domingo, agosto 29, 2010

Os blogs estão matando a crítica de cinema?

protagonista da série animada O Crítico (1994)
A edição de julho / agosto da Film Comment dedica-se – dentre outras pautas bastante saborosas – a uma polêmica bem curiosa que tem alimentado a fogueira das retóricas que estalam no meio da crítica cinematográfica dos EUA (aqui na terra onde cantam os sabiás, não vi ainda nada do gênero; se alguém tiver informações a respeito, por favor, comente). Trata-se do embate entre críticos “online” (principalmente bloggers) e críticos das velhas mídias impressas (jornais e revistas). A briga é pela sobrevivência, legitimação e prestígio da já suficientemente inglória e atualmente tão combalida tarefa de resenhar filmes, uma vez que os últimos parecem não querer admitir o trabalho “amador” dos primeiros.

Como pontapé inicial para nossas discussões aqui, reproduzo e comento o editorial. Na sequência, virá a primeira parte da matéria publicada (a segunda aparecerá na edição de setembro / outubro). Acredito piamente que esses textos ajudarão – e muito – os blogueiros tupiniquins a refletirem mais apuradamente a respeito de sua própria e subterrânea prática, tomando quem sabe outros e maiores fôlegos de encorajamento e inspiração. Quanto aos críticos “profissionais”, conheço pouco de suas vidas para tecer quaisquer sugestões, mas a leitura da parte deles será também, com certeza, útil e bem-vinda. Vamos lá.

Carta do Editor

A prática da crítica cinematográfica aparentemente venceu, no final dos anos 60, a batalha para ser levada a sério (tal vitória foi reforçada, em certo grau, pela ascensão dos estudos fílmicos no universo acadêmico, embora até hoje muitos editores de artes e cultura se contentem em selecionar pessoas desqualificadas e sem qualquer perícia discernível em cinema para serem comentadoras de filmes). Mas, desde o final dos anos 70, os críticos de cinema têm se visto cada vez mais como uma espécie em perigo de extinção. Isto se deveu, inicialmente, à ascensão dos “blockbusters” e à crescente preferência de Hollywood pelo público adolescente nos anos 80 – o que fez com que a abordagem crítica de filmes (“criticism” – n. do t.) parecesse algo impertinente e inútil. Colocando em outras palavras, quanto mais a cultura cinematográfica começava a se polarizar, mais difícil ficava para alguns críticos encontrar uma quantidade suficiente de filmes que valessem a pena discutir.

Uma nova “ameaça” também se levantou: comentadores de filmes para a TV! Há vinte anos atrás, em nossas páginas, o crítico da Time e antigo editor da Film Comment Richard Corliss apressadamente os identificou como Inimigos Públicos Número Um, apontando o dedo acusatório para o seu amigo Roger Ebert (quem se importa que a própria Time, naquela época, fosse basicamente apenas TV em celulose?). Alguns anos antes, em 1987, o advento da revista Premiere – com a sua estratégia purificadora de extirpar a incômoda parte “crítica” da crítica de cinema – foi visto por muitos como o clímax da decadência da cultura cinematográfica: se você estivesse escrevendo sobre filmes que você não viu, você estaria basicamente fazendo uma mistura de jornalismo e publicidade. Quando estourou a notícia de que a editora da Premiere, Susan Lyne, tinha trocado o seu posto por um emprego na Disney, no começo dos anos 90, um crítico soltou a farpa: “Bem, pelo menos agora é oficial.” Não obstante, essa história convenientemente negligencia o fato de que a Premiere manteve os serviços de J. Hoberman, David Denby e, por muitos anos, o de Glenn Kenny, para escreverem sobre filmes que eles realmente tinham visto.

Velhos tempos aqueles! Já no século XXI, é tudo culpa da Internet. Em um editorial de 2006, eu escrevi: “Tenho uma tendência a pensar que os blogs são mais importantes para as pessoas que os escrevem, do que para as pessoas que gostam de ler; eles são prolixos em opiniões, mas limitados em ideias e insights.” Não sei se tal observação poderia ser defendida então, mas com certeza, não agora. A crítica “online”, com todos os seus atalhos e nichos, é tão “mainstream” quanto a Film Comment. Nos festivais de cinema de qualquer porte, desde Cannes até os mais obscuros, a imprensa “online” já não é mais tratada como cidadãos de segunda classe. A questão da sustentabilidade econômica dos blogs é agora tão aplicável quanto a das publicações impressas de todos os formatos e tamanhos – é por isso que, nos últimos cinco anos, os críticos da mídia impressa vêm caindo como moscas, alvos fáceis de chefes de redação que procuram fazer cortes de pessoal. Vivemos verdadeiramente em um período de transição.

O modelo tradicional de crítica de filmes que existia desde os anos 70 – e que ainda é praticado por esta revista – está sendo sistematicamente erodido, tanto de dentro quanto por fora. Forças econômicas, culturais e tecnológicas estão remodelando inexoravelmente a paisagem, bem debaixo dos nossos olhos. Mas, ao invés de chegar a algum acordo com tal situação, muitos dos críticos da velha guarda “impressa” ainda estão travando uma guerra retórica contra os “virtuais” – exceto aqueles que já estabeleceram uma presença “online”, como Todd McCarthy, Jonathan Rosenbaum e Dave Kehr, sem mencionar Roger Ebert.

Assim sendo, nesta edição nós publicamos a parte um de uma valiosa e persuasiva tentativa de pôr as coisas em perspectiva e forçar um cessar-fogo para esta contenda. O texto é assinado por Paul Brunick, colaborador de “vinte e poucos anos” e ex-estagiário da FC. O seu artigo começa na página 36 e continua em nossa próxima edição.

Gavin Smith


Uma amiga minha, não faz muito tempo, disse que estava louca para ver um filme que tinha acabado de estrear (não lembro mais qual era), mas tinha ficado “meio assim”, depois de ler um crítico da Folha de S. Paulo que achincalhou a película. Imediatamente e de modo bastante professoral, eu coloquei as coisas para ela “em perspectiva” – como diz Gavin Smith: tentei explicar em que medida, sempre relativa, devemos levar em conta a crítica de cinema produzida nos grandes órgãos de imprensa; citei exemplos, tanto de erros crassos, quanto de insights geniais, praticados pelos nomes mais famosos do mainstream.

E concluí com uma recomendação que acredito estar no olho do furacão da polêmica toda: se você quer, hoje em dia, ler uma crítica de cinema que não seja apenas vagamente “independente”, mas uma crítica feita com o ardor e o envolvimento gratuitos da inteligência e da sensibilidade de gente cinéfila que não pode (ou não quer) escrever para a Folha, para o Globo ou para a Veja, a Internet é a sua mina de ouro. A ausência de compromisso com qualquer linha editorial, mercado ou público-alvo, aliada à busca simples de visibilidade por quem quer simplesmente se expressar, e expressar o seu amor por uma forma de arte – gratuitamente, que isso fique bem claro – é o maior facilitador para que talentos se desenrolem e frutifiquem em ótimos textos.

Veremos no artigo da FC que dois grandes críticos norte-americanos, Andrew Sarris e Pauline Kael, começaram em formas muito equivalentes de underground. Cabe fazer a ressalva: o subterrâneo não é garantia de nada, a habilitação de competências ocorre por outros meios. Nenhum texto crítico ou filme serão necessariamente bons por serem “indies”, pois não há nada que substitua o estudo, a leitura e a assistência de filmes (perdão pelo arcaísmo), principalmente para o autodidata. Enfim, em outras palavras, o que falei para a minha amiga foi: há muita coisa boba na Internet, mas o que há de bom costuma ser melhor do que o que se vê de interessante no papel.

Então, ela me pediu indicações de sites e blogs que eu achasse legais. Fiz uma lista e passei para ela. Em março de 2008, publiquei aqui no Sombras Elétricas uma pequena relação com o que havia de mais interessante em crítica cinematográfica no ciberespaço; logo mais, pretendo fazer um novo e mais extenso apanhado, desta vez incluindo mais blogs. Uma das mais típicas características do meio virtual (boa ou má) é a sua volatilidade: blogs e sites aparecem e desaparecem a qualquer momento e sem darem maiores notícias. Por isso, é necessário – posto que trabalhoso – manter sempre verificada e atualizada a sua lista de links e de favoritos.

Quanto a revistas impressas em Terra de Santa Cruz especificamente sobre cinema, repito a grande falta que faz alguma que seja voltada majoritariamente para a recepção de filmes (o que exclui periódicos dirigidos à gente que produz, do tipo de Zoom Magazine, ou mesmo a Revista de Cinema) e que não arranque, nas palavras do editor da FC, o termo “crítica” da expressão “crítica de cinema”, como o faria a Premiere (e, com certeza, o seu pastiche tupiniquim, a Set). Além de tudo, seria bom que esta hipotética e messiânica revista tivesse boa distribuição, mesmo em âmbito nacional (o que nos leva a deixar de lado a interessante Paisá, que em São Paulo só pode ser encontrada em algumas bancas da Avenida Paulista – justamente as mesmas em que se costumam achar a Film Comment e a Cahiers du Cinèma).

Voltando mais uma vez ao espaço da “world wide web”, vejamos o que escreve Gavin Smith: “Tenho uma tendência a pensar que os blogs são mais importantes para as pessoas que os escrevem, do que para as pessoas que gostam de ler; eles são prolixos em opiniões, mas limitados em ideias e insights.” Certamente, os blogs são muito importantes para quem os escreve, pois muitas vezes são os únicos veículos em que aspirantes a críticos podem se exprimir publicamente (viva a democracia punk do “faça-você-mesmo” das revoluções tecnológicas). E creio que devemos concordar em parte com o diagnóstico sugerido pela revista, mas buscando talvez outras razões:

já vi muitos blogs de cinema (principalmente de críticos mais jovens) que parecem, voluntária ou inconscientemente, querer mimetizar o modelo de crítica de filme usado pelos grandes jornais de hoje em dia (ou o modelo de artigo das revistas de “gossip”), incluindo indiscriminadamente todos os seus vícios (seja na abordagem dos filmes, seja na construção textual). Sinto-me invadido (mais uma vez) pela vontade professoral de indicar a esses jovens iniciantes a leitura dos artigos do clássico mestre Paulo Emílio no antigo Suplemento Literário do Estado de S. Paulo (anos 50 e 60, reunidos em livro e relançados recentemente pela Cosac Naify), dentre outros tantos críticos dos tempos da cinefilia pré-Cinemark.

Mas, por outro lado, cada um tem a sua própria caminhada de descobertas e aprimoramentos artísticos e intelectuais; além do mais, os modelos da antiga crítica estão sendo sistematicamente “erodidos” pela nova economia e cultura da “web”, como bem afirmou Smith, não? Portanto, quem sou eu para dizer o que os outros devem ler ou escrever? O fato é que existem vários caminhos – graças a Deus – que levam das meras “opiniões” até as “ideias” e “insights”; mas são caminhos que precisam ser trilhados de qualquer jeito. De qualquer maneira, incomoda-me profundamente, por exemplo, o apego exagerado que muitas vezes se tem (na tela ou no papel) ao infame sistema das “estrelinhas”, para se fazer a “cotação” de um filme (como se este fosse uma ação da bolsa de valores...)

Como ser que escreve, procuro expressar-me e persuadir o leitor através de palavras. É com estas, e nada mais do que estas, que qualquer ser que lê deverá procurar entender se gostei ou não de um filme e por que razões (uma vez, faz algum tempo já, um leitor do Sombras Elétricas escreveu um comentário um tanto quanto impaciente, perguntando-me se, afinal de contas, eu tinha gostado ou não do filme que analisara; prefiro pensar, verdadeiramente, que falhei então no meu intento de crítico e de escritor). Enfim, não uso estrelinhas; dificilmente usaria estrelinhas (só não digo nunca, porque não se pode cuspir para cima, não é?). Mas entendo quem goste de usá-las, ou apreciá-las. Contanto que se faça moderadamente: as estrelas, ou notas, ou “emoticons” variados devem servir à argumentação, e não vice-versa (tampouco, é lógico, abolir-se – quase – absolutamente a argumentação em favor da “nota”).

Acredito que todo autor de blog deve procurar equilibrar e fazer dialogar o entusiasmo da sua expressão com o prazer e a inteligibilidade do leitor, da maneira como melhor lhe aprouver e num grau bastante fundamental de escrita. Sei que isso é difícil muitas vezes (e aqui vai um merecido mea culpa), mas se não houver tal preocupação, cairemos dentro do diagnóstico negativo da FC (aquele produzido pelo seu editor em 2006, que isso seja bem lembrado, o qual duvida, ele próprio, da pertinência de sua afirmação) e não contribuiremos em nada para a próxima era de ouro da crítica de cinema, que, segundo o articulista Paul Brunick, poderá nascer através do ciberespaço. Mãos à obra, bloggers! (Próxima postagem: a primeira parte do artigo em questão).

segunda-feira, agosto 23, 2010

A Origem


Muito bem. Vamos direto ao que interessa. Gostar ou não de A Origem (EUA, 2010, Christopher Nolan) dependerá muito do que se espera do filme. Se você entrar na sala de cinema esperando a fantasia vanguardista de um Terry Gilliam ou do velho Jean Cocteau, a decepção será grande. Agora, se o seu coração bate mais depressa com os heist movies – subgênero de fitas que exploram aquela trama bastante intrincada envolvendo um grupo de vigaristas profissionais que tentam cumprir uma “missão” (geralmente um roubo espetacular, cujo exemplo mais óbvio é Onze Homens E Um Segredo – “Ocean’s Eleven”, refilmagem de 2001 por Steven Soderbergh) – ou com ficções científicas do tipo de Matrix (1999, irmãos Wachowski, a qual não deixa de ser também um heist movie), então sinta-se em casa e curta a viagem.

“Inception” é um ótimo thriller, especialidade de Nolan desde Amnésia (“Memento”, 2000), e tão imaginativo quanto cabe ao gênero. Não é um filme sobre “sonhos”, que isso fique bem claro. Toda a mise en scène (incluindo os impressionantes efeitos especiais) pensada para reproduzir o universo onírico estrutura-se em função exclusivamente do direcionamento que se dá à ação, dentro da narrativa do “heist” (roubo, golpe, etc). Quando muito, poderíamos dizer que se trata antes de mais um filme sobre a tão midiática “hiperrrealidade”, do que sobre o velho inconsciente desbravado pelos sisudos psicanalistas. Nolan não se deu mais do que o mínimo do trabalho necessário para taxidermizar os personagens de alguma emoção e alguma motivação com as quais o espectador pudesse se identificar.

Com isso, não se deixe levar muito pela supostamente mitológica “Ariadne” (Ellen Paige) que guia o personagem de Leonardo diCaprio (Cobb) pelos labirintos do “subconsciente” (sic). O filme afunda-se em um mínimo de profundidade na justa tentativa de subir além da divisão na qual se bate um Michael Bay; mas não deixa de ser, à sua própria maneira, um “toy movie”, como os dois Transformers (2007 e 2009) deste. Em entrevista à Film Comment (jul/ago 2010), Christopher Nolan admite que a geografia dos jogos de video-game “online” tem muito a ver com a maneira como pensou no universo onírico para o filme, no que aquela possibilita uma interação humana “genuína” e “compartilhada” dentro de um universo virtual. E admite também o como quis que o roteiro não tivesse apenas “jogabilidade”, procurando aprofundar mais os personagens.

Mas o resultado final pende mais para o lúdico mesmo. Principalmente no que a segunda metade do filme está quase inteiramente estruturada numa magnífica montagem paralela, que intercala, sob doses cavalares de tensão e suspense, 3 ações simultâneas (posteriormente, 4) que se passam e se remetem mutuamente não só em espaços diferentes, mas em planos de “realidade” distintos (a rocambolesca ideia do sonho dentro do sonho); no final, haverá logicamente uma convergência, e o mais impressionante de tudo é que todos os acontecimentos são vividos pelos mesmos personagens. É como se Griffith tivesse um surto esquizofrênico. Junte-se isso à trilha sonora embriagante e ao ritmo alucinante da fita como um todo, e teremos uma sensação da grande brincadeira técnica que é o que dá verdadeiramente graça para este filme.

sexta-feira, agosto 20, 2010

Reflexões de Um Liquidificador


Reflexões de Um Liquidificador é um daqueles filmes irreverentes que puxam todos os coelhos de dentro de uma premissa... curiosa, para dizer o mínimo. Produções assim, obviamente, têm muito a degustar de um “marketing” bem preparado, e a fita de André Klotzel (de A Marvada Carne – 1990; e o sofrível Memórias Póstumas – 2001) aproveita-se bem disso: o trailer é de dar água na boca do espectador. O problema (problema mesmo?) é: a partir de uma sinopse tão imaginativa, a gente acaba construindo, de uma maneira ou de outra, um (outro?) filme na nossa cabeça, antes de assisti-lo de fato e mesmo durante a exibição, conforme a coisa vai se desenrolando. Não dá para dirimir a curiosidade de adivinhar a todo instante qual será o encaminhamento que o diretor / roteirista dará para tal história e seus personagens. E nisso, o perigo de decepcionar-se espreita a cada mudança de plano.

Depois de certo momento de Reflexões..., vem perigosamente à lembrança do espectador o elegante fiasco de Durval Discos (2002, de Anna Muylaert). Mas não nos incomodemos. O filme de Klotzel é (bem) melhor, no sentido em que não comete os mesmos erros – bastante elementares até – de construção narrativa. E como “erros”, não estamos nos referindo à mudança repentina de gênero e tom dentro do filme, mas à mal preparação de terreno para tanto e ao mal desenlace dos resultados, o que faz com que a narrativa perca coesão e pareça – no mal sentido – dois filmes (mal resolvidos) dentro de um. Reflexões de Um Liquidificador, por sua vez, desde o começo, já nos faz suspeitar a que veio, de modo que a “revelação” que ele nos dá lá pelo meio do filme parecerá satisfatoriamente coerente e conseqüente.

Aliás, qualquer espectador um pouco mais viajado pelas sendas da psique humana já desconfiará – ou esperará – que essa história de um velho liquidificador que se comunica com uma velha senhora, aparentemente abandonada pelo marido, não passe de um “disfarce” para o enlouquecimento desta, que transferirá para o eletrodoméstico aspectos um tanto quanto... incômodos da sua personalidade. E isso não poderá terminar bem. A solução encontrada pelo roteiro de José Antônio de Souza pode parecer banal(izante): o espectador poderia esperar outra; mas, definitivamente, não é de todo descabida. É isso o que, talvez, possa ser dito de melhor a respeito do filme. Para não taxá-lo de frívolo, digamos que é uma “crônica”; para não desqualificá-lo como imoral, entendamo-lo como uma piada de “humor negro”.

De resto, a realização é inspirada e correta (profissional como um bom filme de gênero). Reflexões de Um Liquidificador acaba grudando na cabeça do espectador que sai do cinema como uma despretensiosa e suculenta canção pop (o sonho não-realizado do supra-citado Durval Discos). Nós nos pegamos assoviando a – muito irônica – trilha sonora original. Os personagens são todos construídos sob a fôrma do tipo: principalmente a protagonista, Dna. Elvira (Ana Lúcia Torre em ótima atuação), e o investigador de polícia Fuinha (Aramis Trindade). E o humor que se extrai deles é muito bem aproveitado pela história, que brinca com as convenções da narrativa de crime e do drama psicológico.

O filme não se coloca em nenhum momento dentro da infeliz chave do ultrarrealismo de pretensões psico-sociais que tanto assola o cinema brasileiro. É claro que há as tais “reflexões” do liquidificador (cuja voz é a de Selton Mello, charmoso como sempre), mas toda a encenação chama a atenção para o absurdo do caricato: desde o rosto de “Fuinha” até a decoração exageradamente “kitsch” (hoje se diria “vintage”) do pacato e acolhedor ambiente de “casa da vovó” em que moram Dna. Elvira e o marido (Onofre, interpretado por Germano Haiut) – tanto é que, no começo do filme, ficamos até em dúvida se a história não se passa mesmo nos anos 70. E é tudo, logicamente, muito irônico. Com isso, podemos dizer que Reflexões de Um Liquidificador é, para muitos efeitos, um filme de fantasia – que vai muito além, naturalmente, do elemento fantástico que está em sua base: o liquidificador que fala.

André Klotzel realizou em “live action” como que um daqueles desenhos animados para adultos: sarcásticos até a medula, amorais (ou mesmo imorais), muito macabros e incondicionalmente niilistas (por exemplo: Uma Família da Pesada – “Family Guy”, de Seth McFarlane). Os pensamentos do tal liquidificador aproximam-no muito mais da obra de Machado de Assis do que a adaptação “oficial” que o diretor perpetrou há quase dez anos (algo se aprende sempre). Há uma cena em que o antirrealismo cartunesco se apresenta quase como uma profissão de fé – é a chave para o coração do filme: quando Fuinha insiste que o suco de beterraba que encontra no copo do liquidificador se parece com sangue e exige que Dna. Elvira tome um gole (desconfiado de que ela deu um “sumiço” no marido).

Não há como não lembrarmos a famosa definição de Godard a respeito do cinema: “não é sangue, é vermelho”. Aliás, o subtexto de crime passional deste filme, dentro de sua proposta estético-narrativa, lembra algo como... um encontro de Alfred Hitchcock com José Mojica Marins (!). Enfim, tomando o anúncio do filme que saiu hoje no Guia da Folha, vemos aquelas frases de aprovação dos críticos, e todas elas destacam o caráter “inteligente” de um filme que “faz pensar”. Esse é o problema em nosso país: parece que, para que um filme seja legitimado criticamente, ele deve ter (pelo menos alguns) ares de intelectualidade. Não acredito que isso seja um argumento válido, tanto absolutamente (é lógico), quanto em parte. As tais reflexões não são o melhor no filme do liquidificador (se tivessem de sê-lo, então teríamos de dizer que o diretor falhou em seu intento). Não leve tão a sério e curta a brincadeira que o cineasta propõe (propõe mesmo? – ou este seria apenas o filme que EU construí?).

terça-feira, agosto 03, 2010

O Trem


Se entendermos como barbárie a degradação sistemática daquela parcela de nossas almas que nos torna sensíveis ao que esta humanidade já produziu de melhor e de pior, então ficará difícil pensar num antídoto maior para um tão medonho veneno do que a Arte. A oposição que se deve fazer não é sequer em relação àquelas mentalidades que desinfetam a arte como “perfumaria”. E sim, em relação aos connaisseurs esnobes que cercam inescrupulosamente os mais tenros frutos do Belo, empossando-se deles como seus latifúndios pessoais.

E com que suposto direito eles fazem isso? Seus advogados perversos são coisas como: erudição, educação acadêmica, talento, inteligência, dentre outros medalhões que lhes compram a autoridade para dizerem-se homens sensíveis e verdadeiros amantes das belas artes, com o prejuízo de todos os outros que ficam do lado de fora de suas torres obscenas de marfim. A bem da verdade, não sabemos quem é pior: se aqueles que desprezam e não desperdiçam qualquer oportunidade de reprimir a produção artística ou destruir em escala industrial os seus rebentos, ou se aqueles outros que se apossam dos bens artísticos, acumulando-os para a ostentação da sua própria soberba inapropriada.

O que você prefere, leitor artista? Que as suas preciosas obras sejam queimadas em fogueira de praça pública por altivos fanáticos, ou saqueadas e escondidas ostensivamente nas indiferentes paredes de salões privados por não menos altivos “apreciadores”? Esta é apenas uma parcela das coisas a que somos levados a pensar graças a esta obra-prima de John Frankenheimer, denominada O Trem (“The Train”, EUA / França / Itália, 1964).

Poucas vezes o cinema norte-americano clássico, com sua decupagem transparente e seu processo de identificação / catarse, atingiu a quase perfeição narrativa – seja em termos literários (construção dos personagens, desenrolar dos acontecimentos), seja nos aspectos propriamente cinematográficos (a tão aludida mise en scène). Quem achar que o Bastardos Inglórios (2009), de Quentin Tarantino, é um bom tributo aos thrillers sobre a II Guerra Mundial (parece que este diretor só sabe fazer “tributos” mesmo), faça um favor a si mesmo e divirta-se – muito mais – com Frankenheimer.

O Trem nos mostra um fanático oficial nazista (é um pleonasmo dizer isso, não?), chamado Von Waldheim (virtuosamente encarnado pelo ator shakespeariano Paul Scofield, numa performance que lembra a de Christoph Waltz na película de Tarantino – uma das poucas coisas boas daquela), que saqueia uma coleção de pinturas modernas de um museu parisiense (incluindo obras famosas de Picasso, Renoir, Gaughin, Degas). Von Waldheim lamenta ser o único no 3º Reich que aprecia arte “degenerada” e está inquestionavelmente determinado a levar os quadros para Berlin de trem, usando para convencer seus correligionários o argumento de que valem uma fortuna em dinheiro.

Seu incansável oponente é o Sr. Labiche (Burt Lancaster), um funcionário “simplório” da companhia ferroviária e ativo membro – logicamente – da resistência. Em princípio, este não dá muita atenção aos quadros – quando muito, exploda-se o trem. Mas, vendo o empenho – e o sacrifício – de seus companheiros em salvar o “tesouro nacional” da França, Labiche decide-se a empregar dos mais engenhosos meios necessários para impedir que o trem passe pela fronteira, sem danificá-lo excessivamente. Mas estamos no final da guerra, e espera-se a chegada das tropas aliadas para os próximos dias.

Von Waldheim não é o bárbaro que põe fogo à arte “degenerada”. Ele pertence ao grupo dos bárbaros “connaisseurs”, como explicamos mais atrás. Sua visão e atitude não diferem muito das que vemos muitas vezes por aí, hoje em dia mesmo. Basta nos lembrarmos de reportagem publicada recentemente na Folha de S. Paulo (28/02/2010), que denuncia colecionadores particulares que se apossam ou compram por miséria pedaços de muros, portões, etc., que contenham trabalhos em grafite de artistas prestigiados, levando-os do espaço público para o privado.

E muitos desses “apreciadores” acham que não estão fazendo mal algum; acreditam até que estão fazendo bem em “preservar” as obras das intempéries atmosféricas e sociais, posando orgulhosamente para as fotos do jornal. Trata-se do mesmíssimo argumento ostentado por Von Waldheim, que não admite perder a batalha para o “ignorante” Labiche. Enfim, todo o filme é pensado e construído com base nesse tour de force épico entre a arte e a barbárie. Frankenheimer domina como poucos a força expressiva e narrativa da imagem em movimento. E isso é cinema. Mais nada.

A primeira sequência já atesta. Vemos em primeiro plano uma placa anunciando um museu de arte francês ocupado pelas forças nazistas – com direito ao logotipo da águia e da suástica. Logo em seguida, um movimento da câmera que se afasta terminará por enquadrar dois soldados fortemente armados, que guardam a entrada do lugar. As marcas da violência e da conspurcação são claras. Então, chega Von Waldheim e fica apreciando, na semi-escuridão, os quadros. Seu olhar é de ódio, malícia, inveja voluptuosa e desesperada incompreensão. É o olhar de um pedófilo, de um sádico.

Ele se julga superior por saber “apreciar” o Belo na Arte, mas o seu olhar contraria o seu discurso. Contrariando a curadora do museu, o oficial decide levar consigo as obras, no recuo das tropas de ocupação com a iminente chegadas dos aliados. Os quadros, então, são encaixotados, e cada caixote lembra um caixão, com o nome do pintor do lado de fora. É uma bela imagem sugestiva, que será retomada na última cena do filme: cada quadro é como um corpo, como um indivíduo barbarizado pelo 3º Reich. O ser humano e as mais altas produções do seu espírito caem ambos vítimas da mesma fúria cega que não reconhece a sua dignidade.

Eis o grande valor da imagem no cinema. Mostrar a coisa em si, na expressão tocante de sua plena realidade denotativa (os corpos caídos, os caixotes-caixões); e mostrar essa mesma coisa como tendo um aspecto que vai além de sua realidade material aparente, remetendo a um caráter mais abstrato, de modo conotativo: o valor da coisa em si e o valor de sua transcendência. Eis a imagem totalizante. Esse é o aspecto talvez privilegiado da representação cinematográfica.

Em outro momento do filme, Frankenheimer utiliza com grande sutileza uma referência ao cinema clássico francês, como arma da sensibilidade e da arte humanas contra o horror. A primeira reunião da resistência francesa, com a participação de Labiche e que definirá os planos contra o trem de Von Waldheim, acontece num barco idêntico ao de O Atalante (França, 1934), obra-prima de Jean Vigo, filho do militante anarquista Miguel Almereyda e cineasta da liberdade, do surrealismo e do jouie de vivre francês, como o atesta também a película Zero de Conduta (1933).

Durante essa mesma reunião, os personagens (a maioria trabalhadores da ferrovia) fazem referência a um colega maquinista, também resistente, chamado Papa Boule. Este será o condutor do trem com os quadros, no primeiro trecho de seu percurso. Acontece que Papa Boule é interpretado por Michel Simon, que possui em seu currículo o simpático, leal e heroico marujo (Père Jules) de O Atalante. Mais uma vez, esqueça-se Tarantino e similares. Isto aqui sim é que é tributo, um jogo de citações, referências, influências e intertextualidades altamente significativo, vivo, organicamente ligado aos conteúdos do filme.

É por isso que O Trem é um grande filme. É um filme com doses boas de gênero (ação, guerra, thriller) muito bem trabalhadas e boas doses autorais, também muito bem trabalhadas. Sobretudo, é um filme que leva em conta a história do cinema (não que isso seja rigorosamente necessário), mas o faz criativamente, sem cair submisso à frivolidade das citações, das entrelinhas. A referência a Vigo mostra, neste caso específico, que Frankenheimer tem o que dizer e sabe fazê-lo. Hoje em dia, o único que talvez tenha condições, em Hollywood, de fazer um remake de O Trem, ou fazer um filme que lhe seja à altura é Martin Scorsese. Sonhemos.

domingo, agosto 01, 2010

Mary e Max - Uma Amizade Diferente


“Através das associações poéticas, intensifica-se a emoção e torna-se o espectador mais ativo. Ele passa a participar do processo de descoberta da vida, sem apoiar-se em conclusões já prontas, fornecidas pelo enredo, ou nas inevitáveis indicações fornecidas pelo autor. Ele só tem à sua disposição aquilo que lhe permite penetrar no significado mais profundo dos complexos fenômenos representados diante dele.” (TARKOVSKI, Andrei. Esculpir O Tempo. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.17)

Mary e Max – Uma Amizade Diferente (“Mary e Max”, Austrália, 2009, dir.: Adam Elliot) é um filme de verdade. Enquanto muitos “live action” por aí não passam de mentirinha. Os rostos talhados em massa de modelar dos personagens deste filme possuem mais densidade humana e expressividade de alma do que os rostos de plástico de muitas celebridades do cinemão, modelados à base de botox, silicone, enxertos e outros horrores frankenstenianos.

Por isso, é absolutamente feliz a escolha de contar a história incrível – mas real – desta amizade entre uma garotinha e um homem de meia-idade através de animação em “stop motion”. Ao caricatural e virtual da forma de representação contrapõem-se o singular e verdadeiro dos conteúdos. Se existe uma verdade; se esta verdade é o humano em si; e se é função do cinema e de qualquer outra forma de representação veicular esta verdade humana, então Mary e Max é uma pequena obra-prima.

Tal verdade elide quaisquer apreensões filosóficas, psicológicas, antropológicas, etc. A razão está além e aquém de seus atributos e manifestações. A verdade humana está na própria vida, na vida simples das crianças e dos loucos. Por isso, o singelo desta animação dirigida aos adultos, dirigida àqueles que se esqueceram de sua natureza primeira – ou que nunca tiveram a feliz ou infeliz oportunidade de entrar em contato com ela.

É por isso também que Max sente-se traído quando Mary (já adulta) transforma-o em objeto de estudo acadêmico. Como disse o mestre russo no trecho citado acima, as associações poéticas têm mais poder no esclarecimento dos significados de fenômenos subjetivos do que as associações racionais. Mary e Max vivem sua amizade de afinidades e trocas de experiências e de impressões subjetivas dentro do próprio processo de descoberta da vida, processo esse absolutamente livre, sem indicações, sem conclusões.

A vida em sua essência. O ser-no-mundo despojado de quaisquer amarras. Por isso, Mary e Max são párias, cada qual à sua maneira. Não se encaixam num mundo que só faz por suprimir o ser, reprimir a vida. Max é um judeu solitário com síndrome de Asperger (uma forma de autismo) e que vive em Nova York. Mary é uma menina “nerd”, muito criativa, sistematicamente ignorada pela família e humilhada na escola, vivendo a um mundo de distância de Max (Austrália).

Mas o filme não se reduz ao estereótipo. A vida e o ser passam além da auto-afirmação sectária dos “winners” ou dos “losers”. Este não é um filme da Disney; tampouco de Lars Von Trier. O verdadeiramente humano sobressai em Mary e Max, com suas vitórias e fracassos, sua força e fraqueza, ambas colocadas com grande sinceridade e auto-consciência. Aceitar-se como se é, conforme recomenda Max a Mary, numa das cartas.

E o que se é não pode ser colocado em rótulos, sejam estes de qualquer tipo ou propósito. São filmes assim que fazem o espectador sair da sala de cinema com a alma mais leve (o que não quer dizer, necessariamente, que esta lhe tenha sido aliviada), com uma sensação de liberdade e disponibilidade – que é a própria sensação de vida. Somente filmes de verdade, de verdade humana, são capazes de exercer tal efeito.

Lembrando mais uma vez a fala de Tarkovski, as emoções tornam-se mais intensificadas (não interessa quais sejam) e o espectador mais ativo – eis o mais importante. Não são filmes que nos “ajudam” ou “ensinam” a descobrir a vida; quem faz isso é Disney e – mais uma vez – Trier. Pois não passam de discurso, de indicações e conclusões. Falemos é de filmes que participam conosco desse processo maravilhoso de descobrir e viver a vida. Filmes realmente verdadeiros como Mary e Max.