pessoal, história de vida? Há um grande vazio. Não se trata de uma lacuna não-preenchida pelo filme, mas de um vácuo mesmo, rigorosamente calculado pelo roteirista (ou pelo romancista). Simbolicamente, ela não tem vida, família ou história. E seu analfabetismo simboliza a sua carência narrativa. Tais indivíduos são o primeiro efeito da barbárie, estão dentre os seus primeiros sinais; e a barbárie retirará o mais de sua força e eficácia de indivíduos nessas condições.

Contudo, a barbárie jamais poderá arrancar das pessoas a própria carência de narrativas, o desejo, a necessidade, a mera intuição de que há dimensões transcendentes ao indivíduo que precisam ser exploradas. E é nesse campo que o filme se impõe, como discurso narrativo e tomada de posição em relação aos fatos. Comecemos pela necessidade da própria Hanna, que fará com que suas cativas (no campo de concentração) e, posteriormente, com que o próprio Michael Berg leia para ela toda a sorte de literaturas. Sentimos nela uma ânsia curiosa quase infantil de conhecer e descobrir tudo o que é novo – e o que é novo para ela é praticamente tudo, em termos de história das experiências humanas, desde a Odisséia de Homero até O Amante de Lady Chatterley de D. H. Lawrence, passando por obras infantis.

As leituras que as cativas e o jovem Sr. Berg faziam à Hanna são a maior, mais bela e eficiente arma que este filme oferece contra a barbárie. Perceba-se o como que o elemento de humanidade revelado aí não serve (não deve servir) para atenuar a culpa de Hanna, mas tal humanidade é a única coisa capaz de prevenir ou curar a barbárie, impedindo assim para sempre que surjam novas “Hannas”. Naturalmente, a vítima mais imediata de Hanna, sobrevivente ao holocausto, não compreenderá tal dimensão dos fatos e das pessoas – nem é o caso mesmo de que ela compreenda. Por isso, é muito forte, bela e significativa a cena em que o Sr. Berg tenta, em vão, explicar à antiga vítima quem era, na verdade, Hanna – logicamente, sem qualquer tentativa de inocentá-la.

É mais forte, bela e significativa ainda a reação emocional de Berg a esse fato, sua angústia, uma angústia que ninguém mais poderá entender. Assim, dentro da função política e moral que a narrativa exerce neste filme, temos as narrativas que eram lidas para Hanna Schmitz, aprendizado de sua humanidade. Em contraste, há o livro de memórias de uma sobrevivente do holocausto, vítima imediata de Hanna (o qual será usado em sua acusação). Tal livro é a eternização da memória, a constante presentificação do passado, para que a barbárie nunca mais volte a acontecer (Benjamin). No final, haverá a narrativa do próprio Sr. Berg – que, no entanto, já aparece desde o começo e constitui a maior parte do filme, nos “flashbacks” de sua memória afetiva.

A última cena é exemplar: Michael Berg, já um homem de meia-idade, começando a contar a sua história com Hanna Schmitz para a filha adolescente. É a maravilhosa função redentora da narrativa; externar, expressar a memória a um outro, construindo e mantendo com isso uma coletividade significativa – mesmo que seja apenas, em princípio, a da estrutura familiar. O protagonista, dessa maneira, livra-se do peso individual da memória e da experiência humana, compartilhando-a com outros (sua filha e também com a antiga vítima de Hanna), dando a outros algo que é, na verdade coletivo. O Sr. Berg, assim, também se põe significativamente na dimensão da coletividade, o que fará por completar a sua própria realização enquanto indivíduo. Se no começo do filme, ele é um homem atormentado pelo passado, no final a situação se transfigurará. Mais uma lição contra a barbárie.

sábado, fevereiro 14, 2009

O Curioso Caso de Benjamin Button - o livro

F. Scott Fitzgerald
O filme de David Fincher e Eric Roth, apesar das ressalvas que fizemos (na postagem do último dia 07), merecia um selo de aprovação. Mas isso foi antes de ler o conto de F. Scott Fitzgerald. Não vamos pensar aqui nos velhos e manjados termos de que a “adaptação” ficou pior do que o “original”. Imaginemos apenas o seguinte: existem duas obras com a mesma premissa. No entanto, os resultados atingidos pelas duas não foram igualmente felizes. O conto é bem mais ousado e espirituoso do que este filme, em relação ao qual não conseguimos abandonar a impressão de que o diretor e o roteirista fizeram de tudo para tornar a história o mais palatável possível para o espectador médio contemporâneo.

É incrível o como a obra de Fincher empalidece, enfraquece e finalmente desaparece perto da “voz do sangue” (expressão nietzcheana) que discursa na obra de Fitzgerald. Existem muitos aspectos do conto cujas soluções encontradas no filme só alcançaram esterilizar quaisquer sementes de criatividade e significado que poderiam se desenvolver. Comecemos pelo mais básico: a fantasia. O caráter mágico do conto é dotado daquela delícia, daquela liberdade, daquela irreverência ilógica e nonsense que estão na alma de toda uma linha de grandes clássicos da literatura universal. O Pantagruel e o Gargântua, de Rabelais (século XVI), e o Macunaíma, do nosso Mário de Andrade (composto no mesmo espírito da modernidade – dos anos de 1920 – que o autor norte-americano), são apenas dois dentre muitos exemplos.

Já o roteiro de Eric Roth promove uma tenebrosa pasteurização da fantasia, ao apelar para uma espécie de ultra-realismo biológico, o que está bem de acordo com a neurose científica e racionalizante que domina o pensamento e o gosto contemporâneo. Já escrevi antes sobre o como a indústria de filmes (e também as platéias?) não aceita mais a fantasia, em toda a sua ingenuidade e pureza inconscientes, a não ser que se dê ares “verossímeis” (leia-se: de pertinência “científica”) para o fantástico, o mágico, etc. Lembre-se, mais uma vez, o filme Tróia (2004), que não passa de um fetiche historicizante a dedetizar psicoticamente o grande repositório de mitos que é a Ilíada de Homero.

Cansei de ver filmes que parecem aqueles “documentários” científico-sensacionalistas do Discovery ou do History Channel (este sim, é o fim da picada). Em relação à história de Benjamin Button, por que será que Roth não permitiu que a “criança” nascesse na forma de um senhor barbudo de 1,73 de altura, como o fez Fitzgerald? Porque o público não iria aceitar que um homem desse tamanho saísse pela vagina de uma mulher? Convenhamos. Este é o maior crime do filme: arrancar ao espectador a liberdade infinita de sua imaginação – mesmo que seja aquele espectador que reza fielmente pelo breviário das “verdades” científicas.

A imaginação, neste filme, é metamorfoseada no fetiche de se considerar a “possibilidade” de alguma anomalia genética (é claro) que faça com que um bebê (nas devidas proporções de um recém-nascido) venha ao mundo com a pele toda enrugada e com todas as peculiaridades corporais de alguém em idade avançada (catarata, reumatismo, etc); e, conforme esse bebê, criança ou jovem vá crescendo, o aspecto de seu corpo vá rejuvenescendo. Bonito, mas pobre. E tem mais: por que é que o filme não apresentou o jovem Benjamin com a mente também “de velho”? – conforme faz Fitzgerald (resultando em algumas cenas bem engraçadas) e que estaria mais de acordo com a proposta “realista” do filme.

Mas aqui, muito convenientemente, o melodrama fala mais alto: faz parte dos nossos fetiches romanescos comovermo-nos com a tragédia de uma alma de criança presa num corpo idoso. O Benjamin do filme é nada mais do que reservado. No entanto, sua mente e seus interesses são essencialmente infantis, conforme nos mostra a cena em que ele, na cadeira de rodas, fica observando melancolicamente outras crianças correrem e brincarem; também podemos citar a cena em que ele e Daisy ouvem com muito gosto uma história infantil contada pela mãe dela. No final do filme, também com grande conveniência (só que agora passando de volta à função realista), a mente do protagonista volta a ser infantil (mais do que nunca), conforme seu corpo avança rumo às idades mais tenras.

Meio incoerente, não? O filme, aparentemente, circula com irrepreensível desenvoltura entre a função realista e a função melodramático-folhetinesca, apenas conforme melhor convém ao que se acredita ser o gosto ou aceitação do espectador... Outro elemento importantíssimo da história de Fitzgerald, mas que foi “sabiamente” eliminado do roteiro de Eric Roth, é o substrato social. É curioso pensar no fato, com implicações sutilmente implícitas, de que o pai de Benjamin, no conto, chega a desejar que o filho fosse negro, ao passarem na frente de um mercado de escravos, enquanto voltam do hospital no qual o jovem velho Button acabara de nascer (sim, a história do conto começa em 1860).

O filme, por sua vez, começa na Nova Orleans do início do século XX, onde Benjamin será adotado por uma governanta negra. Não há qualquer elemento de racismo a ser discutido. Assim como não se fala da crise de 1929 (e olha que o pai de Benjamin era um industrial, hein?) e mal se toca na II Guerra Mundial. Ao passo que o conto alfineta com ironia a Guerra de Secessão, a Guerra Hispano-Americana, a questão da escravidão e a I Guerra Mundial. Outra coisa importantíssima para a literatura de F. Scott Fitzgerald é o conflito de gerações. O escritor é o maior expoente da chamada “geração perdida”, do começo do século XX, que reunia jovens americanos rebeldes, em busca de vida, arte, sentido e sentimento, contra as convenções fossilizadas da mentalidade tradicionalmente burguesa dos seus pais.

Há uma passagem do conto dotada de grande espírito, humor e significado, que sugere exatamente os embates promovidos pelo escritor. Trata-se do momento em que o Benjamin “jovem” (ainda no primeiro terço de sua vida) e o pai voltam para casa de carruagem, no final da noite, após uma festa em que o protagonista acabara de conhecer aquela que será sua futura esposa, a jovem Hildegarde (“Daisy” fica bem melhor no cinema, não?):

“Ao voltar de faetonte para casa, pouco antes do romper da aurora, quando as primeiras abelhas zumbiam e a lua, pálida, brilhava sobre o frio orvalho, Benjamin percebeu vagamente que o pai falava acerca da venda de ferragens por atacado.
- ... E que acha você deveria merecer nossa maior atenção, depois dos pregos e martelos? – dizia o Button mais idoso.
- O amor – respondeu, alheado, Benjamin.
- Tambor? – exclamou Roger Button. – Mas se já falei, há pouco, em tambores!...
Benjamin fitou-o com olhos estonteados, justamente no momento em que o céu, a leste, se abria, de repente, numa inundação de luz, e um oriole pipilava estridente, em meio às árvores que despertavam.”

Por acaso há, no filme, alguma cena tão provocante e poética quanto essa? A não ser que pensemos numa poesia bastante convencional, da qual a película de Fincher está cheia. O livro mostra com muita riqueza as dificuldades do pai em criar Benjamin e, com mais riqueza ainda, as dificuldades do filho de Benjamin – já adulto – em “criar” o protagonista, aqui reduzido a uma criança peralta. O filme, como sabemos toma as medidas extremamente facilitadoras e “noveleiras” de fazer o pai de Benjamin abandoná-lo à criação e, posteriormente, o próprio Benjamin abandonar mulher e filha, acreditando não ser capaz de se fazer um bom pai, nas condições dadas... Assim, fica fácil fugir dos desafios narrativos que toda obra nos propõe, não?

Uma outra incoerência entre a abordagem realista do filme e suas escolhas folhetinescas, ainda mais se comparadas ao realismo (mágico) puro que o conto apresenta, encontra-se nas relações entre Benjamin e sua esposa. Soa excessivamente “novela das 8” o fato de, no filme, o amor vencer e o adolescente Benjamin (já entrando no final de sua vida) ainda dedicar uma noite de amor à sua (ex) esposa já quase sexagenária. Enquanto que, no livro, o interesse de Benjamin por sua mulher vai diminuindo na proporção em que ela vai envelhecendo e ele, rejuvenescendo. Seria de se esperar um filme mais ousado por parte de David Fincher, ainda mais tendo como fonte a obra de Fitzgerald.

Por fim, mas não menos importante, há o aspecto do humor. O conto possui bons ares de sátira (social e psicológica) e de narrativa picaresca – conforme o próprio narrador admite num dado momento. Na tradição do pícaro (espécie de malandro, mas com diferenças fundamentais), há o clássico Lazarillo de Tormes, obra anônima do século XVI, e o nosso Memórias de Um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida (século XIX). E é aí que residem as maiores diferenças em relação ao filme, o qual não é uma comédia; o humor só aparece nele muito pela tangente, numa cena aqui, numa fala ali. Mas não faz parte da estrutura narrativa, como visão cômica em relação aos fatos.

Este filme é algo como se Steven Spielberg decidisse filmar a história do Lazarillo de Tormes; ou como se Jayme Monjardim (pensando no Olga, de 2004) fizesse uma “adaptação” de qualquer história de Machado de Assis. Fincher e Roth, por suas escolhas, deveriam ter mudado, antes de mais nada, o título; pois a palavra “curioso” em “O Curioso Caso de Benjamin Button” já sugere um tom de fantástico e de cômico que o filme, como analisamos, abandona quase que completamente. Mas, ainda bem que esta fita não se apresenta como “baseada” no conto de Fitzgerald, e sim, apenas “inspirada” por ele. Mesmo assim, se for para ter tais inspirações, que se deixe a memória do pobre escritor descansar em seu túmulo.

quarta-feira, fevereiro 11, 2009

A Troca


O classicismo de Clint Eastwood, afirmado e negado na mesma medida de entusiasmo por uns e outros, não diz respeito a uma suposta obediência do diretor à gramática do cinema norte-americano dito “clássico” (anos 30 aos 50). Eastwood é clássico (um dos raros clássicos contemporâneos – quem sabe o último) na medida em que compartilha de algo fundamental na essência da arte e da cultura clássicas, entendidas à moda grega: o equilíbrio. Percebe-se, em qualquer filme do diretor, uma harmonia admirável e envolvente entre forma e conteúdo, ambos orquestrados numa relação em que sentimos o ímpeto da paixão associado a uma serenidade difícil de ser alcançada por cineastas jovens.

A harmonização de opostos, a sua complementaridade dialética, os paralelismos mais diversos, tudo isso muito bem pesado na balança faz com que uma fita como A Troca seja um verdadeiro soneto. O cinema de Eastwood nos põe num estado de espírito cujas impressões mais condizem com a leitura de certas obras literárias (a tragédia talvez seja o exemplo mais contundente) do que com a contemplação de qualquer película da Hollywood antiga. A simetria – desde a concepção do plano até a edição de som, sem esquecermos o roteiro –, vista aqui não como uma espécie de redundância paralela, mas como um intrincado jogo de equivalências, de correspondências (muitas delas simbólicas) e inversões especulares, a simetria é algo a se refletir neste filme.

Assim é que a imagem do suposto filho de Christine Collins (Angelina Jolie) é o duplo de seu filho verdadeiro, imagem essa tão assustadora quanto o que o conceito de “duplo” permite carregar de tenebroso. O título original do filme – “Changeling” – traduz-se idiomaticamente por uma criança substituída por outra logo ao nascer ou, sentido mais terrível e adequado ao filme, uma criança defeituosa que se acreditava ter sido trazida por fadas em lugar de outra. A imagem do filho de Collins corresponde, por sua vez, à do garoto cúmplice do assassino serial: entre ambas as imagens – a da vítima e a do carrasco, há logicamente enormes oposições; mas também identificações: ambas são crianças.

As lágrimas de medo e arrependimento do jovem carrasco dão a dimensão da sua infância e humanidade. A cena é uma das maiores mostras da sensibilidade e inteligência únicas de Clint Eastwood. A imagem do medo das crianças, neste filme, relaciona-se em tensão com a imagem do universo adulto (tanto a da polícia corrupta quanto a do assassino serial); mesmo assim, há identificações: os momentos de medo, preocupação ou insegurança expressos pelos policiais e pelo assassino (especialmente por este último, na cena de sua execução capital) revelam que todos somos crianças neste mundo, em alguma medida. Como mãe, Christine Collins será o amálgama perfeito entre os dois universos.

A imagem contundente, enfática, da Sra. Collins representará a união da infância e da maturidade, da inocência e do pecado, da ilusão e da desilusão, do masculino e do feminino. Como mãe solteira, mulher sensível que se tornará alvo de diversos e terríveis preconceitos institucionalizados, mas que se manterá firme na luta e nos enfrentamentos de maneira que muitos homens não seriam capazes, ela é a figura mítica do andrógino (de novo o referencial clássico). Autossuficiente, há somente um único e rápido momento do filme em que é colocada a questão “amorosa” em sua vida; mas esse momento é logo descartado em função de um acontecimento que será a consolidação final de sua autossuficiência – e o final do próprio filme.

Em relação à dualidade ambivalente da protagonista, a cena mais expressiva em relação a ela é o “tour de force” entre Christine Collins e Gordon Northcott, o “serial killer”, após a qual ela fica trancada numa cela enquanto ele é levado para longe, como que a ser protegido. É dessas sutilezas que a genialidade de Eastwood se compõe. E sutileza também é um atributo de uma arte dita clássica ou classicista. Quanto às implicações mais filosóficas do filme, ele mostra que este mundo é dominado pela dúvida, pela incerteza. E jamais teremos o conhecimento de todo o escopo de resultados desencadeados por nossas ações, por nossas escolhas (a Sra. Collins escolhera deixar o filho em casa sozinho, na ocasião em que ele será raptado).

Alguns poderão reputar tais questões como modernas, mas elas já fazem parte da mitologia grega mais antiga, são o “erro” fundamental, o princípio da tragédia. Outro tema importante de A Troca, o embate kafkaniano entre o indivíduo e instituições cruelmente abstracionistas apenas dá um molde contemporâneo para a velha condição do homem submetido em absoluto à vontade caprichosa dos deuses. Isso tudo revela um outro aspecto clássico de Eastwood: o universalismo. Apesar de todos os efeitos estéticos de reconstituição de época (incluindo aí o logotipo-vinheta da Universal Pictures da própria época, na apresentação do filme), o diretor conduz sua narrativa apenas pelos caminhos mais arquetípicos que lhe interessam. Daí a não-menção alguma à crise de 29 ou a qualquer de seus efeitos.

Mas “reconstituição” nos lembra de mimese – o maior dos atributos da arte clássica e núcleo do DNA de A Troca. O maior efeito, na emoção e na inteligência do espectador, ao atravessar sofridamente (no bom sentido) as quase duas horas e meia de exibição deste filme é lembrar-se de que se trata de uma história real. Queríamos acreditar que não fosse – tanto é o horror. É um daqueles filmes que dá literalmente um aperto no coração, não por um susto qualquer, mas pelo peso de realidade que reputamos à encenação. E o que é cinema, senão essa fascinação e esse assombro? Não foi isso o que predominou na arte por quase 2.500 anos?

Última característica classicizante de A Troca: a perspectiva. Ao mesmo tempo em que a história da Sra. Collins provoca a sua dose de catarse (mais um princípio da estética clássica, aliás), Eastwood não se esquece de colocá-la em perspectiva no discurso com que se dirige ao espectador. No que poderia degringolar para o melodrama fácil, o diretor mantém a serenidade e certo distanciamento – não tanto documental quanto filosófico. Por outro lado, a fita não cai nas armadilhas fáceis do filme-denúncia ou do filme-tese. Apaixonado no que mostra, racional na maneira de mostrar, A Troca é um filme modelo, um filme perfeito (na acepção grega). Eis o seu referencial de análise – e lá está o seu valor.

segunda-feira, fevereiro 09, 2009

Zero de Comportamento


Jean Vigo é um daqueles diretores que os cinéfilos mais diletantes não conhecerão. Ele não é nenhuma estrela a brilhar fora dos meios cinematográficos; e, mesmo assim, é só dentro de certos meios cinematográficos que ele se fará mais conhecido. De qualquer maneira, quem frequentar com mais afinco os cineclubes, mostras especiais, e pesquisar mais à fundo a história e a estética do cinema, mais cedo ou mais tarde topará com o nome de Jean Vigo. Dentre os intelectuais, talvez o seu pai – o famoso anarquista francês Miguel Almereyda – recorra mais à memória. Entretanto, o filho é um dos cineastas mais talentosos e espirituosos da arte do cinema.

Jean Vigo teve uma vida curta (nasceu em 1905 e faleceu em 1934, aos 29 anos de idade) e atribulada, segundo Paulo Emílio Salles Gomes – o maior biógrafo e estudioso da obra do diretor (não só no Brasil, mas em âmbito internacional: seu livro, “Jean Vigo”, foi escrito em francês e publicado originalmente naquele país, em 1953, decorrendo daí diversas traduções e reedições). Realizou apenas quatro filmes: um longa (L’Atalante – 1934), um média (Zéro de Conduite – 1933) e dois curtas (Taris – 1931; e À Propos de Nice – 1930). Mas foi o suficiente para inscrever seu nome no rol dos grandes artistas da imagem em movimento.

Nesta postagem, eu gostaria de apresentar mais especificamente o Zero de Comportamento, primeira fita de Vigo com a qual tive contato, anos atrás e ainda em VHS. Mesmo correndo o risco de sermos taxativos, podemos afirmar que esse filme mostra a categoria de artista que Vigo é: alguém que circula por entre diferentes tendências estéticas de seu país e de seu tempo (o surrealismo, o realismo mágico), por diferentes tendências ideológicas (a anarquia, o socialismo revolucionário), mas que não faz por menos do que orquestrar essas diferentes forças num todo que é a sua própria voz. Vigo usa os recursos de forma e conteúdo à disposição para expressar sua própria visão de mundo.

Uma visão de mundo idiossincrática, repleta de uma sensibilidade e personalidade cujas raízes descem fundo à busca de nutrientes na história pessoal do próprio artista, e em sua memória afetiva. A história de humilhações, ressentimentos, rebeldia e companheirismo juvenil que é Zero de Comportamento demonstra o poder da arte ao se associar à vida – conforme bem explica Paulo Emílio. Contudo, o que mais chama a minha atenção no artista Vigo são as escolhas que ele faz: a arte está acima da ciência, o estilo está acima da gramática. É uma posição de consequências graves, que não se recomendaria jamais a um estudante ou “profissional” de cinema, mas Vigo a tomou para si e arcou com ela.

Na primeira vez que vi Zero de Comportamento, custou-me entender o filme. Na segunda vez também. Na terceira vez também. Durante um curto espaço de tempo, assisti diversas vezes a este filme curto (40 minutos), sem compreender que as perguntas que eu fazia é que estavam erradas; assim, eu jamais conseguiria uma resposta. Somente depois é que fui dar que já tinha entendido o filme desde a primeira exibição, mas de uma maneira que eu não tinha ainda reconhecido. Zero de Comportamento é uma daquelas obras de cinema que pedem um difícil desapego racional por parte do espectador. O filme é para ser usufruído com intuição, emoção e sensação física. A razão consciente deve adormecer.

Tal característica – que nos remete ao Surrealismo – não nasceu de uma decisão livre por parte de Jean Vigo, como no caso dos filmes mais “bizarros” de David Lynch, para lembrar um exemplo contemporâneo. Zero de Comportamento foi concebido, escrito e em grande parte filmado para ser uma película muito mais inteligível do que acabou sendo. As temáticas e mensagens veiculadas por Vigo eram bem claras e explícitas. No entanto (a maldição do cinema), por conta de múltiplas dificuldades práticas de produção e de desentendimentos com produtores e censores, o filme acabou vindo à tona mutilado, terrivelmente mutilado.

Levando em consideração o que foi filmado mas eliminado na sala de montagem e também o que sequer se colocou à frente da câmera, a fita que conhecemos difere enormemente do roteiro original de Jean Vigo. Apesar de tudo, o resultado poderia ter sido muito, muito pior. Apesar dos seus defeitos elementares, coisas que nenhum estudante de primeiro ano de faculdade de cinema seria capaz de fazer, se Zero de Comportamento é a obra prima que hoje consideramos, tendo o seu valor só aumentado ao longo dos anos, isso é graças às escolhas radicais do diretor Vigo, que priorizaram o artista e não o profissional. Para explicar melhor, reproduzo um trecho de Paulo Emílio:

“Uma escolha penosa se impunha (na montagem): levar em conta a clareza do conjunto e ficar com as sequências e os planos que, a despeito de sua qualidade, pudessem ajudar a compreender melhor a ação, ou tomar as partes mais autênticas e mais bem realizadas, sem se preocupar muito com o ritmo e o resto. Em resumo, diante da impossibilidade prática de alcançar, na obra, uma unidade ideal, Vigo teria de optar entre unidade de ação ou unidade de estilo. Preferiu a segunda solução, disposto a acrescentar, se necessário, alguns intertítulos explicativos.”

Zero de Comportamento pode ser um filme inacabado, faltando clareza ao roteiro e às idéias, mas trata-se de um filme extremamente coeso quanto ao estilo de se expressar por meios especificamente cinematográficos. E aí é que está. Desde a primeira vez que se assiste, sente-se, intui-se que a fita é uma obra de artista, ao mesmo tempo que nosso cérebro racional fica extremamente incomodado e confuso com o andamento desajeitado da narrativa. Zero de Comportamento é um poema, meio cubista, meio surrealista, meio dadá. E vale por momentos de cinema puro: a viagem de trem dos meninos de volta à escola, no final das férias, na qual só vemos uma densa névoa cercar o vagão, criando com isso uma atmosfera mágica;

os movimentos de câmera, os primeiros planos e efeitos especiais como o acelerado, a câmera lenta e a animação de um desenho feito no papel, nunca gratuitos ou formalizantes, mas sempre a serviço da maior expressividade; a guerra de travesseiros no dormitório dos meninos (na qual vemos a polêmica imagem do nu frontal de um garoto); o burlesco do diretor anão e do inspetor amigo da molecada e imitador de Chaplin; a última cena, com os garotos “revolucionários” correndo pelos telhados e filmados num leve contra-plongée, como se estivessem ascendendo ao céu; a trilha sonora belíssima de Maurice Jabert, compositor clássico do cinema francês.

Bem que as faculdades de cinema poderiam ensinar mais poesia do que prosa. Ou, pelo menos, tanto poesia quanto prosa. Cansei de ver jovens estudantes gastando as suas maiores energias com o trivial da cartilha e da gramática da norma culta do “audiovisual”. Jovens vigorosos que põem os bofes para fora e perdem o maior tempo para chegar em lugares que não deveriam ser nada mais do que pontos de partida – ou etapas do caminho. Se formos falar de Cinema com C maiúsculo, deveremos admitir que a linguagem serve mais à expressão do que à comunicação. Desse modo, é irrelevante perguntar se tal ou qual decisão de decupagem funciona ou não (para o espectador, segundo a “norma culta”).

Os questionamentos que deveriam atormentar as mentes fervorosas dos jovens futuros artistas da imagem são outros, bem outros. É por isso que as melhores qualidades de cineastas profissionais e competentíssimos de hoje em dia não valem os piores “defeitos” de um Vigo. Não que devemos todos buscar fazer filmes como Zero de Comportamento no que ele tem de “tosco”. Um estilo sem uma gramática que o sustente não ficará de pé por muito tempo, tampouco dará frutos. Mas uma gramática sem estilo é daquelas pragas que infestam descontroladamente e tornam estéreis todos os solos, se não fizermos nada. Na hora mais desesperada da escolha, Jean Vigo deu o exemplo.

Blog Maneiro


Agradeço ao Luciano por incluir o Sombras Elétricas na lista dos blogs maneiros. Consequentemente, aí vão os meus escolhidos e os passos da brincadeira:
Escolhidos:
Fábio Rockenbach: século da luz
Alyson Xyzyx: cine ao cubo
Cine Carranca: cine carranca
Cine Maníaco: cine maníaco
Ademar Jr.: cine demais
Cinematologia Humana: cinematologia humana
Renato Silveira: cinematório
Vinícius Lemos: cinefilia
Passos:
1. Exiba a imagem do selo “Olha que blog maneiro!” que você acabou de ganhar.
2. Poste o link do blog que te indicou (muito importante).
3. Indique 10 blogs de sua preferência.
4. Avise seus indicados (não esquecer).
5. Publique as regras.
6. Confira se os blogs indicados repassaram o selo e as regras.
7. Envie a sua foto ou de um(a) amigo(a) para olhaquemaneiro@gmail.com juntamente com o link dos 10 blogs indicados para verificação. Caso os blogs tenham repassado o selo e as regras corretamente, dentro de alguns dias você receberá uma caricatura em P&B.

sábado, fevereiro 07, 2009

O Curioso Caso de Benjamin Button


O Curioso Caso de Benjamin Button (“The Curious Case of Benjamin Button”, EUA, 2008, dir.: David Fincher) é um filme muito bonito e significativo, mas convencional como um best-seller. Apesar da sua intrigante premissa (um homem que nasce velho e que vai rejuvenescendo ao longo do tempo), o roteiro e a realização cinematográfica transmitem o tempo todo a forte impressão de que já vimos tudo isso antes. Desde as “catch phrases” de personagens, até as frases de lição filosófica pronunciadas pelo narrador (com voz em off, logicamente), a maior parte desse filme é composta de lugares-comuns. Talvez não tão comuns – graças a Deus – mas mesmo assim relativamente comuns. Benjamin Button se dirige ao espectador com o ímpeto e a boa vontade daqueles filmes que parecem ter sido feitos somente para abocanhar a maior quantidade de óscares possível.

A nova fita de David Fincher parece seguir à risca os manuais de produções “artísticas” a serem produzidas pelos selos para filmes “alternativos” dos grandes estúdios de Hollywood. Trata-se dos melhores manuais – posto que não passem de manuais. É um filme a ser exibido nas faculdades de cinema e de comunicação audiovisual. Benjamin Button é um best-seller cinematográfico. Atribua-se o valor que se quiser a esse fato, contanto que se o reconheça. Não obstante, o que interessa chamar à atenção aqui é que este filme é um bom best-seller. A começar pela premissa fantástica e por boa parte das suas consequências, muito bem trabalhadas. Em segundo lugar, é um filme muito competentemente realizado, nos aspectos técnicos; isso não quer dizer muita coisa para a abordagem que eu proponho, mas trata-se de um filme virtuosamente profissional – isso deve ser lembrado.

Em terceiro lugar – o mais importante –: Benjamin Button disfarça bem a sua estrutura convencional, por baixo de um acabamento que acaba por destacar mais a concepção criativíssima da premissa tirada de um conto de F. Scott Fitzgerald. O conjunto do filme tem uma apresentação sutil na tela. Embora se torne cansativo em alguns momentos, nós não nos sentimos excessivamente marketeados, manipulados pelos clichês semi-artísticos de uma produção oscarizável. Apesar de reconhecermos que tais clichês estão ali presentes, o filme de Fincher não é, absolutamente, tão irritante e “picareta” quanto Desejo e Reparação (2007, dir.: Joe Wright), o típico “oscarizável” do ano passado. Tal equilíbrio, eu creio que se deva a David Fincher, que decidiu aqui deixar de lado o caminho da violência que andava palmilhando desde Alien 3 (1993) até Zodíaco (2007).

quinta-feira, fevereiro 05, 2009

Fundo do Mar 3D


O documentário científico esteve nas origens e primeiros passos do cinematógrafo. O cinema nos ajudou a ver e a compreender – de um ponto de vista jamais antes alcançado – as particularidades do mundo natural. Recursos como o primeiro plano e a câmera lenta ajudaram muito biólogos, geógrafos, botânicos, oceanógrafos – sem contar o caráter de divulgação: qualquer pessoa, em qualquer lugar do planeta, poderia ver elementos de fauna, flora e terreno de localidades distantes e das mais diversas que jamais teria oportunidade de conhecer em outras circunstâncias. O cinema educativo, como modo de conhecimento e experiência. O cinema nos ensinou a olhar para a natureza com uma outra fascinação, uma fascinação que andava perdida ou uma nova fascinação.

Agora, presenciamos a segunda etapa dessa revolução. Já escrevi, em outros textos a respeito da nova tecnologia de exibição em 3D, o quanto muitos paradigmas da linguagem cinematográfica podem ser questionados graças a ela, o quanto da estética da sétima arte deverá ser repensada e atualizada com o advento da terceira dimensão. Se o cinema em si, nos seus pouco mais de 100 anos de existência, ainda está engatinhando nos seus potenciais comunicativos, expressivos e estéticos (em comparação com a história milenar das outras formas de arte), imagine-se agora com o surgimento de uma tecnologia tão incrível como o 3D. O alcance dos seus potenciais é tão alto que qualquer coisa que pensemos a respeito deles não passará de meros vislumbres proféticos.

O que me conforta e anima extraordinariamente é saber que o 3D está vivenciando ainda sua fase “Lumière”. Mas, algum dia, aparecerá um “Kubrick” do 3D; um novo Hitchcock, Eisenstein, Griffith ou André Bazin que saberão extrair o potencial artístico das novas tecnologias. O que sobrevirá daí está além dos nossos sonhos cinéfilos mais loucos... Por ora, o entusiasmo se dirige às obras pioneiras no esboço de uma nova linguagem e uma nova (re)descoberta do mundo: caso de Fundo do Mar 3D (“Under the Sea 3D”, EUA / Canadá, 2009, dir.: Howard Hall). Este filme, além de ser mais uma incrível mostra da terceira dimensão no cinema, inaugura a primeira sala I-Max do Brasil, no Espaço Unibanco de Cinema do Shopping Bourbon Pompéia, em São Paulo.

O I-Max faz parte das mais novas esperanças da indústria cinematográfica em se manter viva e respirando com folga. Trata-se de um novo formato de filme que pode ser exibido em telas de proporções colossais. A de São Paulo possui 14 metros de altura e 21 metros de comprimento. A união do I-Max com o 3D resulta numa experiência sensorial impagável. A tela ocupa todo o campo de visão do espectador com os óculos especiais e sentado a uma distância média. Em alguns momentos, é até necessário virar um pouco a cabeça para captar melhor detalhes de objetos nas laterais. Quem desqualifica tais experiências dizendo que elas são mais sensoriais do que artísticas nunca deve ter assistido a um filme de Stanley Kubrick (especialmente 2001 – Uma Odisséia no Espaço) ou de qualquer vanguardista. O sensorial e o artístico estão intimamente conectados.

terça-feira, fevereiro 03, 2009

A space odissey where no man has gone before


Em 06 de abril de 1968, estréia nos Estados Unidos 2001 – Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick. Não preciso ficar aqui mostrando as qualidades deste filme, à guisa de introdução. Basta lembrar as profundas e – até então – “inéditas” questões filosóficas que esta obra-prima leva para os âmbitos da ficção científica. Questões sócio-filosófico-culturais da modernidade e pós-modernidade, como, por exemplo: o “lance” nietzcheano do homem e do super-homem; a “morte” dos deuses (a consolidação final da sociedade secularizada). Na verdade, tem-se aqui a colocação do homem como o deus de si mesmo, viajando ao fundo do espaço desconhecido para encontrar apenas a si mesmo, renascendo como super-homem graças a essa “odisséia”. Tal é o resultado evolutivo ao qual o ser humano chegou graças (paradoxalmente) à ajuda dos velhos deuses e religiões (que deverão ser necessariamente superados em determinado estágio, restando deles não mais do que uma memória afetiva). Também há o fato de que esses velhos “deuses” constituiriam-se, em verdade, de visitantes alienígenas inteligentes (eram os deuses astronautas?).

Tudo isso é o que nos mostra o filme de Kubrick, explícita ou simbolicamente. Contudo, não cabe a ele a primazia do ineditismo ao tratar dessas mesmíssimas questões usando os meios audiovisuais. Em 22 de setembro de 1967, é exibido na TV dos EUA um episódio da mítica série Jornada nas Estrelas (“Star Trek”) chamado Lamento por Adonis (“Who Mourns for Adonis?”), escrito por Gilbert Ralston (sua única participação na série) e dirigido por Marc Daniels (que encenou 15 episódios). Nele, a tripulação da nave Enterprise descobre um planeta novo e é capturada pelo único habitante do lugar, que é ninguém menos do que o velho deus grego Apolo (Febo para os romanos). O deus sente-se feliz e orgulhoso pelo fato de os seus pupilos humanos lograrem singrar as distâncias do espaço e chegarem até ele; mas, por outro lado, exige do Capitão Kirk e cia. a mesma e velha devoção e submissão que os antigos helenos lhe dedicavam.




Logicamente, aí é que começarão os desentendimentos. Para resumir a história, Kirk, Spock e cia. argumentam que a humanidade já superou as velhas formas de religiões politeístas (Kirk diz até mesmo que um só deus basta) e suas práticas primitivas. Sem conseguir convencer Apolo, eles descobrem um jeito de destruir a tecnologia instalada no templo ali mesmo, que servia de base para que o deus os mantivesse cativos (tal tecnologia funcionava como catalizador e amplificador dos super poderes biológicos do “deus” – o qual pertence, obviamente, a uma antiga raça alienígena). Uma vez livres, os astronautas partem em meio às lágrimas de Apolo, o qual revela ser o último dos deuses a permanecer neste plano de existência, à espera dos homens – os outros “deuses” todos já tinham partido fazia tempo, descrentes da fé da humanidade. Gritando ao seu pai Zeus, a Atena, dentre outros, dizendo que no final das contas eles tinham razão, Apolo desaparece entre lágrimas copiosas e um discurso emocionado e ressentido.

No final, o Dr. McCoy (médico da nave) lamenta que tenha sido necessário fazer o eles fizeram, uma vez que a cultura grega antiga é a base da “nossa” civilização; ao que o Capitão Kirk responde que ficava imaginando o tanto que eles poderiam ter conquistado se tivessem decidido permanecer nos “braços” de Apolo... Para quem achar esse episódio meio bobo, saiba que, com poucas modificações dramatúrgicas, ele seria ousado até para os parâmetros da TV de hoje. Agora, imagine ele ser o que é sendo exibido nos lares norte-americanos de 1967. Compare-se com 2001 – Uma Odisséia no Espaço e veja-se quantas incríveis semelhanças (ainda que, na estrutura, a fita de Kubrick seja bem mais erudita e “adulta”). “Star Trek” é como aquelas versões que o rock and roll ou a música eletrônica fazem das composições de Beethoven. O engraçado é também pensar que a NASA vinha conduzindo as missões “Apollo” desde 1961 – em 1969, a “Apollo 11” levaria o homem à Lua. Suave seja o caminho estelar de Gene Roddenberry...