quarta-feira, outubro 25, 2006

"Meus Quinze Anos"


Filme exibido na 30ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

É um filme simpático, agradável de se assistir, porém, não podemos evitar a sensação – momentos após sair da sala escura e lutando com as luzes do mundo “real” – de que faltou algo. Eu quero mais desse filme. Mas, infelizmente, ele acabou – um tanto repentinamente.

No caso, essa sensação de “quero mais” é a qualidade e o defeito da obra. Meus Quinze Anos (“Quinceañera” EUA, 2006, 90 min.), dirigido por Richard Glatzer e Wash Westmoreland ganhou os prêmios de filme dramático e do júri popular no mais recente festival de Sundance (famoso festival norte-americano de filmes independentes). A história mostra com simpatia uma família de ascendência mexicana no bairro latino de Echo Park, em Los Angeles. Sorrimos e confortamo-nos com o seu calor e alegria latinos, especialmente nas festas de debutantes. Contudo, o foco está na figura de Magdalena (Emily Rios), que engravida virgem (é isso mesmo) nas vésperas de completar seus quinze anos (sua “quinceañera”). Sem acreditar no argumento da “virgindade”, exposto pela filha, o seu pai a expulsa de casa e ela vai morar com o tio-avô Tomás Alvarez (o ótimo ator Chalo González) – o pioneiro do clã a emigrar para a América – e seu sobrinho gangsta-gay (é isso mesmo) Carlos (Jessé Garcia), também expulso de casa pelo pai.

A figura do tio Tomás é o ponto alto do filme. Ele acolhe com carinho os dois desajustados e ensina a todos a conviver com as diferenças e as vicissitudes da vida. Sua simpatia conquista o espectador de imediato. Contudo, seu fim é trágico (não falarei como) e o discurso de Carlos – em determinada cena no final – é fortemente significativo e comovente.

É aqui que podemos começar a falar dos problemas do filme. Não faria mal ele tratar um pouco mais e de maneira um pouco mais contundente dos fatos que levaram à tragédia do tio Tomás – esse assunto, de grande pertinência e gravidade, ficou muito “jogado” no filme, assim como a questão da gravidez virgem e adolescente de Magdalena. O filme não entra a fundo nessas questões e em outras (como a homossexualidade e a bandidagem de Carlos). É claro que não precisaria ser um “filme de tese” (o que certamente agradaria muito melhor o gosto intelectual dos críticos e do público culto), mas, do modo como está, acaba sendo uma narrativa por demais pitoresca e picaresca – o que, em si, não é de jeito algum mal, mas, ao tratar de temas tão graves, o filme poderia deixar-se imiscuir de pelo menos um pouco mais de seriedade, que não faria muito mal à sua proposta de simpatia.

A narrativa adota soluções por demais fáceis e rápidas para os problemas tratados. Soluções positivas e edificantes, o que não é ruim nem inverossímil, porém, superficiais. Podemos até enxergar essas soluções como mostras da simplicidade, da humildade e do caráter positivo daqueles personagens, contudo, isso pode não ser o suficiente...

Pode-se talvez reconhecer, em Meus Quinze Anos, um parcela daquela visão demasiadamente exótica, pitoresca e picaresca (engraçadinha), paternalista e um tanto quanto preconceituosa (o chamado “preconceito positivo” presente nos elogios) que a classe dominante artística e intelectualizada tem do povo e da cultura popular. Essa visão está por demais presente (quem sabe predominante) no cinema brasileiro e também na nossa literatura, particularmente nos romances do Romantismo do século XIX e de autores mais modernos como Jorge Amado. Essa visão chama muito a atenção pela banalidade e pelo deslocamento, pelo desencaixe que faz de questões fundamentais.
Assim, uma imagem que representa perfeitamente essa visão (e o próprio filme, em seus personagens, temas e situações) está no começo de Meus Quinze Anos – é a primeira imagem que aparece na tela: vemos uma paisagem de natureza paradisíaca que imediatamente tomamos como real, exceto por uma linha do lado direito que a deixa descontínua – o que é bastante chamativo e nos faz por um momento pensar que o projetor da sala de exibição está desregulado; então, aparece em primeiro plano (o que nos faz pular para trás na cadeira) o busto do pai de Magdalena, e vemos, posteriormente, que aquela paisagem é um cartaz (muito mal colado, por causa daquela linha) na parede do altar da igreja na qual ele é pastor e que toda a família freqüenta. O “kitch”, o desencaixe e a ilusão daquele cartaz define maravilhosamente o filme, seu ponto de vista, seus personagens e enredo.

domingo, outubro 22, 2006

A Sensação de Ver


Filme exibido na 30ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Eu não deveria falar nada sobre este filme. É difícil explicar o seu valor sem incorrer em vários “spoilers” – isso se eu pretender fazer uma crítica nos moldes jornalísticos, ou seja, uma orientação que ajudará o espectador a decidir se verá ou não o filme. Agora, se for o caso de escrever aqui uma análise, então eu me armarei de todo o instrumental dissecatório próprio à tarefa. Não obstante, uma “análise” também destruiria sensivelmente a experiência do filme.

Assim sendo, a melhor recomendação que eu faço é: assista ao filme! Deixe-se envolver por seus ambientes – que o diretor, apresentando de corpo presente a sua exibição ontem (22/10) no Cine Bombril, chamou de “quiet places” –; seus personagens e suas histórias – o realizador disse que o filme é bem pessoal. Enfim, viva o filme, pois isso é o que ele tem de melhor a oferecer. Mais do que reflexões (compostas, por exemplo, por intertítulos – à maneira dos filmes mudos – com citações filosóficas recitadas pela voz do protagonista) ou emoções (em algumas cenas-chave, especialmente no final), o filme traz e propõe uma vivência, uma experiência – tal qual a dos personagens – íntima, forte, reveladora e transformadora.

O peso da experiência singular (no caso, um trauma, uma tragédia) pode nos paralisar, mas finalmente acabará por nos transformar. É o que acontece com os personagens do filme, especialmente com o protagonista. E o aspecto sensível da experiência já está destacado no título: “A Sensação de Ver”, que será explicado no final da exibição. A situação imperativa que se coloca aos personagens não é a do “aprender a ver” (tema já banal em narrativas psicológicas e filosóficas), mas sim a do lidar com o impacto causado pela imagem vista; processar na mente e no coração todo o peso de uma determinada visão chocante é um trabalho dos mais árduos, porém, não é ingrato – o aprendizado e a transformação que decorrerão daí são incalculáveis para o indivíduo. O filme se pauta pelo “Why?” (“Por que?”) e conclui que, para certas coisas, não devemos “bitolar” nos porquês, o melhor é simplesmente vivenciá-las de maneira bem estóica e deixá-las passar.

A tragédia testemunhada visualmente pelo protagonista é o estopim e o centro da discussão, que se estende a outras pessoas com quem ele e a vítima da tal tragédia têm contato.

Bem, já estou falando muito sobre o filme. Agora já era! Falarei ainda mais, mas sempre tomando o cuidado para não estragar a experiência do filme (apesar de que, se você ler este texto inteiro, uma parcela dessa experiência já vai “pro saco” de qualquer jeito; o ideal é assistir ao filme sem nunca ter lido ou ouvido falar coisa alguma sobre ele, ignorando completamente a sua existência, tal como eu fiz ontem).

A Sensação de Ver (“The Sensation of Sight”, EUA, 2006) está na mostra competitiva de novos diretores, dentro da 30ª Mostra de São Paulo. É o longa-metragem de estréia de Aaron J. Wiederspahn (autor também do roteiro), que já cantou em bandas de rock obscuras. O elenco é encabeçado pelo veterano David Strathairn (indicado ao “Oscar” de melhor ator por Boa Noite, e Boa Sorte, de George Clooney), Ian Somerhalder (o “Boone”, do famoso seriado de TV Lost), Daniel Gillies (Spiderman 2) e Scott Wilson (C.S.I.).

A produtora deste filme – Either / Or’s, fundada pelo próprio Aaron J. Wiederspahn e por Buzz McLaughlin (produtor de “A Sensação de Ver”) – tem como missão “criar filmes que desafiem, provoquem, e alimentem a audiência oferecendo histórias de esperança, redenção e cura”, conforme consta na página da “Either / Or’s” na Internet. Buzz McLaughlin explica: “Nós procuramos produzir filmes que coloquem as pessoas no mundo real, pessoas que estão lutando ou em problemas: essas histórias centradas em personagens tomarão um protagonista em uma jornada para um lugar de cura e esperança definitivas. Nós não buscamos necessariamente produzir filmes que façam as pessoas se sentirem bem, queremos antes contar histórias que lidam com as duras realidades da vida”. A Sensação de Ver encaixa-se bem dentro dessas propostas. É muito comum, nas mostras e festivais de cinema, tornarem-se mais queridinhos os filmes mais sócio-políticos, ou politizados (caso de O Crocodilo, de Nanni Moretti; de The Wind that Shakes the Barley, de Ken Loach; de Babel, de Alejandro González Iñarritu; de Caminho para Guantánamo, de Michael Winterbottom e Mat Whitecross; etc). Só pra ser do contra: meu voto vai para filmes “pequeniloqüentes” como A Sensação de Ver.
(continua no post abaixo)

continuação de "A Sensação de Ver"



A história mostra um professor de Inglês de meia-idade, o Sr. Finn (Strathairn), que, traumatizado por uma tragédia recente, abandona família e profissão para vender enciclopédias de porta em porta numa cidadezinha do nordeste norte-americano (Peterborough, em New Hampshire). Suas andanças são acompanhadas por reflexões existenciais; ele claramente perdeu o rumo na vida. Ao longo do caminho, o Sr. Finn vai encontrando e se relacionando (arduamente) com pessoas ligadas (de algum modo) ao seu passado e à citada tragédia.

Até aqui, não há nada que chame muito a atenção. Não é um filme ruim, mas também não ultrapassa os lugares-comuns do cinema “independente”. Mais do que “independente”, este é um filme “indie”. Os personagens todos têm aquele charme dos desajustados, suas vidas têm aquela insignificância típica, seus segredos não-revelados deixam o espectador com a pulga atrás da orelha... Enfim, um ótimo candidato a filme “cult”, habitante natural das mostras do cinema de arte (São Paulo, San Sebastian, etc).

Pra falar a verdade, eu cochilei no meio do filme, que é longo (134 min.): ficava apagando e acordando intermitentemente, perdia alguns diálogos, mas sabia que nada de muito importante estava acontecendo. Então, aconteceu! No último terço, a narrativa ganha uma força incrível, os mistérios começam a ser revelados, peças começam a encaixar (pois tudo estava muito solto antes, o filme apenas acompanhava como uma testemunha o cotidiano banal dos personagens), o drama começa a crescer imensamente e se aprofundar. Os personagens passam de “figurinhas indies” a pessoas singulares e graves. A revelação da “tragédia” em questão (que, como eu disse, é o centro de tudo), dota o filme e os seus personagens de uma especificidade e profundidade que levam o espectador a realmente se comover... de modo como ele nunca havia se comovido antes (com esta narrativa) e nem esperava que pudesse ser comovido assim. O filme surpreende. Se até então tudo estava muito genérico, no final a particularização cai com o peso de um piano nos olhos e na cabeça do espectador. Isso também ajuda a explicar o título: “A Sensação de Ver”, pois o final é de uma densidade poética admirável.

As reações da platéia mostram bem os efeitos dessa singular progressão narrativa. A reação do espectador, na última parte do filme, é: “Ah! então é por isso que...” e então vêm as lágrimas: quero dizer, se antes estávamos muito indiferentes em relação a tudo, a partir de certo momento passamos a nos envolver incrivelmente com os personagens (especialmente com o Sr. Finn e com Drifter (Ian Somerhalder). A revelação visual da tragédia ao espectador traz todo o impacto da “sensação de ver” (conforme eu disse no começo); assim, nós passamos a compreender porque é tão difícil para o Sr. Finn lidar com ela.

A forte oposição entre o filme “pré-revelação” e o filme “pós-revelação” é também evidente na câmera: na maior parte do tempo, ela é absolutamente fixa e sóbria; na última terça parte, ela ganha (muito) mais movimento e agilidade, especialmente em determinada cena entre o Sr. Finn e Drifter, de um nervosismo dramático extremamente intenso.

Todo filme tem um momento em que se revela: como bom filme (às vezes, grande filme, uma obra-prima) ou como mau filme (às vezes, uma porcaria inacreditável, caso de “O Grande Sertão”, que discuti num post anterior). É aquilo que, nos bons filmes, Henri Agel chama de “alma” – no magnífico livro O cinema tem alma? Em muitos grandes filmes, essa alma aparece com toda a sua força logo nos dez primeiros minutos de exibição (caso de “O Pianista”, de Roman Polanski). Contudo, é mais surpreendente quando ela aparece depois de uma ou uma hora e meia de relativa indiferença do espectador. É chocante, porque temos que dar o braço a torcer: um filme que, em sua maior parte, parecia que não daria nenhum vôo um pouco mais alto, de repente dispara como um foguete. Isso não é contraditório, pois essa “disparada” faz com que, revendo o filme como um todo, todas as partes se encaixem com lógica, tudo se explica, inclusive os “vôos baixos” do começo, que, após vermos o final, entendemos que não são tão “baixos” assim.

A Sensação de Ver – “The Sensation of Sight” – EUA, 2006 – 134 min
Produção: Buzz McLaughlin (Either / Or’s)
Direção: Aaron J. Wiederspahn
Roteiro: Aaron J. Wiederspahn
Fotografia: Christophe Lanzenberg
Montagem: Mario Ontal
Música: Rupert A. Thompson
Elenco: David Strathairn, Ian Somerhalder, Daniel Gillies, Scott Wilson, Jane Adams, Ann Cusack, Joseph Mazzello, Elisabeth Waterston.
Data de estréia: por enquanto, o filme está sendo exibido apenas em mostras e festivais ao redor do mundo; não há data de estréia comercial nos EUA, muito menos no Brasil.

sábado, outubro 21, 2006

O Diabo Veste Prada


Por Cris
Devo confessar uma coisa a respeito de O Diabo Veste Prada, de David Frankel: fui ao cinema esperando que fosse um bom filme. Muitos (certamente menos ingênuos) ririam dessa minha esperança, mas eu estava bastante curiosa em relação ao desenrolar do tema: o título já me pareceu intrigante... Não li (e nem conhecia) o livro, portanto não posso comentar o filme como adaptação – e talvez seja essa a causa das minhas frustradas expectativas. Ouvi alguns dizerem que é uma obra para os amantes de moda... É, deve ser, mesmo. Aliás, se a moda aqui é tratada de maneira digna, não quero nem pensar o que seria dela se fosse vulgarizada!

É bem verdade que nem tudo é uma porcaria: a atuação de Meryl Streep é, como sempre, impecável: ela está excelente tanto como vilã quanto, posteriormente, como anti-heroína – sim, porque há no desenrolar da narrativa uma mudança gradativa em relação à visão que se transmite dessa personagem, humanização essa que me incomodou um tanto e para esse assunto voltarei em breve. A trilha sonora e os figurinos (também, era só o que faltava, o filme tem o mundo da moda como cenário...) não são de se jogar fora. O problema é: um filme que se prende apenas por atuações, figurinos e trilha sonora não pode ser levado muito a sério. Que ele não seja inovador, tudo bem (essa fixação por originalidade também me irrita), mas daí a ser "clichezão" tem uma enorme diferença. Um roteiro básico e previsível, uma direção medíocre e uma fotografia comum marcam essa comédia tipicamente hollywoodiana.

Anne Hathaway faz o papel de Andrea, uma jovem inteligente e talentosa que, recém-formada em jornalismo, muda-se para Nova York na tentativa de lutar por sua tão sonhada carreira. Em vez de um grande jornal, no entanto, a única coisa que ela consegue é trabalhar como segunda assistente da editora-chefe de uma das maiores revistas de moda dos Estados Unidos: a Runaway. O emprego que seria o dos sonhos de muitas garotas, inicialmente desprezado por ela – esse seria o motivo, a propósito, dela tê-lo conseguido – vai, ao longo dos meses, transformando a nossa protagonista. Andrea é apresentada de maneira óbvia, porém interessante: enquanto suas concorrentes escolhem a dedo a roupa, a maquiagem e os acessórios que vão utilizar para serem entrevistadas pela rainha da moda e pegam táxis para chegar à revista, a nossa excepcional moça veste a primeira roupa que encontra no armário e, como se não bastasse, ainda come com gosto e sem culpa um pão com recheio de cebola numa padaria próxima à saída do metrô – um verdadeiro insulto para as modelos: muito carboidrato! Pronto: a única diferente, a única capaz. Sua idéia é agüentar o emprego (com todas as suas futilidades e, o pior, as grosserias da chefe) como se fosse um trampolim para algo realmente importante e digno durante apenas um ano no intuito de conseguir um bom QI (“quem indique”). É até engraçado (e, devo dizer, um tanto inverossímil) o quanto Andrea é ridicularizada por todos por ser gorda (manequim 40): a atriz que a interpreta é magérrima!!! Entendo o sarcasmo na escolha de Hathaway para o papel, mas para isso funcionar, as outras garotas deveriam ser mais magras do que ela... A primeira assistente, por exemplo. Enfim, deixa isso pra lá; a minha grande questão aqui nem é essa.

A virada do filme vem com o drama moral que surgirá quando Andrea começa a gostar do mundo de aparências e glamour que a rodeia. Desculpem-me aqueles que ainda não assistiram ao filme e nem imaginam o final, terei de surpreendê-los: Andrea não se deixa seduzir por completo pelas futilidades, oh, que grande mocinha! Quando percebe que o seu futuro é tornar-se uma canalha solitária porém glamurosa e famosa como a editora, quando se dá conta de que as duas possuíam tanto em comum, abandona a sua “diabólica” chefe – que, nessas alturas, já ganhou a simpatia do espectador e, de tão humanizada, já não é mais tão diabólica assim... – Miranda Priesley. Nenhum problema com o moralismo em si, mas, para funcionar de forma eficaz, ele deveria ser coerente. A vilã, de tão humanizada – como já comentei anteriormente – acaba se tornando uma anti-heroína e, para que esse efeito seja alcançado, o filme acaba banalizando algo que para tantos é realmente normal: viver para trabalhar, viver com o único intuito de manter o sistema. Que problema, porém, há nisso, não é mesmo? O trabalho dignifica o homem...

Um questionamento, porém, é bastante verdadeiro: no momento em que Andrea começa a vender a alma para o diabo, defende a chefe durante um diálogo com o seu futuro amante ao comentar que, se Miranda fosse um homem, todos admirariam o seu trabalho. O pior é que é verdade! Mas isso não isenta a personagem de Streep de sua falta de moral, muito pelo contrário, somente mostra o quanto determinados valores não importam nesse nosso mundinho etnocêntrico ocidental. A humanização de Miranda, particularmente, incomodou-me, porque em vez de transformá-la numa personagem complexa, serviu apenas para demonstrar o quanto a visão das pessoas no geral sobre o trabalho é a mesma de Miranda. Na realidade, a grande maioria não apenas se identifica com ela, também a admira e a inveja...

Lembrei-me, ao assistir a essa comédia de Frankel, de um drama chamado O preço da ambição ("Swimming with sharks", George Huang, 1994), já que os dois filmes trabalham com o mesmo tema. No último, o protagonista é um profissional recém-formado em cinema que deseja conseguir uma grande oportunidade de emprego e, em nome disso, se sujeita a ser assistente de uma grande “celebridade”: um famosíssimo produtor hollywoodiano que humilha a todos por considerar-se superior. Semelhantes, não? No caso deste último filme, porém, Kevin Spacey interpreta brilhantemente o produtor que, ao contrário de Miranda, consegue se tornar uma personagem complexa no desenvolver da trama. Parece-me o mesmo tema, no entanto, aqui é tratado de maneira séria (não porque é um drama em vez de comédia, e sim por ser bem feito) e respeitável.

É... Chego à conclusão de que O Diabo Veste Prada é um bom entretenimento para aqueles que se deixam seduzir pelo mundo da moda e das aparências, com direito até (que beleza!!!) a um happy end daqueles e, por mais incrível que possa parecer, um final moralizante.

sexta-feira, outubro 20, 2006

O Intelectual e o Culto

"O Garoto" de Charles Chaplin
Continuando com o texto de Jorge Coli:

Há uma outra possível separação. Ela ocorre não entre o erudito e o homem culto, mas entre o homem culto e o intelectual. É bem possível que o traço diferenciador mais forte seja, de um lado, o prazer, de outro, o dever.

O homem da cultura é um hedonista. Ele, primeiro, aprendeu a saborear, a degustar numa espessura concreta, aquilo que cada obra, com a intensidade que pode, lhe oferece. Seus critérios, por isso mesmo, são mais intuitivos que objetivos, e suas categorias têm fronteiras permeáveis.

O intelectual instaura processos de compreensão, desenvolve raciocínios, necessita menos sentir que articular e explicitar. Sua embriaguez chega ao apogeu quando vence as etapas de uma argumentação e constrói um arcabouço de relações nítidas.

No primeiro caso, há algo de empírico e de sensual; no segundo, muito de abstrato e de rarefeito. As meias de Hitler, para um, têm concretude, textura, cor. Elas completam uma cena dramática. O outro pode tomá-las como exemplo, ao construir uma análise socioeconômica sobre a moda masculina na Alemanha daqueles tempos.

Sem dúvida nenhuma, eu me assumo muito mais como “culto” do que como “intelectual”, quando me relaciono com as artes e com os bens culturais (especialmente o cinema). O prazer ou a dor da experiência de vida proporcionada por um filme é algo incomparável e dificilmente discutível; um filme vivido – como qualquer outra coisa vivida – torna-se vigorosamente arredio quando se tenta processá-lo racionalmente, explicá-lo em termos lingüísticos buscando um entendimento lógico.

É por isso que eu tenho severas críticas à semiologia (ou semiótica) fílmica, ideologia teórica e método de análise muito em voga no meio acadêmico há pelo menos trinta anos. Reconheço a contribuição única dessa ciência, mas dói-me no coração ler uma análise semiótica de Intolerância (obra prima de D. W. Griffith), no importante livro A Estética do Filme, organizado por Jacques Aumont. Será que a Arte é tão reduzível assim à Ciência? É natural que muito do poder de um filme pode ser explicado “cientificamente”, mas radicalizar, exagerar e generalizar esse pensamento destrói qualquer coisa de mágica e humana que pode haver na obra artística, que acaba por virar uma máquina, cujo processo de funcionamento é destrinchado pelos semióticos.

Podem me achar ingênuo, mas acredito que a Arte transcende essas coisas todas. Não que ela não possa ser uma máquina, mas a verdade é que há sempre um fantasma na máquina. A expressão deus ex machina é necessária e pertinente para compreendermos aquilo que na arte escapa às garras da semiologia e de outras análises formalistas e racionais.

Nenhum “caça-fantasma” pode aprisionar, esconder ou destruir a magia do cinema como arte.

É por isso que, em teoria e análise cinematográfica, prefiro muito mais a fenomenologia de André Bazin e outros. Melhor ainda, fico com Jean Mitry, que une sabiamente o pensamento fenomenológico ao semiótico-estruturalista – destacando suas contribuições específicas e podando os exageros presentes em ambos.

Para encerrarmos com Jorge Coli:

O híbrido culto-intelectual, se existe, é raríssimo. Há casos em que o homem culto quer se tornar intelectual: os resultados nem sempre são convincentes. O intelectual, por sua vez, é mais seguro em seu modo de ser; para ele a cultura é apenas um meio, não um universo, que não lhe passa pela cabeça habitar, porque ele não saberia como. Seu conhecimento é cerebral (grifo meu): quantas teses universitárias sobre objetos da cultura, mesmo inteligentes, iluminadoras, se completam sem a experiência pessoal da cultura.

São estudos que mergulham num tema, ignorando o que está à volta dele ou explorando os outros setores de maneira “instrumental”, para algum infeliz capítulo introdutório de “contextualização”, como se diz.

A cultura é uma prática, no sentido de um hábito, de um costume, de uma freqüentação; o trabalho intelectual é um exercício. Há um clima bem aventurado de divãs e almofadas no Oriente, num caso; há o rigor exato do trapézio, no outro. Um pressupõe o ócio; o outro pressupõe o trabalho.

Assumo-me, já que é assim, como um vagabundo, no que se refere ao contato com as artes (incluindo de maneira especial, nem preciso dizer, o cinema). Jorge Coli destaca, nesses três últimos parágrafos, a cultura como experiência de vida, necessária e enriquecedora. Por isso sou fenomenológico de carteirinha.

O trabalho intelectual, abstrato, científico e racional também exerce sua sedução em mim. É preciso, no fundo e a bem da verdade, não esquecermos o valor e a contribuição particulares do “intelectual”. Mas, quando este exagera, sai de baixo... Essa é a chatice do meio acadêmico, infestado dessa atmosfera intelectualóide. Por mais que o lado científico também me agrade, tenho a certeza de que seria terrível se eu começasse a trabalhar com cinema (como professor, pesquisador ou crítico), apesar da minha vontade. Chegaria um ponto em que eu ficaria extremamente “empapuçado” de qualquer coisa que estivesse ainda que indiretamente relacionada ao cinema. Talvez algumas férias resolvessem, talvez não. Talvez o encanto se perderia para sempre, assim como o poder da ingenuidade inicial.

É por isso que a criança é a criatura mais sábia e artística, uma vez que ela vê todas as coisas com o frescor da primeira vez, e tem uma disposição invejável para vivenciá-las e compreendê-las, em sua infinita curiosidade.

quinta-feira, outubro 19, 2006

O Erudito e o Culto

Another Brick in the Wall
Reproduzo o texto da coluna “Ponto de Fuga” – de Jorge Coli – publicado domingo passado na Folha de S. Paulo, que me levou a algumas reflexões.

De que cor eram as meias de Hitler?

Umberto Eco fala sobre diferenças entre cultura e erudição numa entrevista recente à revista francesa “Le Nouvel Observateur”. Diz assim: “Erudição não é cultura, mas uma sua forma particular e secundária. Cultura não é saber a data de nascimento de Francisco 1º. Ser culto significa antes de tudo saber que ele foi um rei da França no Renascimento e qual era o papel da França no contexto europeu da época. Quanto à sua data de nascimento, a cultura permite encontrar essa informação, se temos necessidade dela”.

Ainda: “Borges nos contou, em “Ficções”, a história de ‘Funes, el Memorioso’, esse homem que se lembrava de tudo, de cada folha que ele vira sobre cada árvore, de cada palavra que ele ouvira ao longo de sua vida e que, por causa de sua memória total, era um perfeito idiota. A cultura é igualmente um processo de conservação e de filtragem, pelos quais nós sabemos quem era Hitler, mas não qual era a cor de suas meias no dia em que ele se suicidou em seu bunker”.

Memória e filtragem, dois instrumentos essenciais nessa distinção. A memória é instrumento da cultura e o objetivo da erudição; o filtro é uma rede de relações que pesca aquilo de que precisa. A oposição entre cultura e erudição é clássica.

Insisto no aspecto da filtragem. É lamentável ver, por exemplo, o quanto a educação escolar (ainda) está muito mais apegada à “erudição” do que à “cultura”. A maioria de nós fomos traumatizados pela “decoreba” de conteúdos absolutamente inúteis. Obriga-se o aluno a conhecer muita coisa, mas ninguém o faz desenvolver o senso crítico, o raciocínio livre que nos leva a realmente saber as coisas. Em um curso universitário, ou qualquer outro de caráter profissionalizante, é lógico que se busque a erudição (sem deixar de lado, evidentemente, o senso crítico), pois o especialista deve ter um conhecimento específico, detalhado e profundo do seu objeto de trabalho. Mas levar essa mentalidade para o ensino básico é condená-lo ao fracasso. Essa situação é ainda mais triste no campo do ensino das artes e da literatura. Em muitas escolas, o aluno decora nomes de escritores e de suas obras, datas de início e de término de movimentos literários, mas fica sem fazer a menor idéia do que seja a arte da Literatura, de fato. Conseqüentemente, esse aluno acaba desenvolvendo aversão à disciplina. Triste.

O sistema de vestibular também está muito ligado a essa situação, embora mudanças já venham tomando espaço (lentamente). A oposição clássica entre cultura e erudição é trabalhada por Kant quando ele estabelece as diferenças entre “apreender” e “compreender” (na Crítica da Faculdade de Juízo): apreender é a tarefa do erudito, enquanto compreender é o objetivo e preocupação do culto. A compreensão é um trabalho mais profundo e complexo: é o verdadeiro entendimento, pois pressupõe um raciocínio analítico, analógico e crítico. Não se trata apenas do “input” de dados (o que se aproximaria da apreensão). Um computador, atualmente, jamais poderia compreender a filosofia de Kant, por exemplo. Mas poderia apreendê-la facilmente. É possível condicionar um cão ou um aluno do ensino médio a aprender a filosofia de Kant, mas será que eles realmente a saberiam, desse modo? Montagne, no ensaio Sobre a educação das crianças, também defende o verdadeiro e produtivo aprendizado (próximo da “compreensão” de Kant e da “cultura” de Eco), em detrimento de um aprendizado estéril (ligado à “apreensão” e à “erudição”).

Mas enfim, alguém já pode estar se perguntando: o que tudo isso tem a ver com cinema? – já que este é um blog sobre cinema. A relação é simples, talvez evidente. Há pessoas que buscam nos filmes mais erudição do que cultura. Por que motivo? Talvez a velha vaidade. Excluo os profissionais (é claro), visto que o seu caso, como já disse, é compreensível. Mas quando um cinéfilo recita muita coisa de cor e salteado a respeito de filmes e cineastas, eu fico na dúvida se tamanha erudição se faz acompanhar por uma cultura adequada ou não. Será que o cara entende mesmo (e aprecia) todos esses filmes, idéias e pessoas de que fala, ou esse discurso todo é apenas uma questão de soberba e vaidade? Ambos os casos acontecem e variam de pessoa para pessoa. Cultura e erudição dificilmente têm o mesmo peso na balança do indivíduo, mas também esse peso não é absolutamente desigual todas as vezes. Enfim, acredito que isso aconteça com todas as artes, pelo menos na literatura eu sei que também é assim.

Poderíamos acrescentar aos textos de Jorge Coli e de Umberto Eco que a erudição muitas vezes está ligada a imperativos de moda e padrões socialmente aceitos e sobrevalorizados (o que se relaciona à questão supra citada da vaidade). Por exemplo: um cinéfilo pode ser “erudito” no cinema de Jean-Luc Godard e Ingmar Bergman não apenas por “gostar” deles, mas porque são cineastas muito valorizados (às vezes até demais) no meio “cinéfilo”; e esse indivíduo sabe que, se ele quiser ser “cinéfilo de verdade” (ou seja, ser bem considerado como cinéfilo pelos outros cinéfilos), ele tem que conhecer bem e idolatrar Godard, Bergman e outros que compõem o “panteão”. Casos assim podem nos parecer ridículos, absurdos, pueris ou raros, mas são reais.

A questão difícil de responder é: em que medida realmente apreciamos um artista e sua obra por valores intrínsecos e em que medida só damos atenção a eles por estarem na “ordem do dia”? Na longa história da literatura, encontramos escritores que eram considerados gênios imortais em suas épocas, mas que hoje estão quase absolutamente esquecidos. E esquecidos porque a rigorosa peneira do tempo provou que não eram “imortais” de fato. Não resistem ao envelhecimento. Na curta história do cinema, já aparecem alguns filmes que não envelheceram bem. Mas o tempo futuro pode muito bem mostrar que não só filmes, como também cineastas e talvez até movimentos cinematográficos que adoramos não são tão ricos assim. Eventualmente, são bastante pobres.

Acredito que o homem de cultura (em oposição ao erudito), que exerce um pensamento mais livre, abrangente, profundo e crítico, não se deixa deslumbrar pela purpurina nos olhos das modas contemporâneas, ele resiste àquilo que na música rock-pop chama-se “hype”. Quantos cineastas e filmes não são também alvo de “hype”?

Enfim, esse tema rendeu mais do que eu imaginava. Amanhã colocarei o resto do texto de Jorge Coli e refletirei sobre outras coisas, como o papel do profissional dentro da erudição.

quarta-feira, outubro 18, 2006

Sobre Mostra e Mostradores

A mesma praça, o mesmo banco...
De José Simão:

PIPOCA-CABEÇA! Mostra Internacional de Cinema! Maratona de filme-cabeça! E filme-cabeça geralmente é assim: um monte de gente pelada discutindo. E todo ano eu estréio a Mostra com as mesmas definições: Mostra é um filme estranho, falado numa língua esquisita, com uma história desconexa, visto por uma gente escalafobética.

A Mostra é assim: você passa duas horas em pé, esperando o filme começar, e duas horas sentado, esperando o filme terminar. E tudo em língua de país que não tem água potável! Rarará!

E eu adoro a Mostra porque você não encontra ninguém da Blockbuster. Aliás, duas pessoas que você não encontra nunca na Mostra: atendente da Blockbuster e cliente da Blockbuster. E uma amiga minha odeia a Mostra: “Se você me vir entrando na Mostra, pode chamar a polícia que é seqüestro”.

Em tempo: a 30ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (ufa! que nome comprido) estréia nesta sexta-feira, 20 de outubro, e vai até o dia 10 de novembro.

Certamente estarei lá para ver alguns filmes que me chamarem a atenção – isso se a exibição deles bater com os meus horários disponíveis (pois eu também tenho que ganhar o meu pão). O que eu não entendo são aquelas pessoas que procuram ver TODOS os filmes da Mostra (que são mais de 300), ou quase todos, ou uma quantidade muito grande que seja. Todos os anos circulam histórias de pessoas que fazem isso, eu mesmo conheço gente que vê cinco ou seis filmes por dia, nos finais de semana pelo menos.

Isso com certeza não funcionaria para mim. Não tenho a capacidade de assimilar e processar tantas obras cinematográficas em tão pouco tempo. E, sinceramente, acho que pouquíssimas pessoas têm – se é que isso é possível, afinal. Acredito no poeta José Paulo Paes, quem disse uma vez que a poesia é como uma “droga”: se você ingeri-la em quantidade pequena e controlada, ela lhe fará um grande bem; porém, se você exagerar a dose, ela se torna um veneno. Acho que essa analogia se aplica a todas as formas de arte e de entretenimento, sem deixar de lado o cinema.

Cada obra artística, especialmente as mais valiosas, requer um tempo e uma disposição de trabalho mental para ser apreciada adequadamente. Esse tempo, logicamente, extrapola aquele que levamos para ter o primeiro contato com ela (que é o tempo que nos toma ao ver um filme ou ler um livro). É o tempo da “pós-apreciação”, onde você vai “mastigar” e “digerir” aquela obra em seu íntimo, processá-la lentamente, talvez até sonhar com ela (uma amiga minha chegou a ter um pesadelo com o filme “A Cidade dos Sonhos”, na noite logo após assisti-lo pela primeira vez). Se a arte é um alimento para a alma, devemos logicamente conceder o tempo e o repouso necessário para digeri-lo; caso contrário, a indigestão será inevitável e aterradora.

Desse modo, acredito que, ao se assistir cinco ou seis filmes em um só dia, não se faz bem algum a si próprio nem à arte do cinema. Talvez se faça até um mal. Mas a raiz do problema está na “sociedade da informação” em que vivemos: uma quantidade impressionante de conhecimento se nos apresenta (de maneira às vezes impositiva: “decifra-me ou devoro-te”) numa velocidade muito veloz, e nós não temos tempo de assimilar adequadamente; tudo fica muito superficial e efêmero: “vi vários filmes na Mostra, mas, após algum tempo, já não me lembro exatamente de nenhum deles”. É a informação em detrimento da formação. Tem-se muito conhecimento e pouca sabedoria. Enfim, dá pra ir longe nesse assunto.

Para mim, seria preferível ter uma erudição bastante limitada – porém, sabendo bem e a fundo aquilo que eu conheço – do que ser um “homem-enciclopédia” que não vai além do “verbete”. Mas a escolha nem sempre se faz assim tão radical. Em certa medida, dá para unir a quantidade grande da informação à qualidade alta da apreensão dessa mesma informação. Devemos apenas saber que medida é essa, conhecendo os limites e evitando exageros – o que talvez já seja muito difícil, mas, enfim, deixa pra lá...

sexta-feira, outubro 06, 2006

Absolutamente Certo

Reproduzo aqui um trabalho que escrevi há três anos atrás para uma matéria que fiz (“História do Audiovisual II”) na ECA-USP. O tema escolhido foi o filme Absolutamente Certo (1957), estréia na direção de Anselmo Duarte, cuja obra mais famosa e importante é O Pagador de Promessas (1962).

As relações entre cinema e TV dão muito assunto para discussão. É comum dizer que a televisão no Brasil, a partir dos anos 50, arrancou à sétima arte uma parte considerável do seu público. Apesar disso (ou por isso mesmo) o diálogo entre os dois meios é intenso: em alguns lugares, formaram-se parcerias produtivas que fazem bastante sucesso; na estética, a linguagem da TV assimilou a do cinema e, posteriormente, o foi o cinema que assumiu o estilo televisivo. Mas e quanto às relações temáticas? Não conheço, no cinema brasileiro, uma fita que trate do universo da televisão, do modo como faz Anselmo Duarte em Absolutamente Certo.

Nesse filme de estréia (1957), o diretor se faz pioneiro em mostrar o que é a TV, invenção maravilhosa que acabara de surgir, e qual o seu impacto na sociedade, numa chave de crônica humorística. Tudo bem colocado, pesa um elogio ao novo meio audiovisual, mas sem deixar de lado aspectos negativos, tratados com o humanismo característico de O Pagador de Promessas.

A TV está no filme, e o filme está na TV: Absolutamente Certo abre e fecha com as luzes de um estúdio de televisão, manipuladas pelos técnicos. Mas a identificação entre o filme e a atração televisiva não pára por aí. Em seguida, vemos uma câmera de TV se aproximar até quase tocar na do próprio filme, enquanto aparecem na tela os créditos. Coloquemo-nos numa posição imaginária onde possamos ver as duas câmeras, uma diante da outra, perscrutando-se mutuamente, como duas espécies de animais que desconhecem uma à outra mas que se sentem familiares; perceberemos o impacto significativo dessa imagem e do filme que ela anuncia.

Em vários momentos, podemos ver como era a TV brasileira nos anos 50. A começar pelos “quiz show”, do tipo do programa justamente intitulado “Absolutamente Certo”, que premia o chamado “conhecimento inútil” e fazem muito sucesso até hoje – veja-se, por exemplo, o Show do Milhão. O filme também mostra de importante:
1. O dilema (bastante atual) dos programadores de TV entre o “apelativo” – que aumenta a audiência e agrada aos anunciantes e patrocinadores (dos quais a emissora depende) – e a preocupação por uma cultura e educação mais elevadas. Esse tema aparece na cena (apesar de curta) em que se discute a importância e o interesse de se levar ao ar um homem que tem toda a lista telefônica decorada na cabeça;
2. A vaidade das primeiras estrelas dos programas, o nascimento do “star system” da TV nacional, na cena da cantora que dá “chiliques” por causa de seu vestido excessivamente apertado. O personagem simples (Zé do Lino) interpretado pelo próprio Anselmo Duarte considera louca essa mulher.
3. As imensas e pesadas câmeras de TV, que não tinham “zoom”, e precisavam se deslocar no espaço para fazer tomadas mais aproximadas; o aparelho receptor nos domicílios familiares, que custava a ter uma imagem de qualidade satisfatória na recepção, merecendo por isso a reclamação da personagem engraçada de Dercy Gonçalves.

Quanto às relações entre TV e sociedade, tem-se representado no filme o fenômeno dos “televizinhos”, assim como a dificuldade de se comprar um aparelho – na cena em que o marido da personagem de Dercy se refere à compra em prestações do televisor (na época, havia uma política de crédito ao consumidor na compra de aparelhos de televisão, tudo para estimular a expansão da TV no Brasil). Um momento significativo é quando a esposa do italiano Rinaldi vê, no programa “Absolutamente Certo”, Zé do Lino recitar de cor o endereço e o número do telefone de seu marido. Quando ela comunica ao último esse fato, a reação assustada do pobre homem, que até então apenas lia o seu jornal, é bem engraçada para nós; mas coloquemo-nos no lugar daquele homem, naquela época, aos se achar “descoberto” pela TV em sua própria casa. Rinaldi, ao telefone com o apresentador do programa (ao vivo, pois ainda não existia VT) para corrigir o número do seu telefone – indevidamente anotado pela produção –, fala alto e gesticula para o televisor, interagindo com o aparelho como se fosse ele o seu interlocutor.

Contudo, o melhor deste filme está no protagonista Zé do Lino (Anselmo Duarte). Já é absurdo o fato de ele decorar a lista telefônica mas não possuir um aparelho de telefone. Interrogado com surpresa pela secretária da emissora de TV (onde ele participará do programa de perguntas e respostas “Absolutamente Certo”), ele responde com aquela calma...: “Arrumar lista é fácil, mas telefone nesta terra...” É a visão social de Anselmo Duarte (tanto do personagem vivido por ele quanto dele como cineasta).

Zé do Lino é o homem simples, comum, repentinamente jogado no distante mundo do “showbusiness”: a timidez e o embaraço dele são características. Porém, mesmo imerso no universo da vaidade e manipulado pelos “maus” (os apostadores do programa), ele se mantém file aos bons e tradicionais valores, recusa propostas indecentes, não se acostuma com riqueza e fama, é espiritualista – veja-se a opinião que tem sobre a beleza interior da namorada – e ainda por cima sofre com a intolerância dos sogros. Enfim, ele é o autêntico “bom rapaz” da canção de Wanderley Cardoso, à maneira antiga.

A apresentação dele, no começo do filme, é bem significativa, tal como a dos grandes personagens narrativos: enquanto a família toda se espreme ao redor do televisor, com a atenção inabalavelmente fixa, a câmera abre caminho por entre eles e vai descobrir Zé do Lino e sua namorada lá no fundo da sala, num abraço apaixonado e completamente alheios a tudo o que se passa ao redor. Ou seja, Zé do Lino é o homem simples e sábio que não se deixa dominar pelo “canto de sereia” da TV, novidade na vida daquelas pessoas. No entanto, esse momento também vai ser maculado pela TV-destruidora-das-relações-familiares, quando – na mesma cena – a família interrompe o namoro dos dois para sugerir a Zé que use a sua inteligência para enriquecer no programa “Absolutamente Certo”.

O lado “bom rapaz” de Anselmo Duarte (desta vez como diretor) fica evidente na ligação entre as cenas da festinha “rock and roll” (novidade “subversiva” da época) dos bandidos e o “jura” (famosa canção popular brasileira antiga) cantado por Dercy Gonçalves na festa em casa da namorada de Zé. É definitivamente um filme familiar. A família inteira é levada para a frente das câmeras de TV, na sarabanda do final, e a frase de Dercy para a câmera (de TV, que neste momento se mistura à do próprio filme) ressalta a defesa da família que Anselmo propõe.

A crítica social humanista de Anselmo Duarte adquire beleza estética fenomenal na cena em que um cantor negro interpreta o número “Onde estou?”, promovido pela emissora durante um jantar, com direito a todo um cenário teatral. “Onde estou?” é o que parece perguntar a si mesmo Zé do Lino no mundo louco da TV, já que, por natureza, ele não pertence àquele meio (ele declara ao apresentador que só participa do programa para ajudar a família); “Onde estou?” é o que parece perguntar o negro que até hoje luta para conquistar um lugar digno no Audiovisual – vale lembrar que o cenário onde aquele artista negro canta, durante o jantar de gala, é decorado com elementos da natureza selvagem. Após um movimento para trás, a câmera revela que a “selva” onde o cantor negro se apresenta está instalada num salão de jantar luxuoso; eis o espetáculo nacional. São essas antíteses que revelam as contradições sociais brasileiras, a “inclusão excludente”, as desigualdades e os preconceitos.

Absolutamente Certo é um grande filme de entretenimento com interessantes e importantes coisas “a mais”.

Absolutamente Certo (1957)
Gênero: Comédia
Duração: 95 min
Origem: Brasil
Estúdio: Cinedistri
Direção: Anselmo Duarte
Produção: Oswaldo Massaini
Elenco:
Anselmo Duarte (Zé do Lino), Dercy Gonçalves (Bela), Odete Lara (Odete), Aurélio Teixeira (Raul), Maria Dilnah (Gina), Murilo Amorim Correia (Guilherme), Suzy Arruda (Mulher do Luciano), Jaime Barcellos (Capanga)

quarta-feira, outubro 04, 2006

Guimarães Rosa e Cinema

Bruna Lombardi como "Diadorim", na minissérie televisiva Grande Sertão: Veredas (1985).
Adaptar para o cinema a obra literária de João Guimarães Rosa é uma das coisas mais difíceis que existem. Não apenas por causa de toda a inventividade lingüística do grande escritor mineiro, intraduzível para a linguagem audiovisual, mas, principalmente, por causa da alta temática mítica, mística e filosófica do autor de Sagarana.

O sertão de Rosa não é apenas aquele que todos conhecemos, dissecado geográfica e sociologicamente por Euclides da Cunha (Os Sertões) e Graciliano Ramos (Vidas Secas). Guimarães Rosa trata muito bem do “particular” do sertão: a paisagem, os tipos, as relações políticas, a vida e a cultura específicas do sertanejo – a obra de Rosa tem esse grande valor, essa contribuição para o registro e o estudo da brasilidade do sertão; contudo, o escritor vai muito além de tais questões “específicas”: em João Guimarães Rosa, o sertão também é palco de tragédias shakespearianas, de uma profunda reflexão filosófica e até mesmo mística sobre o homem e suas grandes questões – a “morte”, o “destino”, o “as contradições do amor”, o “diabo”, o “livre-arbítrio”, a “amizade”, a “paz” e a “guerra”, a “loucura”, a “iluminação interior”, a “memória”, a “busca” pela “verdade divina”, e muitos outros pontos que fazem a literatura roseana transcender para o “universal”. O próprio escritor confessa que tinha o objetivo de criar histórias que fossem “eternas”, que pudessem ser lidas no futuro distante sem perder o interesse geral.

As narrativas de Rosa tratam de todos esses grandes temas abstratos fazendo-os encarnarem em personagens e situações dotados de forte caráter mítico (o mito é a representação concreta de valores abstratos). Assim, a sua literatura não é apenas um documento sócio-histórico, ela é um “cosmo de mitos” (na acepção do crítico e historiador literário Alfredo Bosi). Suas histórias são estruturadas como fábulas e parábolas que sempre trazem alguma profunda mensagem de ordem filosófica.

Essa dimensão, que poderíamos chamar – a grosso modo – de “idealista”, é, obviamente, pouquíssimo estudada e valorizada no meio acadêmico, naturalmente preso ao “espírito” científico-intelectual de nossa época: essencialmente materialista. As inteligências desiludidas da modernidade e da pós-modernidade acham no mínimo “ingênua” a mera idéia de transcendência.

Os filmes que já se fizeram (pelo menos, os que eu conheço) sobre os livros de Guimarães Rosa também deixam-se contaminar por essa visão. A Terceira Margem do Rio (1994) – adaptação de alguns contos de Primeiras Estórias, do grande Nelson Pereira dos Santos, faz o ridículo desserviço de dar ares pitorescos ao conto A Menina de Lá, originalmente de uma profunda e comovente seriedade místico-filosófica. O diretor de Rio 40 Graus e Vidas Secas pode ser muito bom no estudo do “particular” que explicamos anteriormente; mas revelou tato e sensibilidade zero para representar o conteúdo “universal” de Rosa.

Ainda não tive, infelizmente, a oportunidade de ver A Hora e Vez de Augusto Matraga (1965), de Roberto Santos, baseado no famoso conto homônimo, presente em Sagarana. Mantenho a esperança de que ele “entenda” melhor a obra original. Também não pude assistir a Outras Estórias (1999), de Pedro Bial – sim, ele mesmo, do “Fantástico” e do “Big Brother” –, outra fita inspirada por contos de Primeiras Estórias; coloco aqui também a mesma esperança.

Sagarana: O Duelo (1973), de Paulo Thiago, não é um filme ruim como o de Nelson Pereira dos Santos. A partir do conto de mesmo nome, o diretor não alça vôo tão alto como o de Guimarães Rosa, mas representa de maneira séria e respeitosa o drama dos personagens e a tragédia dos acontecimentos; o filme é veste-se de um tom poético que não faz feio perto do original.
(continua no post abaixo)

continuação de Guimarães Rosa e Cinema

(continuação do post acima)

Agora, o caso à parte é O Grande Sertão (1965), dirigido pelos gêmeos Geraldo e Renato Santos Pereira – o primeiro dirigiu, recentemente, Aleijadinho, Paixão e Glória (2003), escrito pelo segundo. O filme veio vinte anos antes da famosa minissérie da TV Globo, Grande Sertão: Veredas (que não vi). Ambos tentam traduzir e adaptar o volumoso romance de Rosa, um dos maiores de nossa literatura, e de qualidade internacional. Grande Sertão: Veredas é a narrativa mais ambiciosa de Guimarães Rosa, no aspecto formal (a experimentação e as misturas lingüísticas do escritor estão todas lá, nas cerca de 600 páginas em um único bloco, sem a divisão de capítulos) e no de conteúdo: as reflexões filosóficas generalizantes são representadas em uma história grandiosa, ao mesmo tempo fortemente lírica (as memórias do ex-jagunço Riobaldo), épica (as guerras dos grupos de Jagunços no sertão mineiro) e dramática (a peculiar relação entre Riobaldo e o seu companheiro Diadorim). É uma novela de cavalaria sertaneja.

Assim, foi com grande entusiasmo que peguei para ver esse filme. Mas que desastre! Talvez eu nem devesse falar dele; bastaria representar o diálogo de uma tirinha da série Níquel Náusea, de Fernando Gonsales (se eu tivesse um scaner, colocaria a tira inteira):

“O famoso rato azul está lendo um livro de histórias para os seus filhotes. Ele diz:
- Essa de chapéu vermelho é entregadora de pizza! Ela perguntou pro lobo o endereço da velha. Êpa! A velha se transformou num lobo!
Um dos seus filhotes diz para outro:
- Pra mim, ele não sabe ler!”

Esse trecho nos ajuda a entender de uma maneira toda especial o filme Grande Sertão e a sua relação com a obra original de João Guimarães Rosa. Não me lembro de ter visto uma adaptação literária pior. Um dos objetivos deste post é documentar algo sobre esse filme na Internet, pois é bem pouco o que eu encontrei sobre ele na rede. Em princípio, eu achava que a escassez de informações devia-se ao velho problema de divulgação e distribuição de filmes nacionais, principalmente dos mais antigos; acreditava eu que era um filme “cult” que precisava ser redescoberto. Agora, penso eu que não se fala muito sobre ele simplesmente porque é muito ruim, não deve ter despertado atenção nem sobrevivido à peneira da história.

O começo é até bom, com os jagunços saindo do meio da névoa – como anjos do apocalipse, numa cena de aura mítica e mística bem de acordo com a literatura de Rosa. Essa cena precede a da abertura de Táxi Driver (1976), de Martin Scorsese, com o táxi também saindo do meio da névoa escura, como um anjo (ou demônio) vingador. A apresentação dos personagens, os diálogos na linguagem sertaneja, as cenas paisagísticas do sertão mineiro com a voz em “off” de Riobaldo interpretando o belíssimo texto original de Guimarães Rosa, tudo isso é muito bonito e bom como cinema. Mas...

Quando, antes da metade do filme, descobrimos (assim como Riobaldo) o segredo sagrado de Diadorim, todo meu encantamento caiu por terra, foi substituído por uma raiva que é difícil eu sentir em relação a um filme. Falo de maneira tão contundente, pois considero essa película um gritante desrespeito artístico para com a narrativa original de João Guimarães Rosa. Toda a estrutura narrativa do longo romance é construída em torno do segredo de Diadorim, das dúvidas e medos de Riobaldo em relação ao seu sentimento pelo amigo e à ambigüidade sutil da relação entre os dois. Pois o filme dos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira, que já é muito curto (92 minutos), destrói tudo isso antes da metade de sua duração. A partir daí, essa “obra-prima” cinematográfica transforma o relacionamento Riobaldo-Diadorim num dramalhão folhetinesco inacreditável. Eu fiquei estupefato. O roteirista é Roberto Farias, que dirigira pouco antes o magnífico Assalto ao Trem Pagador (1962)...

Não vou dizer como termina o livro, pois isso seria um “spoiler” grande demais (apesar de já ser um fato folclórico no meio literário). Digo apenas que a narrativa do romance só veio a existir como processamento que Riobaldo faz de suas memórias e sentimentos com relação a fatos passados que ele não pôde controlar – pois não sabia do que se tratava – e, assim que soube, tarde demais, não pôde fazer nada para mudar. O filme, ao jogar tudo isso no lixo, acaba criando petulantemente uma outra história, com outros personagens. Não se deixe enganar por essa “adaptação”. A quem quiser fazer-se a si mesmo um grande bem, leia o romance Grande Sertão: Veredas, deixe-se conduzir por sua maravilhosa narrativa e surpreenda-se no final.

Obras de João Guimarães Rosa adaptadas para o Cinema e TV:

“O Grande Sertão”: 1965, dirigido por Geraldo e Renato Santos Pereira. Baseado em Grande Sertão: Veredas, romance originalmente publicado em 1956. Existe em DVD.

“A Hora e Vez de Augusto Matraga”: 1965, dirigido por Roberto Santos. Baseado no conto homônimo, do livro Sagarana, originalmente publicado em 1946. Não existe em DVD.

“Sagarana: O Duelo”: 1973, dirigido por Paulo Thiago. Baseado majoritariamente no conto O Duelo, do livro Sagarana, originalmente publicado em 1946. Existe em DVD.

“Grande Sertão: Veredas”: 1985, dirigido por Walter Avancini. Minissérie originalmente exibida na Rede Globo de televisão, baseada no romance homônimo originalmente publicado em 1956. Não existe em DVD.

“A Terceira Margem do Rio”: 1994, dirigido por Nelson Pereira dos Santos. Baseado em cinco contos do livro Primeiras Estórias, originalmente publicado em 1962: o que dá título ao filme, A Menina de Lá, Os Irmãos Dagobé, Seqüência e Fatalidade. Não existe em DVD.

“Outras Estórias”: 1999, dirigido por Pedro Bial. Baseado em alguns contos do livro Primeiras Estórias, publicado originalmente em 1962, dentre os quais: Famigerado, Nada e a nossa condição, e Substância. Não existe em DVD.

terça-feira, outubro 03, 2006

As Torres Gêmeas

É muito fácil falar mal do novo filme de Oliver Stone. Tão fácil que se corre o sério risco de cair nos mesmos e velhos lugares-comuns. Podemos dizer – e de fato se diz muitas dessas coisas – que o diretor absteve-se da dimensão política dos trágicos acontecimentos de 11 de setembro de 2001, ou que seu novo filme é mais um subproduto do reacionarismo da era Bush pós 11 de setembro, ou ainda que ele é muito (no termo magnificamente cunhado pelo poeta José Paulo Paes) “patriotário”.

No entanto, ao fazer afirmações nessa linha, deve-se ter muito claro o seguinte discernimento: que medida desse raciocínio nasce de uma visão aberta do filme em questão e que medida dele pode ser atribuída às nossas ideologias ou mesmo nossos preconceitos. Sim, porque uma coisa seja dita: temos preconceitos bem fortes, às vezes somos tão intolerantes quanto aqueles nos quais gostamos de apontar tais defeitos. Quando digo “nós”, refiro-me aos (alguns) brasileiros, ou, em uma acepção mais pertinente, aos não-norte-americanos. Reconheçamos a nossa fascinação mórbida pelo atentado ao World Trade Center e reconheçamos, principalmente, a alegria que alguns de nós sentimos (eu, particularmente, vi essa reação em algumas pessoas), expressa em sentenças do tipo: “Bem feito! Agora esses americanos estão pagando!”; “Quem semeia tempestade colhe furacão!”; etc. Essa alegria, na maior parte das vezes, é contida; mas já vi manifestações fervorosas. Certa foto do rosto de Osama Bin Laden já quase um ícone, tanto quanto a famosa imagem facial de Che Guevara.

Tamanho anti-americanismo – assim como qualquer outro “anti” carregado de uma dose mínima de intolerância e preconceito – deve ser deixado de lado quando virmos (se virmos) As Torres Gêmeas (“World Trade Center”, EUA, 2006). Muitas coisas do que se diz a respeito desse filme só revelam o velho problema de se acompanhar uma produção cultural com o olhar turvo sob a grossa camada de ideologias, certas disposições emocionais, preconceitos e expectativas que ostentamos pesada e soberbamente como óculos cerebrais que mais nos deixam míopes do que melhoram nossa visão. Ao contrário disso, deve-se ter a visão natural e limpa para reconhecer o que uma obra cultural se propõe a nos oferecer e se ela logra tal intento, de fato.

Por um lado, são naturais e pertinentes as críticas que se fazem da mais recente produção de Oliver Stone, baseadas em nossas expectativas: é estranho que o realizador de Platoon (1986), Nascido em 4 de Julho (1989), JFK (1991) e Assassinos por Natureza (1994), notabilizado por uma análise social polemizante e combativa, apresente este filme inspirado pelo 11/09, um acontecimento de forte conteúdo histórico, polêmico e – o que é mais interessante, recentíssimo, com uma visão apolítica dos fatos. Não há muita coerência com o resto de sua obra. Mas, a não ser por esse ponto, o filme não merecerá ser tão detratado. E, além disso, certas críticas que se fazem são incompreensíveis ; eu não sei que filme a pessoa assistiu, mas não foi, certamente, As Torres Gêmeas.

Enfim, chega de procurar neste filme o que ele não tem; que tal, para variar, observar o que ele é, intrinsecamente? As Torres Gêmeas é um filme de terror. Sim, na medida em que o terror é um sentimento / sensação despertado e conduzido por elementos e situações ambientais que cutucam e ferem o mais fundo de nosso íntimo – Oliver Stone estreou como diretor de longas no gênero dos sustos e do horror, com Seizure (1974) e o interessantíssimo A Mão (1978). O início do filme é como o de muitas obras de terror: os personagens são apresentados em diversas cenas de sua vida cotidiana e, na medida em que é rotineira, tranqüila. Mas nós não nos iludimos nem nos deixamos levar, pois já sabemos a reviravolta trágica que está logo por vir e, como se não bastasse, a trilha sonora pontua um tom de melancolia que aumenta a tensão.

Filmes-catástrofe também começam assim, mas a maneira como Oliver Stone filmará a tragédia subseqüente, alternando entre o não-mostrar (apenas sugerir) e o mostrar somente o que se pode ver da perspectiva do indivíduo (o que é bem pouco), arremessa o seu filme a léguas de distância dos de “catástrofe” tradicionais, que, ao mostrar tudo explicitamente, numa perspectiva abrangente e épica, mais faz por massagear a nossa fascinação mórbida e apocalíptica do que fazer-nos sentir e refletir (sobre) a experiência humana dos fatos.

De acordo com isso, podemos afirmar que As Torres Gêmeas é um ótimo filme. A sombra baixa do avião que estava para atingir a torre, vista apenas de relance pelo personagem na rua (ele nem soube o que viu), os sons terríveis do impacto e da destruição subseqüente, a força policial sem quase idéia alguma do que acontecera e ainda estava acontecendo, tudo isso é cinema de grande qualidade, e ajuda o espectador a compartilhar a ansiedade, o medo, a angústia e o terror com os personagens na tela. Stone mantém-se fiel a sua proposta de focalizar a dimensão humana / individual; o filme não mostra quase nada do atentado, concentrando-se nas reações das pessoas à sombra antevista da História. As únicas imagens diretas das duas torres após os impactos são mostradas nos monitores de televisão constantemente ligados nos noticiários que todos assistem. Assim, Oliver Stone faz a sua documentação, sem atiçar o fascínio apocalíptico no espectador – o que poderia acontecer, caso ele mostrasse a destruição das duas torres diretamente (filmadas com a própria câmera da película), seja reconstruindo a cena com efeitos especiais, seja mostrando as próprias imagens do acontecimento real (que, a bem da fascinação mórbida e apocalíptica, dispensam qualquer reconstituição com efeitos visuais).

O terror aumenta quando os dois policiais protagonistas, John McLoughlin (Nicholas Cage) e William Jimeno (Michael Pena), são soterrados pelo edifício desabado. A sensação de claustrofobia é imensa e os sustos provocados pelos outros pequenos desabamentos e explosões enquanto os dois estão ali, enterrados vivos, deixam o espectador quase tão desesperado quanto os dois personagens. Os policiais portuários têm, então, que buscar quaisquer maneiras e razões para sobreviver. Conseguem, a muito custo, apoiados psiquicamente um no outro e em suas famílias. São momentos bem dramáticos. Tirando algumas (poucas) cenas – as quais só aparecerão tardiamente no filme – que mostram uma visão e repercussão mais abrangentes da tragédia, como a reação de George Bush e de algumas pessoas indignadas com os ataques, poderíamos defender a idéia de que o atentado foi só um pretexto para Oliver Stone filmar o drama de dois homens acidentados.

Do lado de fora, algumas cenas dos escombros do World Trade Center, na mistura de concreto e ferros retorcidos ainda de pé no que restou dos edifícios, lembram bastante o famoso quadro “Europe After the Rain”, de Max Ernst, que retrata as ruínas européias da 2ª Guerra Mundial.

É importante que alguém, algum dia, faça uma obra cinematográfica de ficção discutindo a fundo a dimensão política dos atentados de 11 de setembro de 2001, numa chave analítica e crítica, algo para servir de filme definitivo sobre esse grande tema. Se não foi Oliver Stone, contrariando o que poderíamos esperar, haverá de ser alguém – pelo menos, confiamos que seja assim. Apesar disso, As Torres Gêmeas tem o seu valor como drama (que também deve ser mostrado em um filme) de pessoas inocentes, vítimas repentinas de uma ação covarde que só o adjetivo – “terrorista” – já basta para dar idéia de sua natureza e caráter. Será que deixar-nos comover com isso, sentir aquela compaixão e indignação humanas perante o sofrimento, especialmente o provocado por atos de violência, significa que estejamos sendo apolíticos, “patriotas americanizados”, reacionários, alienados, ou qualquer outra coisa de que só um espírito malicioso poderia nos acusar?

segunda-feira, outubro 02, 2006

Filmes Que Esperamos: "Inland Empire"


Inland Empire (ainda sem título em Português). EUA, Polônia, França, 2006. 172 min.
Direção: David Lynch.
Elenco: Harry Dean Stanton, Jeremy Irons, Julia Ormond, Justin Theroux, Laura Dern, Michael Paré, Naomi Watts, William H. Macy, Mary Steenburgen, Nastassja Kinski, Laura Harring.
Data de estréia
: Sem data de estréia no Brasil. A primeira exibição nos EUA acontecerá no New York Film Festival, em 08 e 09 de outubro de 2006. O filme ainda não tem distribuidor nos EUA.

David Lynch recebeu recentemente o Leão de Ouro no Festival de Veneza pelo conjunto da sua obra. “Inland Empire” teve sua primeira première lá. Durante a conferência de imprensa, um jornalista, depois de ver o filme, perguntou, irônico: "Como é que tem passado estes dias, Mr. Lynch?" O jornalista deve ter pensado que, para fazer um filme desses, David Lynch não devia andar muito senhor de suas faculdades mentais. O diretor respondeu, rapidamente, que tem passado bem, e agradeceu. Em uma outra entrevista – fora do Festival – o cineasta confessa: "Uma vez fui consultar um psicanalista, um homem delicioso, e perguntei-lhe se a análise podia afetar a minha criatividade. Ele respondeu-me honestamente que isso podia acontecer. Então despedi-me, apertei-lhe a mão e deixei o consultório".

Esses “causos” já nos dão idéia do que esperar do mais novo rebento de Lynch: “Inland Empire”. Sabendo apenas a premissa básica do filme, David Lynch começou a rodá-lo sem roteiro algum. Ele escrevia cada cena apenas momentos antes de realizá-la. Levou 3 anos para fazer o filme, mesmo no formato DV. Aliás, este é o primeiro filme do diretor em Digital Vídeo. Ele declarou que não vai mais filmar em película; está entusiasmadíssimo com as novas tecnologias digitais.

O que pode-se afirmar sobre a intriga é o seguinte: a atriz casada Nikki (Laura Dern, que já trabalhou com Lynch em Coração Selvagem, de 1990, e Veludo Azul, de 1987) recebe um papel em um filme a ser dirigido por Kingsley (Jeremy Irons). Ela descobre, em seguida, que esse filme é o remake de uma outra fita, inacabada, pois os atores protagonistas tinham sido assassinados durante o trabalho. O par romântico de Nikki chama-se Devon (Justin Theroux, o azarado cineasta em Cidade dos Sonhos, de 2002). A personagem de Nikki é Sue, a de Devon é Billy. Os dois atores, na “vida real”, acabam indo para a cama um com o outro. Então, começam a chamar um ao outro pelos nomes de seus personagens no filme. Daí em diante, é impossível saber se Nikki é na verdade Nikki ou Sue...

O nome “Inland Empire” faz referência a uma região no sul da Califórnia que reúne as cidades mais antigas do lugar. A maior parte do filme foi rodada na Polônia, com atores locais. Alguma coisa também foi filmada em Los Angeles, mas é impossível determinar o quanto foi feito na região californiana de “Inland Empire”, pois Lynch nunca obteve as permissões necessárias para filmar em interiores e exteriores.

Esta é a continuidade das experiências temáticas e formais do diretor – onde se destacam os anteriores Cidade dos Sonhos e A Estrada Perdida (1996). Mas “Inland Empire” parece ser ainda mais radical, emulando o experimentalismo obsessivo de seu primeiro filme, Eraserhead (1977). Tudo indica que o filme mais recente do cineasta de Homem-Elefante (1983) é uma coleção não-roteirizada de imagens e fatos bizarros e de um surrealismo alucinatório. Por exemplo: a atriz Naomi Watts (de Cidade dos Sonhos) dá voz a um personagem com corpo humano e cabeça de coelho. Reconhecemos também, na sinopse, a discussão metalingüística sobre o universo do cinema, particularmente o de Hollywood, também presente em Cidade dos Sonhos.

O título “Inland Empire” não se refere apenas à região californiana, mas também ao inconsciente. Tal qual em A Estrada Perdida e Cidade dos Sonhos, o filme mostra a fragmentação e desintegração da psique do protagonista, num processo que leva a convulsivos deslocamentos no espaço e no tempo. David Lynch afirma:

“The big self is mondo stable. But the small self — we’re blowing about like dry leaves in the wind.” Tradução: “O grande eu (supomos que ele esteja se referindo ao Consciente) tem a solidez e a estabilidade do mundo. Mas o pequeno eu (o Inconsciente) – nós vagamos à deriva como folhas secas ao vento.”

O New York Times chamou o filme de “uma visão de pesadelo da fábrica dos sonhos”. O jornal cita uma cena em que o personagem, perfurado no intestino com uma chave de fenda, corre pela Hollywood Boulevard, arrastando atrás de si uma trilha sanguinolenta.

Numa entrevista de 2005, Lynch disse:

“I’ve never worked on a project in this way before. I don’t know exactly how this thing will finally unfold... This film is very different because I don’t have a script. I write the thing scene by scene and much of it is shot and I don’t have much of a clue where it will end. It’s a risk, but I have this feeling that because all things are unified, this idea over here in that room will somehow relate to that idea over there in the pink room.” Tradução: “Eu nunca trabalhei em um projeto assim antes. Não sei exatamente como isso vai sair... Este filme é bem diferente porque eu não tenho um “script”. Eu escrevo a coisa cena a cena, muita coisa é filmada, e eu não sei aonde vai dar. É um risco, mas eu tenho a sensação de que, já que todas as coisas estão unidas, uma idéia aqui nesta sala vai de alguma maneira se relacionar àquela outra idéia na sala cor de rosa (sic).”

É esperar para ver.


Filmes Que Esperamos: "Os Infiltrados"



Os Infiltrados (“The Departed”) EUA, 2006, 152 min.
Warner Bros. Pictures
Uma produção Plan B/Initial Entertainment Group/Vertigo Entertainment em associação com Media Asia Films
Direção: Martin Scorsese
Roteiro: William Monahan
Baseado no filme "Infernal Affairs", dirigido por: Alan Mak e Andrew Lau Wai Keung
Produção: Brad Pitt, Brad Grey, Graham King
Produção Executiva: Roy Lee, Doug Davison, G. Mac Brown, Kristen Hahn, Gianni Nunnari
Direção de Fotografia: Michael Ballhaus
Design de Produção: Kristi Zea
Música: Howard Shore
Co-produção: Joseph Reidy, Michael Aguilar, Rick Schwartz
Edição: Thelma Schoonmaker
Elenco: Leonardo DiCaprio (Billy Costigan), Matt Damon (Colin Sullivan), Jack Nicholson (Frank Costello), Martin Sheen (Queenan), Vera Farmiga (Madeleine), Mark Wahlberg (Dignam), Anthony Anderson (Brown), Ray Winstone (Mr. French), Alec Baldwin (Ellerby), John Cenatiempo (Guinea), Lyman Chen (Robert Yan), Kevin Corrigan (Sobrinho de Billy), Buddy Dolan (Sean), Shay Duffin (Jimmy), Zachary Pauliks (Billy jovem), David O'Hara (Fitzy), Robert Wahlberg (Joyce).
Data de estréia no Brasil: 10 de novembro de 2006.

Remake de um famoso sucesso de Hong-Kong de 2002 (“The Infernal Affairs”), o filme se passa na zona sul de Boston, onde o departamento de polícia de Massachusetts encontra-se numa guerra aberta para derrubar o crime organizado. A chave é acabar “por dentro” com o reinado do poderoso chefão de origem irlandesa Frank Costello (Jack Nicholson, no papel originalmente oferecido a Robert De Niro e recusado por ele). Um jovem cadete, Billy Costigan (Leonardo DiCaprio), que cresceu na zona sul de Boston, é recrutado para infiltrar a gangue de Costello. Enquanto Billy está trabalhando para ganhar a confiança de Costello, outro jovem policial que veio “das ruas”, Colin Sullivan (Matt Damon), está rapidamente ascendendo na hierarquia da polícia estadual. Ganhando uma posição na unidade de investigações especiais, Colin fica entre a elite de oficiais cuja missão é derrubar Costello. Mas o que os seus superiores não sabem é que Colin está trabalhando para Costello, mantendo o chefão do crime por dentro da polícia e um passo à frente dela. Cada homem torna-se, então, profundamente consumido por sua vida dupla, colhendo informações sobre os planos e contra-planos da organização e das operações em que cada um se infiltrou. Mas, quando fica claro tanto para os gângsters quanto para a polícia que eles têm um espião em seu meio, Billy e Colin descobrem-se em constante perigo de serem pegos e expostos para o inimigo. Assim, cada um precisa apressar-se para descobrir a identidade um do outro para salvar-se a si mesmo. Ambos estão no inferno de uma terra de ninguém, entre o céu e o inferno. O título do chinês original “Mou gaan dou” refere-se ao mais baixo nível do inferno no budismo. (Sinopse traduzida da página oficial da produção)

O filme está sendo saudado como a “volta” de Scorsese, após produções que mais parecem querer agradar aos votantes da Academia que elegerão os ganhadores dos “Oscars” – particularmente Gangues de Nova York (2002) e O Aviador (2004). Os Infiltrados, pela violência e pela profundidade psicológica, está mais para Táxi Driver (1976), Os Bons Companheiros (1990), Cabo do Medo (1991) e Casino (1995). Tem-se, nesta mais recente obra, a crime-fiction com ares de tragédia. O roteirista é William Monahan (o mesmo de Cruzada). Essa história, envolvendo os choques entre dever e lealdade, honra, o individual e o coletivo, traição, etc., em uma trama onde as diferentes linhas de personagens e de ação se cruzam como que em uma imagem refletida por espelho (onde o “outro” é o “mesmo”, porém, com lados invertidos) é comum nos filmes policiais de origem oriental – basta ver John Woo – e também apreciada por Quentin Tarantino (Cães de Aluguel) e Michael Mann (Fogo Contra Fogo). No geral, a temática e a estruturação narrativa baseadas no duplo, é algo bem apreciado não só em “policiais”, mas também nos westerns, tendo sua origem na literatura romântica onde honra e lealdade – e seus dilemas e contradições – era preocupação preponderante.

Já podemos ver que o título em Português é bem “chinfrim”; o inglês é melhor, mais dramático profundo e plurissignificativo: os partidos, os idos, os enviados, os despachados, os afastados, os passados (no sentido de tempo) e, o que é a melhor conotação, os mortos. Por mais que seja difícil a tradução da polissemia de departed de língua para língua, bem que poderiam ter escolhido um título português “unissêmico” mas de forte significação dramática, não necessariamente começando com “os” + algum adjetivo.

É esperar para ver.