terça-feira, março 22, 2011

Tio Boonme, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas


As imagens de Weerasethakul são profundamente engajadas na realidade, carregadas que são de fortes estímulos sensoriais – quase irrepreensíveis. No entanto, quanto mais o cinema do diretor tailandês abraça com volúpia o físico, mais este se torna prenhe do metafísico. Pois o rigor formal na composição dos quadros parece buscar, incondicionalmente, um diálogo e um equilíbrio entre pares de forças opostas: homem e natureza, realidade e fantasia, profano e sagrado, sonho e vigília, presente e passado, moderno e primitivo, história e mito. Na verdade, todas essas coisas são expressões de uma mesma dualidade, na qual se resume o Ser.

Os poetas bem conhecem esse movimento paradoxal de mergulhar no material para encontrar – no âmago mais íntimo da coisa – o inefável. “Só a natureza é divina, e ela não é divina...”, já dizia Alberto Caeiro, o mais (anti-)metafísico heterônimo de Fernando Pessoa. Neste sentido, podemos dizer que os filmes do diretor de Tropical Malady (2004) são os melhores representantes contemporâneos da – nunca suficiente, nem tranquilamente determinada – vertente do “cinema de poesia”. Em tempos de hiperrealidade, falar da virtualidade espiritual das imagens de cinema pode soar como uma heresia às avessas.

Mas Apichatpong Weerasethakul é, talvez, o “último dos moicanos” ao praticar – quase como profissão de fé – uma forma de cinema do sagrado que pouco tem a ver com a maioria das fitas que adornam as prateleiras de locadoras onde se leem: “bíblico / religioso”. Um filme como Tio Boonme, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010) parece realizar a profecia que o católico Henri Agel entreviu nas palavras de André Breton, no Segundo Manifesto do Surrealismo:

“Il s’agit toutefois ici d’un point-limite, d’un point idéal, où (…) les contradictoires se résoudraient dans une harmonie transcendante. C’ést bien le lieu de redire que, comme l’ont laissé entrevoir les surréalistes et aussi Jean Epstein, le cinématographe se rapprocherait de ce point ‘où la vie et la mort, le réel et l’imaginaire, le passé et le futur, le communicable et l’incommunicable, le haut et le bas, cessent d’être perçus contradictoirement’”. Métaphysique du Cinéma

(Trata-se, de qualquer maneira, de um ponto-limite, de um ponto ideal, onde (...) as contradições se resolveriam em uma harmonia transcendente. É bem o caso de dizer que, conforme nos deixaram entrever os surrealistas e Jean Epstein, o cinematógrafo se aproximará do ponto em que ‘a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo cessem de serem percebidos contraditoriamente’.)

Temos de confessar que é uma vocação bem entusiasmante – ambiciosa e maldita na mesma medida – para a sétima arte, ainda mais em nossos tempos pós-“tudo”. Mas há (ainda) cineastas-xamãs que resistem bravamente ao sistemático processo de desencantamento do mundo e da arte, e que são perniciosamente chamados de conservadores, saudosistas, etc. O buraco, graças aos deuses, é mais embaixo. Citemos o maior de todos eles:

“A questão da vanguarda é peculiar ao século XX, à época em que a arte vem progressivamente perdendo sua espiritualidade. (...) A opinião corrente é a de que esta situação reflete a ‘desespiritualização’ da sociedade moderna, um diagnóstico com o qual, a nível de simples constatação da tragédia, concordo plenamente: trata-se mesmo de um reflexo da atual situação. A arte, porém, não deve apenas refletir, mas também transcender; seu papel é fazer com que a visão espiritual influencie a realidade, como fez Dostoievski, o primeiro a expressar de forma inspirada o mal da época.” Andrei Tarkovski, Esculpir O Tempo

O protagonista de Tio Boonme, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas sofre de uma doença terminal. Em seus últimos dias, é visitado por dois espíritos: o da falecida esposa e o do filho, transformado este numa espécie de sasquatch fantasmagórico, de assustadores olhos vermelhos que brilham no escuro. A partir daí, empreender-se-ão jornadas arquetípicas por selvas e cavernas, e Tio Boonme sonhará – muito profeticamente – com um futuro no qual tropas do governo hão de caçar e aprisionar os mitológicos “macacos-fantasmas”.

Mais uma vez, como no já citado Tropical Malady, o universo de Weerasethakul é o da fábula animada por – às vezes ingênuas, às vezes aterrorizantes – prosopopeias. Tio Boonme... dá continuidade à temática das metamorfoses (imagens teriomórficas são uma das representações de forças inconscientes, para ficarmos num registro psicológico). A epígrafe é, também aqui, esclarecedora: “Encarando a selva, as colinas e vales, meu passado vive na forma de um animal, e outros seres se erguem à minha frente.”

A lógica das associações poéticas rege a montagem deste filme, muito mais do que encadeamentos “explicáveis” de enredo. Isso fica patente no final “catatônico”, espécie de devaneio por cujas razões talvez seja até melhor o espectador se abster de buscar; a fruição de certas obras deve ser exercida com “outras antenas”, como diria Guimarães Rosa. De qualquer maneira, a selva é como a representação exterior da paisagem de alma do moribundo Tio Boonme, na qual estão para se resolver em “harmonia transcendente” todos os contrários que são o quinhão da existência terrena.

A natureza como quadro do espírito já havia sido colocada em Tropical Malady (naquele caso, enquanto figuração do desejo amoroso). Também daquele filme, toma-se o personagem Tong (um dos protagonistas), que lá mesmo já cita – em uma cena – que possui um tio chamado Boonme que pode recordar-se de suas vidas passadas. Porém, o mais importante em Tio Boonme..., em sua escolhas estéticas, não é a presença “concreta” do fantasmagórico em si, através de quaisquer efeitos especiais que permitem o aparecimento e desaparecimento do espírito da ex-esposa do protagonista, tanto quanto da maquiagem que entrega aos nossos olhos os terríveis “macacos-fantasmas”.

As figuras explícitas e inequívocas da surrealidade podem ser bastante impressionantes; mas não são elas que dotam o filme (junto do próprio cinema) daquela polivalência entre o físico e o metafísico de que tratamos no primeiro parágrafo deste texto. O metafísico deve permanecer sempre implícito na imagem cinematográfica, como um segredo, ou mistério. O metafísico usa como veículo, exclusivamente, a sugestão. As “antenas” com que o captamos são as da intuição. O metafísico deve provocar, em todos nós, aquela sensação de estranhamento (o das unheimlich freudiano) na qual justamente se resolvem em harmonia transcendente o familiar e o estranho.

Há uma cena exemplar neste filme em que a imagem é dotada dessa especial ambiguidade – acreditamos que seja o afortunado ápice dos resultados estéticos almejados por Weerasethakul. Trata-se de quando Tio Boonme, acompanhado pelo sobrinho, pela atual esposa e pelo espírito da anterior, atravessa o pórtico de uma gigantesca gruta (no fundo da qual ele finalmente virá a falecer). A entrada da caverna é formada por duas imensas rochas laterais, que deixam no meio um vão que lembra uma ferida exposta. Uma dessas rochas, filmada à contraluz (a câmera colocada no lado de dentro da gruta), assume a forma inconfundível de um rosto humano – visto de perfil.

A sabedoria do cineasta foi manter a câmera fixa enquanto cada um dos personagens vai passando cuidadosamente e desaparecendo em primeiro plano, sendo que um deles instintivamente apóia a mão sobre o que seriam os lábios do rosto de pedra. É tempo suficiente para que o espectador perceba a sugestão (se partilhar com o diretor da mesma visão poética). Essa imagem simples é exemplo e prova de um cinema que se abre para além do caráter mais concreto e racional da realidade. É modelo de um verdadeiro cinema metafísico.

Os filmes de Weerasethakul são altamente conceituais (a cena em questão nada mais é do que demonstração dos conteúdos mais fundamentais de Tio Boonme... que viemos discutindo: as profundas sínteses entre a natureza e o ser humano), mas não são filmes “de ideias” (a praga incontrolável do cinema dito “de arte”); são filmes em que a fotogenia das coisas fala antes de mais nada, uma vez que a sétima arte trata de imagens, e imagens em movimento. Sim, as imagens falam. E seu discurso é pleno de significado. Isso basta.

quinta-feira, março 17, 2011

Novidades

O autor de Sombras Elétricas passará agora a escrever também para a Rua (Revista Universitária do Audiovisual), mantida pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR).
Suas contribuições mensais poderão ser encontradas na seção Plano Detalhe, com resenhas de filmes variados.
O primeiro texto, já no ar, versa sobre o recente 127 Horas, de Danny Boyle.

terça-feira, março 15, 2011

Impressões


A gente nunca cansa de se surpreender com a maneira como o cinema parece espelhar a vida real; e esta, por sua vez, devolve-lhe a mesma imagem – como se tudo não passasse de ficção. Muito já se comentou desse jogo de reflexos a respeito das imagens dos ataques no 11 de setembro de 2001, transmitidas ao vivo pelas TVs. De fato, para mim mesmo foi uma experiência curiosa acordar naquela manhã, ligar o aparelho e ver cenas que pareciam saídas de um filme-catástrofe. Para quem se interessa em reviver o fato (ou vivê-lo pela primeira vez), recomendo fortemente o documentário 102 Minutos Que Mudaram A América (“102 Minutes That Changed America”), dirigido por Nicole Rittenmeyer e Seth Skundrick, produzido em 2008 para o canal de TV paga “History Channel”. Em tempo real, o filme acompanha os acontecimentos que ocorreram entre o choque do primeiro avião e o desabamento da segunda torre, tomando como material – exclusivamente – gravações de câmeras caseiras e de equipes de TV, sem qualquer narração, comentário, etc. Lembra muito a ficção Cloverfield (2008, Matt Reeves).

Enfim, agora estamos testemunhando – mesmo participando – de circunstâncias bastante parecidas, como se fôssemos cinéfilos da própria realidade. Primeiro parêntese: o voyeurismo dos “reality shows”, de telejornais sensacionalistas e de uma infinidade de vídeos amadores que pipocam todos os dias na Internet atesta esse fato para além de quaisquer discussões ético-morais, as quais, no entanto, não deixam de ser – e precisar ser – colocadas. Segundo parêntese: interessante é pensar o que o Dziga Vertov de O Homem Com A Câmera (1929) e o neorrealista Cesare Zavattini, que idealizava um filme de 90 minutos que acompanhasse a vida de um homem na qual nada de substancial acontecesse, achariam da civilização das imagens em movimento no século XXI – principalmente após a revolução dos gadgets que fazem com que todos e qualquer um seja o “homem (ou mulher) com a câmera”, e a rede mundial de computadores, com seus “youtubes” e redes sociais.

Voltando, mais uma vez. Nestes últimos dias vimos acompanhando os assombrosos terremotos e tsunamis que assolaram o Japão. Para além de notícias, análises, comentários, reportagens, etc, qualquer pesquisa rápida pela Internet encontrará uma efusão de vídeos amadores de testemunhas e (ou) vítimas da catástrofe, sem qualquer edição, sem qualquer narração, sem qualquer comentário que não sejam as reações e interjeições que expressam e transportam até nós a essência mais pura da experiência humana no momento em ela toma de assalto nossas vidas, nosso ser. E principalmente: sem quaisquer efeitos especiais. São imagens estonteantes, imagens épicas que atiçam perigosamente nossa volúpia, nosso fetiche pelo Sublime (no sentido kantiano do termo): sensação parecida que temos ao nos colocar à beira de um penhasco. Algumas dessas imagens despertam também nosso sentido estético: a fotografia de uma vaca (viva) que foi parar no alto de uma árvore não deixa de nos fazer lembrar uma pintura surrealista ou instalação de arte contemporânea.

De toda essa plástica, o que mais impressiona é ver o volume de aparência infinita das águas do oceano crescer irreprimivelmente e invadir cidades, apagando ruas e arrastando carros, levando casas inteiras para o meio do mar e embarcações (grandes até) para o meio da terra. Sentimos nessas imagens não apenas a força das águas, mas quase a fúria dos deuses – pagãos ou não: Netuno obcecado por destruir a frota de Ulisses; Javé mandando o dilúvio do qual se salvará tão somente a Arca de Noé. Tais imagens – pouco importa se fictícias ou “reais” – ativam arquétipos muito enterrados dentro de nós e suas formas míticas. Nossa civilização da ciência pouco dará voz a essas sugestões; infelizmente, não nascerão lendas e poemas que contribuam até mesmo para processarmos o grande efeito que tais tragédias provocam em nosso íntimo. Tanto porque sabemos – ou achamos que sabemos – as causas “materiais” e “científicas” dessas revoltas do planeta, sejam estas contra a nossa presença ou não. O desencanto reina.

Enfim, não existem mais homeros ou antigos testamentos. Mas há o cinema. Eis a sétima arte, descendente anônima (e escravizada) de uma antiquíssima mas esquecida linhagem de reis e rainhas. Os filmes, em nosso tempo, mal ocupam o lugar e a função das narrativas fundadoras, dos mitos exemplares – e mal se pode exigir que o façam pura e simplesmente. No entanto, ainda resta algo. “De tudo fica um pouco”, já dizia o poeta Drummond. Ao assistir ontem a um vídeo caseiro na Internet, que mostrava o momento exato em que o mar invadia e destruía uma cidade na costa do Japão, não pude deixar de me lembrar – involuntariamente – da sequência de abertura do filme mais recente de Clint Eastwood: Além da Vida (“Hereafter”, 2010). São imagens muito, muito parecidas. E qual foi a minha surpresa (no fundo, nenhuma) ao ler num portal de notícias, poucos minutos depois, que o governo japonês havia retirado de cartaz o mesmo filme? O pensamento “civilizado” dirá: mas é lógico! Não obstante, a parcela “selvagem” em todos nós reconfortar-se-á com tais sincronicidades e buscará processar os seus significados mais profundos. Talvez numa forma artística.

sábado, março 05, 2011

Trabalho Interno


O letreiro de abertura, explicando em poucas palavras e sobre um fundo negro a crise iniciada 2008 e acrescentando, em parágrafo separado: “This is how things really happened” (eis como as coisas realmente aconteceram), já anuncia e deixa registrado, com a clareza e simplicidade eloquentes de tais palavras, o compromisso do documentário de Charles Ferguson em descortinar a verdade.

Essa introdução, como num sermão barroco, há de disparar um processo de exposição e argumentação que desembocará em uma não menos eloquente peroração, exortando à tomada de atitude política sem a qual se estará condenado a repetir os erros do passado (dolorosamente recente) – e tal conclusão será declamada pela voz em off de Matt Damon e ilustrada por uma bela panorâmica aérea da Estátua da Liberdade.

De maneira simples e bastante didática, imagem e som, vozes e feições dialogam neste filme de intenções compungidamente éticas, ora se complementando, ora se contrapondo. Em tom e postura, Trabalho Interno (“Inside Job”, EUA, 2010) diferencia-se bastante do documentário de Michael Moore sobre o mesmo tema: Capitalismo, Uma História de Amor (“Capitalism: A Love Story”, 2009).

Ferguson é mais sério e mais adulto, possui mais sutileza e classe, sem abandonar de todo algumas ironias bastante corrosivas. No geral, funciona bem nos moldes de uma tese, fazendo-se de uma dissertação audiovisual. A argumentação é bem amarrada no sentido de acusar nominalmente os indivíduos e instituições responsáveis pela catástrofe e apontar o como nenhum deles não só deixou de sofrer qualquer punição legal, como ainda ocupam posições de liderança tanto no setor público quanto no privado.

Contudo, o maior valor deste filme, seja pensado como documento histórico audiovisual, seja como construção dramático-estética, reside nas imagens de entrevistas e depoimentos em que os acusados ou cúmplices das falcatruas gaguejam, silenciam, engolem em seco, mudam de expressão ou de olhar por um segundo que seja, recostam-se na cadeira ou pulam dela: sinais evidentes de que possuem culpa em cartório – por mais que neguem ou desconversem.

A mentira e a insegurança se flagram em pequenos detalhes, em pequenos gestos. Nem o ator mais “oscarizado” do mundo poderia representar com tanta espontaneidade e significado o papel que os autores da crise assumem e renegam a um só tempo neste filme agudo. Se o que inspira os documentários é um princípio ético, nem por isso Trabalho Interno deixa de se aproveitar de um efeito estético – o qual só contribuirá para a melhor persuasão, o que nos faz voltar mais uma vez à dissertação seiscentista.

É na reação imprevista e descontrolada dos personagens que as verdades mais se desvelam. Mesmo que, em alguns momentos, essas reações sejam provocadas pelo entrevistador através de perguntas que miram as obscenas incoerências do discurso deles. Outro elemento de grande força cinematográfica está nas telas pretas que súbita e violentamente cobrem os nossos olhos apenas para que se escreva que este ou aquele “personagem” (não por acaso os mais centrais da crise) não quis dar entrevista.

Isso após a voz de Matt Damon narrar e descrever com minúcias os seus crimes. O efeito retórico de tal construção audiovisual, principalmente da montagem nela envolvida, é digno de um filme que, conforme dissemos, inicia como um documento e termina como um manifesto. “Inside Job” ganhou o Oscar de melhor documentário semana passada. Existe alguém que ainda acredita nesse papo do “fim” da História?

sexta-feira, março 04, 2011

Tropical Malady


A selva densa da Tailândia é um dos últimos lugares deste mundo, de resto irremediavelmente devastado, onde ainda se permite respirar a atmosfera encantatória do mito. Demos graças aos deuses primitivos que ainda existam pontos na superfície deste planeta obscuros o suficiente que sirvam de repositório e preservação a velhos poderes ctônicos, a antigas forças teriomórficas com seu canto-armadilha de sugestões jamais plenamente categorizáveis.

A lógica colonialista do coração das trevas não tem, absolutamente, nada o que fazer em paragens inatingivelmente distantes não simplesmente da “civilização” (palavra devassada de tanta malícia), mas de toda a razão e de toda a consciência que o bicho-homem vem ostentando com grande obscenidade para si mesmo na tara neurótica da “evolução”. Isso porque a selva densa da Tailândia também deposita, simbolicamente, a natureza mais libidinosa do inconsciente – e suas muitas representações arquetípicas.

Desse modo, não encontraremos em Tropical Malady (Tailândia / França / Alemanha / Itália, 2004, dir.: Apichatpong Weerasethakul) aqueles “exploradores” parvos que assolam a grade de canais de TV como o Discovery Channel; tampouco ouviremos a voz over que “explica” a imagem em documentários não menos eurocêntricos. Antes de mais nada, o filme de Weerasethakul se faz de ficção – mas de uma ficção que pouco paga tributo aos modos de narrar ocidentais, modernos.

A história do amor entre um soldado e um jovem camponês, na qual se insere o espírito de um antigo shaman que assume a forma de um tigre, é contada no tom e no registro da fábula, inspirada em antigas lendas da região. O filme se divide em duas partes bastante distintas. Na primeira, vemos o processo de aproximação entre Keng (o soldado) e Tong (o camponês), tendo como pano de fundo uma grande cidade. O cineasta a filma com um assombro equivalente ao que dedicará depois à selva.

Ele se deixa encantar e hipnotizar pela miríade de cores e luzes de um shopping center, de uma praça pública, de bares e restaurantes, mas parece não compreender absolutamente nada daquilo. A urbe parece estúpida, sem sentido. O ritmo do filme é cadenciado e não se prende exclusivamente à gradação do relacionamento do casal protagonista, mas em diferentes momentos vividos por eles, em lugares diferentes. Filme-quadros. A narrativa ganha em lirismo.

Na segunda parte, anunciada como se fosse outra história, o jovem Tong é aparentemente raptado pelo espírito-tigre do shaman, e Keng – como membro da patrulha florestal – parte à sua procura, adentrando uma forma de coração das trevas jamais sonhada por Conrad (ou Coppola – talvez, em certa medida, por Herzog ou Mallick, mestres de um cinema sensorial e táctil). A narrativa, então, além da já bem estabelecida dose de poesia lírica, adquire as tintas de um profundo delírio.

No devaneio surreal que constituirá o total desta segunda metade da fita, confundir-se-ão além de qualquer entendimento o desejo, o medo, o pensamento, as sensações corporais. Keng, enquanto militar da patrulha florestal, representa a lógica que sobrepuja e controla a natureza. No entanto, sozinho no meio da selva (também a de sua própria natureza inconsciente / animal), ele pouco terá o que fazer e mergulhará de vez na alucinação das emoções e instintos mais primevos.

Neste ponto, lembramo-nos da epígrafe do filme: “Todos nós somos feras por natureza. Nosso dever, enquanto seres humanos, é tornarmo-nos como adestradores, mantendo os animais sob vigilância. E, até mesmo, ensinarmo-nos a realizar tarefas além de nossa bestialidade”, atribuída a um Tom Nakajima. O espírito do shaman mostrará a Keng a sua bestialidade, como em espelho, assumindo a forma do tigre, de um vaga-lume, de um macaco falante, ou a forma do corpo (nu) do seu jovem amado Tong.

É um tema comum a diversas mitologias – assim como a narrativas literárias e filmes – a jornada obscura que, em princípio, deverá ser de encontro ao outro e ao desconhecido; mas que acaba conduzindo o sujeito a nada mais do que a si mesmo, ao mais fundo (e aterrorizante) do seu ser. Só para ficar em dois exemplos manjados, posto que da ficção científica: 2001 – Uma Odisseia no Espaço (1968, Stanley Kubrick) e Solaris (1972, Andrei Tarkovski).

O plano em que se coloca o título do filme é, a esse propósito, provocativo e revelador: vemos Keng, sentado com conforto e olhando descaradamente para a câmera durante um tempo longo, inusitado e constrangedor, com um sorriso ao mesmo tempo malicioso e irônico, enquanto a seu lado é inserido o nome do filme. Weerasethakul já vai anunciando que o espectador embarcará como cúmplice na “viagem” do protagonista – a sua descoberta e o seu terror também serão os nossos.

E o próprio título não é, por si mesmo, totalmente desprovido de antífrases: o “mal dos trópicos” em questão está longe de ser aquelas doenças (malária, por exemplo) que fazem o horror das mentalidades colonialistas; tampouco se faz daquela libido de cunho exclusivamente sexual e fortemente estimulada pelo calor das zonas próximas à linha do Equador, em obediência às mentalidades ridiculamente deterministas da época do neocolonialismo (século XIX), ou à não menos determinista psicanálise freudiana.

O universo arquetípico, mitológico e poético que dá fôlego à realização rigorosamente formal e “conceitual” de Weerasethakul vai muito além da história única que se conta dos povos do “terceiro mundo”, dos homossexuais, etc. O discurso de Weerasethakul, além de ser diferenciado, é um discurso sóbrio (o que só contribui para a intensidade dos temas), cantarolado quase em murmúrio num filme prenhe de silêncios (a presença de letreiros entre as cenas não deixa de lembrar o velho cinema mudo).

Tropical Malady ganhou o prêmio do juri no Festival de Cannes em 2004 (tendo sido indicado também à Palma de Ouro) e o prêmio da crítica na Mostra de SP – no mesmo ano. Está em terceiro lugar na lista dos melhores filmes da década de 2000, elaborada pelos Cahiers du Cinéma. Apichatpong Weerasethakul está atualmente nos cinemas brasileiros com Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), ganhador da Palma de Ouro ano passado. Mas esse fica para depois do carnaval.