quarta-feira, novembro 17, 2010

35 Doses de Rum


Muito já se falou das relações entre cinema e poesia, e muitas são as definições para um tal cinema de poesia. Talvez a mais conhecida – e igualmente polêmica – seja a de Pasolini, que distinguia o cinema “de poesia” e o cinema “de prosa”, inspirado que estava pelas metodologias da linguística e dos estudos literários. Para o cineasta italiano, a poesia se revela nos filmes através do trabalho prioritário da forma, que deve se fazer auto-evidente (o “estilo” deve estar à mostra, como o esqueleto de um prédio), em oposição a uma filmagem “naturalista” (prosa) na qual a câmera – o instrumento mais essencial da escrita fílmica – procura se fazer invisível. Uma das decorrências disso é que a linguagem audiovisual deve buscar maneiras próprias de importar as figuras de linguagem da poesia escrita (principalmente a metáfora / alegoria).

Ao meu paladar, são mais saborosas as formulações de Tarkovski, o escultor do tempo. Para o diretor de Solaris (1972), a poesia nasce de uma “consciência do mundo”, a qual se derrama muito para fora do pensamento racional. Dotado de um olhar não-analítico e não-linear, o artista reconhecerá como ninguém a “organização poética da existência”; com isso, a expressão objetiva – dita realista – que ele há de empreender será muito diferente do fetiche positivista que domina as formas de representação literária e cinematográfica desde o século XIX. O pensamento poético é dotado de sua própria lógica, irredutível a quaisquer manuais de dramaturgia. Em um cinema assim, o espectador participa ativamente, com o cineasta, do processo de construção do filme, que para ambos é antes a descoberta da vida do que a demonstração de um “teorema”.

Essas ideias do grande mestre russo funcionam como recipiente perfeitamente transparente para acomodar as 35 Doses de Rum (“35 Rhums”, França, 2008). Este pequeno grande filme passou pela Mostra de Cinema de SP no ano passado, mas nunca estreou em circuito comercial, tampouco foi lançado em DVD, assim como várias outras pérolas de sua diretora, Claire Denis – a mais recente, Minha Terra, África (“White Material”, 2009) foi exibida na Mostra deste ano e estreou apenas numa sala, em São Paulo (adivinhem qual seja). Apesar de Andrei Tarkovski afirmar que não pensa em poesia como gênero, o sabor que fica nos olhos e ouvidos, quando assistimos à Claire Denis, não é apenas o de uma visão de mundo poética.

O que chamará a atenção em seu filme, se o colocarmos dentro de todo o debate a respeito de cinema e poesia, será a intensidade do seu lirismo. As 35 Doses de Rum são poéticas na medida em que constituem a expressão formal da descoberta da vida e da organização poética da existência, para emprestar mais uma vez as palavras tarkovskianas; e são líricas na medida em que tal descoberta e tal existência são carregadas de emoção. O filme inteiro é uma panorâmica das paisagens do espírito, com escalas nos mais diferentes estados interiores. Diz muito a esse respeito o fato de a diegese ser, em grande parte, atravessada por meios de transporte (um trem de metrô, uma van, um táxi, uma moto).

Mas esse fato simbólico é colocado sem pesar a mão sobre o efeito de real – o qual, afinal de contas, é o veículo do filme. Melhor ainda seria dizer: efeito de verdadeiro, já que a vida (em sua dimensão subjetiva) é o motor desse veículo. Dessa maneira, o dramático tem um papel muito reduzido na história. 35 Doses de Rum é um filme quase sem diálogos; e quando estes se fazem presentes, realizam-se sob palavras rápidas, fragmentadas, e em voz baixa. Mas não pensemos que tal procedimento torna frouxas as relações e tensões entre as personagens. Muito ao contrário, aquelas se manifestam muito mais num kabuki de gestos e olhares que se entrecruzam, atravessam, chocam e se perdem uns dentro dos outros.

A arquitetura dramática não se faz muito consistente; pelo menos, não em um sentido tradicional. A maneira como os corpos deixam exalar essências das almas confinadas sob pressão cobre o filme todo de uma atmosfera densamente lírica. Essa ênfase toda no lirismo também faz com que 35 Doses de Rum deixe de lado as infusões épicas, as quais, assim como as dramáticas, fariam parte natural e essencial de um longa-metragem de ficção. Na exibição de uma hora e quarenta minutos, pouca coisa acontece, efetivamente, em termos narrativos e causais; nisto, apresenta igualmente pouco consistência a trama linear e lógica dos acontecimentos (que Tarkovski tanto despreza). Não é que o filme seja “sem pé nem cabeça”, ou com vários “buracos” e “pontas soltas” na história; somente um espectador pouquíssimo treinado (ou muitíssimo acostumado a formas mais “mastigáveis” de cinema) poderia achar tais coisas.

Claire Denis trabalha bastante no terreno do implícito e do ambíguo, cuidadosamente plantados. Concluindo, a sensibilidade e humanidade deste filme são surpreendentes. Tem potencial para obra-prima contemporânea. Conforme eu ia assistindo, pensava comigo mesmo, a respeito da mise en scène: “está mais para um filme oriental”. Foi quando caiu a ficha: “essa história entre pai e filha lembra muito mesmo o Pai e Filha (1949), de Ozu”. Depois, pesquisando na rede, li que Denis fora assistente de Wim Wenders. Ah, agora tá explicado. Basta ver a epígrafe que o diretor alemão colocou em Asas do Desejo (1987), dedicadas aos “ex-anjos” Andrei (Tarkovski), François (Truffaut) e Yasujiro (Ozu). Realmente, nada do que foi, é ou será humano nos é alheio – jamais.

sábado, novembro 13, 2010

Tropa de Elite 2


Tropa de Elite 2 é o filme mais eficiente do cinema brasileiro, desde a retomada. A afirmação não é cínica. José Padilha realmente logrou fazer uma fita que funcione em todas as frentes: a autoral, a “comercial”, a dos gêneros, a ideológica, a da recepção. Agora, se há algum dedo “esquecido” no canto dessa balança, isso já configura uma outra discussão que é até melhor deixar para lá; por ora, parabenizemos o diretor e o roteirista (Bráulio Mantovani, em parceria com o próprio cineasta) por realizarem o trabalho hercúleo, acrobático e messiânico de prover-nos com uma obra cinematográfica que seja a “cara” do Brasil – para nosso orgulho e nossa vergonha.

Para adentrarmos nas novas aventuras do – agora comandante – Roberto Nascimento (Wagner Moura; escusaremos o cliché de elogiar-lhe a atuação), devemos ter diante dos olhos, antes de mais nada, a evidência de que este filme nada faz por “mostrar” a realidade. A sua conquista e valor não se dão por tomar um dado supostamente real e “revelar”, “denunciar”, “desmascarar”, ou qualquer outro vocábulo sedutor de intelectos não-imunizados. Padilha está anos-luz à frente de cineastas pretensamente engajados, porque sabe e assume o trabalho sujo que é próprio do seu meio – aqui sim, podemos aplicar alguma dose de cinismo.

No fundo, Padilha não difere muito de seu protagonista, apesar de todas as oposições discursivas e ideológicas. Vamos lá. Assim como o seu predecessor, Tropa de Elite 2 empreende um discurso de interpretação do Brasil. Tal discurso procura delimitar suas fronteiras através do confronto entre duas falas diametralmente contrárias – mas vizinhas; portanto, inimigas. Na primeira camada da estrutura do filme, ouvimos o texto verbal de Nascimento – o personagem-narrador –, porta-voz confesso da visão de mundo de uma parcela considerável (tanto porque dominante) da população brasileira; e nesta sequência, testemunhamos um delicioso mea culpa do personagem em relação à sua maneira de ver e “resolver” as coisas.

Na segunda camada, vemos e ouvimos o texto audiovisual de Padilha em franco contraponto irônico com o primeiro (leiam Machado de Assis, galera: vocês terão olhos para ver e ouvidos para ouvir todas as sutilezas). Digamos que o diretor apenas dê voz à personagem, sem que precisem ocorrer aí maiores procedimentos mediúnicos – este não é (mais um) filme espírita. Em relação maior ao primeiro filme, pareceu que muitos críticos e parte do público mais “cabeça” tinham fugido da escola no dia em que se lecionou que personagem-narrador não é, necessariamente, a mesma coisa que autor. Muito bem.

Quanto a esta segunda película, o diretor carregou ainda mais na verve sarcástica; porém, sofisticando-a um pouco mais, para não ferir orgulhos e sensibilidades. A sua metralhadora continua apontada tanto contra a irresponsabilidade do discurso da “direita”, quanto à hipocrisia (ou ingenuidade) do discurso da “esquerda”. Mas tomando todo o cuidado para demonstrar os acertos e acordos de uma e de outra, entre uma e outra. É uma manobra política que conquista para o filme muitos votos positivos. E cinematograficamente, Padilha e Mantovani não sacrificam muito da arte para tais propósitos... didáticos, digamos assim.

Não obstante, há o sacrifício, logicamente. Sentimos muito pesadamente, em Tropa de Elite 2 (mais do que sentíamos em relação ao primeiro), que os acontecimentos diegéticos, os cenários, os personagens, a fotografia, a montagem, a trilha sonora, tudo está a favor de uma ideia – ou de algumas ideias, pelo menos. O filme leva muito a sério, muito claramente (e, de novo, mais do que o anterior), o diálogo com o espectador; mais do que diálogo, uma retórica repleta de argumentos muito cuidadosamente posicionados por quem já sabe (vide a recepção do primeiro filme) que pisa em terreno minado.

Mas a verdadeira eficiência, de que falávamos lá no começo, está em que Tropa de Elite 2 não deixa (muito) de ser esteticamente preocupado, sob qualquer ponto de vista artístico que se observe. Mais do que isso: não podemos sequer dizer que a forma do filme se faça apesar do seu conteúdo; ambas estão organicamente intrincadas: para investir melhor nessa “conversa” com o público, nada melhor do que insistir na velha e boa catarse, não? Nunca falha. Todas as fórmulas do filme de gênero compõem aqui o trabalho “sujo” de que falamos mais atrás, e que o cineasta-autor José Padilha não tem vergonha de utilizar para os seus próprios interesses e objetivos.

No entanto, aprofundaremos essa questão um pouco mais para a frente. É preciso reiterar que Padilha incorpora ao discurso de Tropa de Elite 2 a recepção que o filme anterior sofreu e, também, as recepções que este mesmo pode sofrer. Parece que o diretor e o roteirista calculam e antecipam a réplica e a tréplica do espectador, respondendo impiedosamente a ambas e tomando todo o cuidado (um tanto excessivo, em alguns momentos) para evitar mal-entendidos e interpretações impertinentes (o que também contribui, é claro, para o marketing e a bilheteria). É neste ponto, principalmente, que a arte do filme fica um tanto quanto sacrificada.

O universo diegético da narrativa apresenta um emaranhado dialético de discursos e posicionamentos ideológicos; mas o próprio filme – em si – acaba pecando pela falta de ambiguidade. Acredito que seja por aí que se explique o fato de que um crítico – naquele quadro de cotações da Folha de S. Paulo – tenha qualificado Tropa de Elite 2 pela sua “ambiguidade”; enquanto outro crítico, na mesma página, desqualifique a obra pela “ausência de ambiguidade”. A panorâmica final sobre Brasília, enquanto a voz em off de Nascimento faz uma provocação ao espectador equivalente à do último plano em Tropa de Elite 1, apresentam um tom um tanto quanto pueril, não?

A ideia e a intenção são, sem sombra de dúvida, inquestionavelmente pertinentes. Mas a execução audiovisual e verbal lembram um pouco a “tosquice” do discurso revoltoso e anti-“sistema” de bandas de rock juvenis (Pitty, por exemplo). Entretanto, tudo se explica pela proposta de acessibilidade do filme, no seu diálogo aproximado com o público. Não obstante, será que se justifica? De qualquer maneira, esqueçamos alguns detalhes problemáticos e julguemos o valor desta obra cinematográfica pela sua eficiência geral, em primeiro lugar. Em segundo, elogiemos os seus autores não por pretenderem mostrar a realidade, mas por terem conseguido articular discursos muito pertinentes sobre esta – incluindo o seu próprio, enquanto autores.

E qual é, afinal de contas, o posicionamento de Padilha? A impressão que o filme nos traz é de um impasse. Muito mais do que na produção anterior, o nó brasileiro é mostrado aqui como inextricável; noves fora, a fala final de Nascimento é amarga, pessimista. Como o próprio personagem admite, infelizmente o sistema não tem centro de comando; não passa de uma articulação mais ou menos caótica de interesses escrotos, que sempre se renovam e encontram algum ponto de equilíbrio; seria preciso um furacão inimaginavelmente forte para derrubar tudo, mesmo.

Esse furacão ainda vai demorar pra chegar: eis a conclusão do narrador, depois que seu posicionamento veio ao encontro do seu opositor (Fraga, o intelectual de esquerda), e no momento em que parece finalmente se unir também à opinião do autor, no último plano do filme. Apesar das alianças inesperadas (Nascimento e Fraga) e das vitórias relativas, a dissociação estrutural profundamente enraizada da sociedade brasileira ainda persiste. No impasse pendular e corrosivo em que se aproximam e se afastam a direita honesta e “burra” (Nascimento), a esquerda honesta e “burra” (Fraga), os “culpados” (traficantes, consumidores de drogas, eleitores, policiais e políticos corruptos) e os “inocentes” (a jornalista e o fotógrafo, assim como o filho de Nascimento), o que nos sobra é uma terra em transe.

A referência nos lembrará a função do cinema em tudo isso. No seu projeto de interpretação e diagnóstico do Brasil, o filme de Padilha é tão alegórico quanto o clássico de Glauber Rocha. Ambos já são filmes prontos, antes que se rode a filmagem (o andamento da história e dos personagens não interessa tanto quanto o que se quer exemplificar com isso). A diferença é apenas relativa. Enquanto Glauber Rocha dispensa não só a ideologia “burguesa”, como também os métodos de representação “burgueses” (o cinema narrativo clássico), praticando um cinema absurdo para um país absurdo, Padilha usa a máquina e o método do “sistema” para atacar o próprio “sistema”.

Glauber é, indiscutivelmente, um herói nacional. Mas caberia no cinema da retomada? Mais importante ainda é perguntar: deveria caber? Em que medida? É claro que, sob qualquer circunstância, precisa haver espaço para cineastas “com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Mas é legítimo assistirmos a Tropa de Elite 2, a ambos os Se Eu Fosse Você (veja-se que eu não cito as verdadeiras porcarias do cinema dito comercial), e ainda ficarmos com nostalgia(zinha) de Glauber e Sganzerla? É por isso que eu digo: os dois melhores filmes brasileiros deste ano são Tropa de Elite 2 e O Grão (do jovem e estreante diretor cearense Petrus Cariry – resenha aqui).

Agora é a hora de detalharmos o trabalho “sujo” do cinema-BOPE de Padilha. O diretor aciona todos os mecanismos de identificação do cinema clássico, “burguês”, a ilusão da tela como “janela” e a invisibilidade dos elementos discursivos do próprio filme, para torturar, “sadomasoquistamente”, a própria burguesia. Dentre as diversas cenas nas quais a catarse funciona como elemento “comercial”, ao mesmo tempo em que se faz de crítica, vamos analisar uma – a mais deliciosa: a da blitz que uma patrulha do BOPE, comandada pelo próprio Nascimento, faz à porta do condomínio de luxo no qual mora um dos vilões de colarinho branco do filme.

A cena toda é construída sob o ponto de vista do político corrupto, que vai se aproximando do lar, sentado no banco de trás do seu luxuoso carro, guiado por um motorista particular. Este a visa o seu patrão a respeito da patrulha. O político, irritado e impaciente, responde que pode encostar o carro, para que dê uma bronca no comandante daquela operação “absurda”. Uma vez que o veículo estaciona, um soldado pede que o político desça; este pergunta quem é o chefe daquilo tudo, e eis que aparece Nascimento, arrancando o homem de dentro do carro pelo colarinho, encostando-o na lateral do veículo e já atirando-lhe impropérios, ameaças e uns bons sopapos.

Há uma razão bastante pessoal para a atitude de Nascimento (veja o filme). Mas o que importa é que a câmera permanece o tempo todo por trás do político, como que assumindo o seu ponto de vista subjetivo, enquanto nos é apresentada com grande grafismo a violência de Nascimento, sempre em primeiro plano e com alguns bons requintes de crueldade. Neste ponto, o espectador dá pulos de alegria na cadeira – mas dizendo, ao mesmo tempo: “só no cinema mesmo...” Padilha nos serve na bandeja exatamente o que mais sonhamos: um castigo “bem feito” para os donos corruptos do poder. Afinal, as massas sempre querem ver sangue, não? Que tal o de um deputado ladrão e assassino?

Padilha reescreve – melhor ainda, reinventa – a história social do Brasil, um país cujos detentores do poder nunca se sentiram lá muito ameaçados, o que só faz por aumentar os seus abusos e a sua desfaçatez (em relação a esta última, é incrivelmente bem pensado o personagem Fortunato, que encarna aquele tipo nojento do apresentador de noticiários policiais sensacionalistas da TV – Datena e laia; pesquise no Google e você verá que eles pipocam pelo Brasil inteiro, e alguns já foram até presos por crimes!). Mas pena que essa reinvenção não não vai além do território fantasioso do cinema. De qualquer maneira, Nascimento é o nosso “inglorious basterd” tupiniquim (valeu, Cris, pela sacada!).

Além de tudo, nesta cena em particular, mais do que em qualquer outra, Padilha parece responder muito sarcasticamente a certas críticas feitas em relação ao primeiro filme; eu duvido que muitos dos que chamaram o diretor de “fascista”, por causa da suposta condescendência com os métodos questionáveis do personagem Nascimento, repetirão a acusação agora que “o inimigo é outro” (para aproveitarmos o subtítulo da fita). Como é que fica? Definitivamente, o espectador também é um personagem do filme, tão metido no meio da “merda” quanto todos os outros. É tão tranquilizante quanto culposo refestelarmos nossos olhos e ouvidos no espancamento do deputado.

Se a cena toda tivesse sido elaborada a partir da posição do Nascimento, com a câmera mais perto dele, o efeito seria bem diferente: as acusações de “fascista” poderiam voltar. Porém, neste caso, a câmera colocada ao lado da vítima não despertará no espectador simplesmente a repulsa instintiva de quem está sendo violentado (o que acontece na última imagem de Tropa de Elite 1). Paradoxalmente, a câmera que assume o ponto de vista da vítima, neste caso, só faz com que nos identifiquemos ainda mais com o agressor: sentimos mais “na pele” a violência, e isso nos ajuda a sentir também, mais ainda, o valor moralmente legítimo dessa mesma violência; o agressor é o “anjo vingador” e a vítima é um “pecador incorrigível”.

Esta cena é quase um afresco medieval. Outra escolha de decupagem extremamente simples, mas com grandes efeitos expressivos, pode ser encontrada no momento em que aparece, pela primeira vez, o apresentador Fortunato em seu programa de TV / circo de horrores. Durante um tempo relativamente longo, a câmera de Padilha identifica-se com a câmera do próprio “noticiário”, centradas que permanecem ambas na figura burlesca do “show man” e na sua performance. Então, ocorre um corte seco e a câmera de Padilha passa a mostrar um plano de conjunto em que Fortunato está perfeitamente inserido – quase engolido – pelo cenário do programa, com seus tapumes e maquetes de aparência frágil e “tosca”, mal instalados dentro de um galpão muito maior e mais feio ainda, repleto de fios e cabos emaranhados, objetos mal dispostos, etc.

O contraste violento – potencializado pelo corte seco – entre a parte do cenário que se vê na telinha da televisão e o resto, ou seja, o seu todo verdadeiro, revela com grande sabedoria cinematográfica o caráter artificial do audiovisual (no caso, a TV), todo o aparato ativado para uma construção discursivo-ideológica, a fábrica de uma ilusão que, quanto mais se pretende real, mais se revela fantasiosa. Este cenário é uma alegoria – quase do tipo medieval, mais uma vez – para as diferenças entre o que se diz e o que se faz, entre o que se faz e o que se é, entre o que se escancara e o que se esconde, em relação a todo o debate político-social do filme – dentro do qual, logicamente, Fortunato exercerá um papel também bastante performático.

E já que falamos da montagem, vamos dizer que o ritmo alucinante de Tropa de Elite 2 também contribui para a criação do efeito de “terra em transe”. Como disse Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes. Enfim, pensemos em mais uma cena; esta, representativa do que falamos antes, a respeito da teia de discursos que compõem este filme, e de como o discurso do próprio autor se posiciona em relação a estes. Logo no começo, temos uma rebelião na penitenciária de Bangu I; um pelotão do BOPE já está posicionado e pronto para invadir, com Nascimento no comando; mas o governador do estado prefere enviar Fraga, como representante de uma ONG de direitos humanos, para tentar negociar a rendição dos presos rebelados.

De toda a sequência, recortemos os momentos iniciais. Nascimento narra os acontecimentos, antes de chegar ao presídio, e já começa a reclamar da irrepreensível intervenção de Fraga (esse “intelectualzinho de esquerda”, que é tudo o que o preso quer quando faz “merda”). Em paralelo, nos é mostrada uma palestra que este ministra, naquele mesmo momento, a respeito dos problemas do sistema carcerário. Assim, de um lado, fica posicionado o discurso da “direita” e, do outro, o da “esquerda”. O discurso do próprio filme começa a entrar logo em seguida, quando, num belo travelling lateral, a câmera vai percorrendo os diferentes monitores que mostram imagens das câmeras de vigilância do complexo, enquanto os movimentos iniciais do motim têm início.

Acompanha tais imagens a voz de Fraga, que continua a discursar na sua palestra. O efeito criado é ora de harmonia ora de contraponto entre o que este diz e o que as imagens da rebelião mostram. Por exemplo, no momento em que Fraga fala sobre a corrupção dos agentes de segurança, as imagens mostram exatamente um deles fazendo “vista grossa” para os presos que se rebelam. Neste ponto, o discurso audiovisual do filme confirma a posição da “esquerda” e concorda com ela. Em outro momento, Fraga fala dos presos enquanto cidadãos que nunca tiveram oportunidade, e por isso, teriam caído na criminalidade; mas as imagens do circuito interno da prisão não levam a crer que aquelas pessoas são apenas uns “coitados” sociais que não têm muita consciência ou poder de decisão sobre o que estão fazendo.

Então, o filme parece concordar com a “direita” e afirma que, independentemente das condições sociais, o criminoso age com todo o seu livre-arbítrio. Desse modo, usando os recursos audiovisuais para contrapor os argumentos verbais dos dois personagens, representantes que são de dois extremos no debate social brasileiro, José Padilha procura dialogar com ambos e apresentar a sua própria retórica como análise crítica não só da realidade, mas das interpretações que se fazem sobre ela. Sentimos que, com Tropa de Elite 2, o cinema brasileiro atingiu um patamar de sofisticação que seria inimaginável no início da retomada (1994), ou mesmo à época de Cidade de Deus (2002), o filme do período com melhor carreira internacional – tirando o fato de Tropa de Elite 1 ter faturado o Urso de Ouro no Festival de Berlim em 2008. A coisa tá esquentando.

sexta-feira, novembro 05, 2010

Ilha dos Mortos


Durante o século XIX, houve um costume sinistro: algumas famílias tiravam fotografias dos seus mortos, pouco após a hora derradeira, vestidos como costumavam se vestir e colocados em posições bem cotidianas, como se estivessem vivos e “posando”. Tais retratos eram emoldurados e expostos junto à mobília do lar. O procedimento era aplicado a parentes de todas as idades, inclusive crianças. Pois bem. George A. Romero demonstra, mais uma vez, a agudeza do seu pensamento colocado nos filmes, ao incorporar uma referência imagética e dramática a tal hábito em seu mais novo capítulo da saga dos mortos-vivos: Ilha dos Mortos (“Survival of the Dead”, EUA, 2009).

As questões familiares sempre estiveram presentes nas histórias de zumbis do diretor, desde o seminal A Noite dos Mortos-Vivos (“Night of the Living Dead”, 1968). O drama de se ter os entes mais queridos transformados em carniças antropófagas, e o que fazer em relação a isso – leia-se: matar ou ser morto –, comparece em todos os 6 filmes da cinessérie. Mas o que realmente interessa não é tanto a fantasia em si – que pode soar até um pouco ridícula –, perto do significado alegórico que os “mortos” de Romero sempre tiveram. Os zumbis não passam de pretextos para discutir as relações entre afeto e memória que permeiam, acorrentam e tensionam todas as estruturas familiares.

É por este cais que devemos aportar à Ilha dos Mortos, na qual o roteirista-cineasta-produtor desenvolve a temática das relações “de sangue” ao seu ponto mais alto, se comparado aos filmes anteriores. Para George A. Romero – principalmente na cena dos retratos dos falecidos a caráter –, a memória dos mortos é algo que não conseguimos simplesmente apartar de nós, da presença quase física de nossa consciência cotidiana. A memória é algo que irremediavelmente voltará para nos morder a carne, refestelar-se em nosso sangue, sugar-nos a vida. Eis a função simbólica dos zumbis de Romero. Faz-se dramaticamente expressiva em três ou quatro cenas deste filme – pelo menos.

Os mortos aqui já não são os excluídos da ordem social (como em Terra dos Mortos – “Land of the Dead”, 2005), nem os consumidores dentro dessa mesma ordem (Despertar dos Mortos – “Dawn of the Dead”, 1978; conforme o poeta José Paulo Paes diria: consumidoidos). No final das contas, a ironia do diretor também se faz muito presente no fato de, nesta última fita (que está saindo no Brasil somente em DVD), o maior número de mortes “matadas” acontecer pelo fato de os vivos atirarem uns nos outros, movidos por suas eternas rixas. A violência sanguinolenta das mortes causadas pelos ataques zumbis são bastante anêmicas perto da agressividade psicológica e moral dos que ainda respiram.

A narrativa já começa com uma grande ironia: vemos o sargento de um grupo da guarda nacional (que se tornaram bandoleiros de estrada) falar que o maior problema pós-despertar dos mortos são os assassinatos e suicídios. Falar em homicídio (mesmo o de vivo contra vivo) numa epidemia zumbi tem tanto significado quanto julgar alguém por homicídio dentro de uma guerra (há que lembrar a também alegoria do juízo final que é o Apocalipse Now de Coppola). Também é irônico o possível subtexto vegetariano que Romero destila desta vez: os seus zumbis não atacam animais (não mesmo?).

O comentário social também se faz presente na fábula distópica que Ilha dos Mortos apresenta (versão rural da distopia urbana que víamos em Terra dos Mortos). A tal ilha e sua natureza exuberante configuram-se muito ironicamente (é o tom central em todo o discurso de Romero) como um espaço anti-idílico por excelência. Não há lugar para a nostalgia e para o naïf românticos nos contos de Romero. A figura hedionda dos cadáveres ambulantes em plena decomposição infecta e polui, irremediavelmente, todo e qualquer cenário de possível escape. Não obstante, os sobreviventes não abandonam jamais a demanda.

Mas a maior mácula da ilha não são os mortos-vivos. E sim, os vivos-mortos. Estes são representados pelos dois latifundiários que (mal) dividem o pequeno território insular. O’Flynn e Muldoon são os grandes representantes da “Améria profunda”; na verdade, encarnam quaisquer resquícios putrefatos de sociedades tradicionais e patriarcais que ainda sobrevivem, à moda zumbi, no mundo contemporâneo. Desse modo, a ilha, longe de se apresentar como uma novíssima “Shangri-Lá”, está mais para um descabido e risível entrave arcaico-colonial numa civilização moribunda.

Agora, o melhor de tudo é que o Romero artista sabe que cinema é discurso, que se realiza segundo convenções de gênero, as quais, por sua vez, dialogam com as condições sociais em que se produzem os filmes, ou que emprestam a estes os temas. Assim, qual a maneira mais adequada de se mostrar, dramaticamente, os conflitos entre a família O’Flynn e a família Muldoon que não seja acionando os elementos constitutivos do western? Eis a mais recente sacada de George Andrew Romero: fazer um faroeste zumbi; o seu próprio “Gunfight at ‘Zombie’ Corral” (lembremos o clássico Sem Lei e Sem Alma – “Gunfight at O.K. Corral”, 1957, de John Sturges). Que o mostre para nós a incrível sequência final deste Ilha dos Mortos.

quarta-feira, novembro 03, 2010

The Walking Dead


A maior conquista de The Walking Dead é, paradoxalmente, não tentar “inovar” o velho e bom gênero dos filmes de zumbis. A brincadeira, muito bem-vinda, parece ser levar para o formato das séries de TV a história que George Romero – o grão-mestre – vem contando ao longo de 6 filmes de cinema (até agora). E isso é realmente entusiasmante – se for bem feito, é claro. Nada como a boa e velha narrativa seriada, da qual a TV norte-americana é mestre, para fazer o espectador viver o apocalipse dos mortos-vivos com as devidas doses de ansiedade e angústia. Se os produtores de The Walking Dead conseguirem fazer nada menos do que foi a recém-concluída Lost, os cinéfilos (no sentido amplo do termo, do qual não deverá ser excluído o velho aparelho televisor) terão muito a agradecer.

Não que a série de J. J. Abrams seja absolutamente impecável; mas, tendo em vista as vicissitudes trazidas pelo meio (a serialização numa TV comercial), o saldo é bem positivo. Assim, premio Lost como uma obra-prima contemporânea (quem discordar, pode xingar à vontade). Quanto a The Walking Dead, que estreou ontem na Fox, a primeira temporada compõe-se de 6 episódios, com a segunda já encomendada. O roteiro e direção ficam a cargo de Frank Darabont, que tem boa experiência em terror: escreveu os roteiros de A Hora do Pesadelo 3 (1987), A Bolha Assassina (1988), A Mosca 2 (1989) e Frankenstein de Mary Shelley (1994); dirigiu episódios da série televisiva Tales From The Cript (1990-1992); escreveu e dirigiu Um Sonho de Liberdade (1994), À Espera de Um Milagre (1999) e O Nevoeiro (2007), todos adaptados de livros de Stephen King.

Com tudo isso, do que já vimos no primeiro episódio da sua nova empreitada, a mise en scène é bem cinematográfica e o roteiro já vai semeando diversos elementos, bastante distintos (alguns bem dramáticos), os quais já deduzimos que entrarão em conflito dentro de algum ponto da série. Os ganchos foram todos muito bem plantados. Acompanhamos a história do policial Rick Grimes (Andrew Lincoln), que vive um casamento em crise. Abatido por um tiro durante uma chamada, ele fica algum tempo (longo, pelo que inferimos) em coma. Quando acorda, vê-se sozinho. O juízo final dos mortos-vivos já havia começado. Tendo de se virar por conta própria, Grimes parte em busca da esposa e do filho, que acredita estarem vivos.

Pelo caminho, vai encontrando outros sobreviventes, como um homem que, junto do seu filho pequeno, reluta em dar o coup de grâce na esposa, transformada em zumbi. Este pequeno drama familiar está bem ao tom e ao gosto dos filmes de Romero, fazendo-nos lembrar também o surpreendente A Estrada (“The Road”, EUA, 2009, dir.: John Hillcoat, sobre o romance de Cormac McCarthy – autor de “Onde Os Fracos Não Têm Vez”); sem contar que a história de um homem em busca da família num mundo pós-apocalíptico traz logo à memória A Guerra dos Mundos de Spielberg. Como se vê, Darabont buscou arvorar-se em troncos largos e muito bem plantados. De resto, se o começo de The Walking Dead lembra o de Extermínio (o despertar, no hospital, para o caos), cabe a consideração de que Frank Darabont parece menos disposto a brincadeiras e estrepolias do que Danny Boyle.

Não vimos, aqui, nenhum zumbi “atleta” (ainda bem). Darabont parece levar muito a sério o seu gênero; apesar de a série basear-se em graphic novels (histórias em quadrinhos), o diretor-roteirista parece estar pouco se lixando para a cultura “pop”. Ponto para ele. O conceito “biológico” dos zumbis de Walking Dead é aquele clássico de George A. Romero: ou seja, mortos-vivos incorrigivelmente “songos-mongos”. A pegada dramática da série também nos parece inspirada pelo criador da Noite dos Mortos-Vivos (1968). Resta a curiosidade de saber se Darabont aproveitará algo das alegorias sócio-políticas irreverentes e subversivas que Romero destila em todas as suas fitas. Pago para ver. Enfim, esqueça Danny Boyle e esqueça, mais ainda, Zack Snyder (o do “remake” de Dawn of the Dead de Romero, traduzido por “Madrugada dos Mortos”). Frank Darabont não perde tempo e morde logo as raízes. Muito bem.

terça-feira, novembro 02, 2010

Amor Líquido


Amor Líquido (“Amore Liquido”, Itália, 2009) é o primeiro longa-metragem do relativamente jovem diretor Marco Luca Cattaneo (33 anos), graduado e pós-graduado em cinema. Foi registrado em vídeo e, num primeiro momento, pode dar ao espectador desavisado desta Mostra de SP a mesma impressão de amadorismo do já comentado aqui no blog Os Amores de Um Zumbi. Mas, com um pouco de paciência (a qual muitos não tiveram, pois viam-se pessoas indo embora no meio da exibição, a todo instante – o ritmo deste filme é, de fato, um tanto quanto lento) descobrir-se-á uma película (ou melhor, um arquivo digital) de grande profissionalismo e potencial artístico.

A história é a de Mário, um solitário gari bolonhês que vive com a mãe, muito debilitada após um derrame. O homem divide as suas horas entre o trabalho, o cuidar da velha senhora, e um “hobby” muito peculiar: pornografia na Internet. Tudo vai equilibradamente bem, até o momento em que ele leva para casa alguns DVDs jogados fora por uma mulher em fase de divórcio (Ágatha). Os discos contém vídeos de viagens em família e gravações íntimas da vida sexual do casal. Mário muito se divertirá, naturalmente, com os últimos.

E o mais interessante é que o gari tentará se aproximar de fato de Ágatha, que é atendente em um café. Apaixonado, sua estratégia – ainda que bem tímida – será a do amigo / companheiro / cara legal, tendo em vista que a mulher já está separada e criando, sozinha, sua filha pequena (Viola). Mário despertará grandes simpatias e conquistará a confiança da menina e, não muito posteriormente, a da mãe. Nosso conhecimento de mundo nos leva, incontroladamente, a desconfiar das intenções e do caráter do protagonista: será ele um psicopata?

E acredito que o filme se compraz ao saber (e levar em conta) os pensamentos “sujos” que se passam pela mente do espectador. Mas a chave aqui é bem outra. Mário é, verdadeiramente, um homem de bom coração. Seu problema reside no fato de ser um incorrigível pobre diabo, um adolescente de 13 anos preso no corpo de um homem dos seus 35 – nada que alguns anos de terapia não pudesse ajudar a resolver. Mário é a figura de uma solidão muito típica dos grandes centros urbanos – e que é bastante discutida no Air Doll, que comentamos ontem.

Há algo de dostoievskiano neste personagem; e algo, mais ainda, dos personagens irremediavelmente solitários dos romances do também italiano Dino Buzzati (“O Deserto dos Tártaros”, “Um Amor”), absolutamente perdidos em meio aos seus desejos e expectativas, assim como entre toda a dinâmica e convenções das relações sociais, cuja complexidade está muito, muito além da capacidade e experiência de manejo por parte de tais pessoas, cuja ingenuidade-pureza (o naïf em sua forma mais pueril) chega quase ao nível do patológico. O resultado disso só pode ser a paralização mais completa. Mário fica – e termina – completamente sem ação.

A cena final é chocante e plena de significação. Ele não conseguirá engajar-se num relacionamento com Ágatha; por outro lado, também não conseguirá abandoná-la – pelo menos, não de uma forma decidida, segura, adulta. É triste, mas muito verdadeiro. É também muito interessante a maneira como o ritmo do filme – bastante arrastado – vai construindo gradativamente toda essa situação, até chegar à cena final, que exerce no espectador um choque quase como o de um coito interrompido, uma “broxada”, digamos assim.

Creio que esse efeito de anti-clímax tenha sido bem proposital, tendo em vista o leitmotif sexual do filme, explorado em algumas cenas com todo o incômodo do escatológico. O diretor Cattaneo explora muito os planos longos centrados nas atividades cotidianas e abjetas (o recolher do lixo nas ruas, o dar banho na mãe inválida), ou cotidianas e ignóbeis (a masturbação, a visualização de pornografia, o voyeurismo de garotas adolescentes pelas ruas, as conversas picantes, por comunicadores instantâneos tipo MSN, com uma mulher misteriosa).

Parece que o cineasta acionou sua formação em escola de cinema para tentar realizar o velho ideal neorrealista de Cesare Zavattini: um filme que mostra, em tempo real, todos os não-acontecimentos do dia-a-dia de um homem. Porém, de uma forma que nos faz pensar, antes, em um “neonaturalismo” (o indivíduo como escravo de seus instintos mais baixos). É como se Antonioni (o cineasta existencialista da “incomunicabilidade”) se associasse a Tinto Brass (o mestre pornógrafo de Calígula) para adaptar “O Homem do Subsolo” de Dostoiévski. Com alguns milhões de euros, para uma filmagem em película e uma grande distribuição, este filme estouraria.

segunda-feira, novembro 01, 2010

Air Doll


Mais uma da 34ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

A abertura deste filme faz lembrar, imediatamente, A Garota Ideal (“Lars And The Real Girl”, 2007, de Craig Gillespie). Temos um diálogo dos mais banais entre o casal sentado à mesa de jantar. A decupagem também é a mais cotidiana: um jogo simples de campo e contracampo. Porém, a mulher é uma boneca inflável. Para além do choque desta revelação, causa um estranhamento de grande efeito estético a maneira prosaica de representar o inusitado – o que só faz com que este pareça ainda mais absurdo.

Esvazie o inesperado do seu caráter de surpresa, mostre o peculiar no seio do típico, contamine o normal de uma gota de anormal; eis a fórmula de muitas formas de poesia. Não obstante, Air Doll (“Kûki Ningyô”, Japão, 2009, dir.: Hirokazu Koreeda) tomará rumos bem distintos de sua “prima” norte-americana. Ao invés de investigar as causas e consequências da vida solitária de um homem que resolve namorar uma boneca sexual, a narrativa do japonês mergulhará a fundo na vida e na “alma” da própria criatura de plástico.

Para tanto, logicamente, Koreeda (bem prestigiado por Depois da Vida – “Wandafuru Raifu”, 1998; e Ninguém Pode Saber – “Dare Mo Shiranai”, 2004) fará o filme se vestir de trajes fantásticos, que serão trabalhados dentro de uma chave alegórica bela e pertinente, porém, um tanto quanto simplista. A beleza se encontra em cenas como aquela na qual a boneca (batizada de Nozomi) estranha a sombra translúcida do seu corpo cheio de ar, ao lado da sombra perfeitamente opaca do homem pelo qual está apaixonada (que não é o seu dono, mas um atendente de video-locadora).

Ou a cena em que ela tenta descobrir em que parte do corpo do seu amado se encontra o “bico de ar” dele – para grande prejuízo do próprio. Quanto às mensagens veiculadas, o filme é uma fábula que não economiza tons emotivos e enfáticos para discutir o “vazio” interior das pessoas nas grandes cidades; o ar-sopro que preenche tanto Nozomi quanto a todos nós, representa o espírito de amor, de humanidade, etc; a solidão inviolável, dentre outros temas.

Nisto, as andanças de Nozomi pela cidade lembram as perambulações dos anjos de Wim Wenders, em Asas do Desejo (“Wings of Desire”, 1987), ambas retratadas com lirismo bem franco. Entretanto, o cineasta alemão é mais denso na apresentação e desenvolvimento dos seus temas, sem contar que o tom do filme, apesar de enfático, não chega nunca a se tornar cansativo. O mesmo já não se pode dizer de Air Doll, cujas intenções acabam sobressaindo-se aos resultados, tendo em vista o conjunto.

As questões existenciais colocadas, apesar de bem interessantes (como dissemos), não logram uma efabulação e discussão que vão muito além de uma forma apenas um pouco mais sofisticada de auto-ajuda – a fábula é contemporânea também, infelizmente, no que diz respeito à sua construção. O diretor carrega demais na emoção, naquela trilha sonora que orienta pela mão, o tempo todo, a reação emocional do espectador. Sem contar que praticamente todos os planos deste filme apresentam um leve travelling lateral de câmera, mesmo quando o assunto do quadro está completamente parado.

Este último – e irritante – recurso me faz acreditar que Koreeda tenta ser, para o cinema lírico, o que Michael Bay tenta ser para o épico. De qualquer maneira, os problemas de Air Doll não estão na raiz, mas nos galhos – digamos assim. Como proposta poética e sócio-filosófica dotada de grande sensibilidade, este filme vale o investimento. De resto, outros cineastas humanistas poderiam ensinar a Koreeda um pouco mais de ambiguidade, de meios-tons e um pouco menos de condescendência (cito o próprio Wenders e aqueles que ele elogiou no final de Asas do Desejo: Truffaut, Tarkovski e Ozu).