Reproduzo aqui um trabalho que escrevi há três anos atrás para uma matéria que fiz (“História do Audiovisual II”) na ECA-USP. O tema escolhido foi o filme Absolutamente Certo (1957), estréia na direção de Anselmo Duarte, cuja obra mais famosa e importante é O Pagador de Promessas (1962).
As relações entre cinema e TV dão muito assunto para discussão. É comum dizer que a televisão no Brasil, a partir dos anos 50, arrancou à sétima arte uma parte considerável do seu público. Apesar disso (ou por isso mesmo) o diálogo entre os dois meios é intenso: em alguns lugares, formaram-se parcerias produtivas que fazem bastante sucesso; na estética, a linguagem da TV assimilou a do cinema e, posteriormente, o foi o cinema que assumiu o estilo televisivo. Mas e quanto às relações temáticas? Não conheço, no cinema brasileiro, uma fita que trate do universo da televisão, do modo como faz Anselmo Duarte em Absolutamente Certo.
Nesse filme de estréia (1957), o diretor se faz pioneiro em mostrar o que é a TV, invenção maravilhosa que acabara de surgir, e qual o seu impacto na sociedade, numa chave de crônica humorística. Tudo bem colocado, pesa um elogio ao novo meio audiovisual, mas sem deixar de lado aspectos negativos, tratados com o humanismo característico de O Pagador de Promessas.
A TV está no filme, e o filme está na TV: Absolutamente Certo abre e fecha com as luzes de um estúdio de televisão, manipuladas pelos técnicos. Mas a identificação entre o filme e a atração televisiva não pára por aí. Em seguida, vemos uma câmera de TV se aproximar até quase tocar na do próprio filme, enquanto aparecem na tela os créditos. Coloquemo-nos numa posição imaginária onde possamos ver as duas câmeras, uma diante da outra, perscrutando-se mutuamente, como duas espécies de animais que desconhecem uma à outra mas que se sentem familiares; perceberemos o impacto significativo dessa imagem e do filme que ela anuncia.
Em vários momentos, podemos ver como era a TV brasileira nos anos 50. A começar pelos “quiz show”, do tipo do programa justamente intitulado “Absolutamente Certo”, que premia o chamado “conhecimento inútil” e fazem muito sucesso até hoje – veja-se, por exemplo, o Show do Milhão. O filme também mostra de importante:
1. O dilema (bastante atual) dos programadores de TV entre o “apelativo” – que aumenta a audiência e agrada aos anunciantes e patrocinadores (dos quais a emissora depende) – e a preocupação por uma cultura e educação mais elevadas. Esse tema aparece na cena (apesar de curta) em que se discute a importância e o interesse de se levar ao ar um homem que tem toda a lista telefônica decorada na cabeça;
2. A vaidade das primeiras estrelas dos programas, o nascimento do “star system” da TV nacional, na cena da cantora que dá “chiliques” por causa de seu vestido excessivamente apertado. O personagem simples (Zé do Lino) interpretado pelo próprio Anselmo Duarte considera louca essa mulher.
3. As imensas e pesadas câmeras de TV, que não tinham “zoom”, e precisavam se deslocar no espaço para fazer tomadas mais aproximadas; o aparelho receptor nos domicílios familiares, que custava a ter uma imagem de qualidade satisfatória na recepção, merecendo por isso a reclamação da personagem engraçada de Dercy Gonçalves.
Quanto às relações entre TV e sociedade, tem-se representado no filme o fenômeno dos “televizinhos”, assim como a dificuldade de se comprar um aparelho – na cena em que o marido da personagem de Dercy se refere à compra em prestações do televisor (na época, havia uma política de crédito ao consumidor na compra de aparelhos de televisão, tudo para estimular a expansão da TV no Brasil). Um momento significativo é quando a esposa do italiano Rinaldi vê, no programa “Absolutamente Certo”, Zé do Lino recitar de cor o endereço e o número do telefone de seu marido. Quando ela comunica ao último esse fato, a reação assustada do pobre homem, que até então apenas lia o seu jornal, é bem engraçada para nós; mas coloquemo-nos no lugar daquele homem, naquela época, aos se achar “descoberto” pela TV em sua própria casa. Rinaldi, ao telefone com o apresentador do programa (ao vivo, pois ainda não existia VT) para corrigir o número do seu telefone – indevidamente anotado pela produção –, fala alto e gesticula para o televisor, interagindo com o aparelho como se fosse ele o seu interlocutor.
Contudo, o melhor deste filme está no protagonista Zé do Lino (Anselmo Duarte). Já é absurdo o fato de ele decorar a lista telefônica mas não possuir um aparelho de telefone. Interrogado com surpresa pela secretária da emissora de TV (onde ele participará do programa de perguntas e respostas “Absolutamente Certo”), ele responde com aquela calma...: “Arrumar lista é fácil, mas telefone nesta terra...” É a visão social de Anselmo Duarte (tanto do personagem vivido por ele quanto dele como cineasta).
Zé do Lino é o homem simples, comum, repentinamente jogado no distante mundo do “showbusiness”: a timidez e o embaraço dele são características. Porém, mesmo imerso no universo da vaidade e manipulado pelos “maus” (os apostadores do programa), ele se mantém file aos bons e tradicionais valores, recusa propostas indecentes, não se acostuma com riqueza e fama, é espiritualista – veja-se a opinião que tem sobre a beleza interior da namorada – e ainda por cima sofre com a intolerância dos sogros. Enfim, ele é o autêntico “bom rapaz” da canção de Wanderley Cardoso, à maneira antiga.
A apresentação dele, no começo do filme, é bem significativa, tal como a dos grandes personagens narrativos: enquanto a família toda se espreme ao redor do televisor, com a atenção inabalavelmente fixa, a câmera abre caminho por entre eles e vai descobrir Zé do Lino e sua namorada lá no fundo da sala, num abraço apaixonado e completamente alheios a tudo o que se passa ao redor. Ou seja, Zé do Lino é o homem simples e sábio que não se deixa dominar pelo “canto de sereia” da TV, novidade na vida daquelas pessoas. No entanto, esse momento também vai ser maculado pela TV-destruidora-das-relações-familiares, quando – na mesma cena – a família interrompe o namoro dos dois para sugerir a Zé que use a sua inteligência para enriquecer no programa “Absolutamente Certo”.
O lado “bom rapaz” de Anselmo Duarte (desta vez como diretor) fica evidente na ligação entre as cenas da festinha “rock and roll” (novidade “subversiva” da época) dos bandidos e o “jura” (famosa canção popular brasileira antiga) cantado por Dercy Gonçalves na festa em casa da namorada de Zé. É definitivamente um filme familiar. A família inteira é levada para a frente das câmeras de TV, na sarabanda do final, e a frase de Dercy para a câmera (de TV, que neste momento se mistura à do próprio filme) ressalta a defesa da família que Anselmo propõe.
A crítica social humanista de Anselmo Duarte adquire beleza estética fenomenal na cena em que um cantor negro interpreta o número “Onde estou?”, promovido pela emissora durante um jantar, com direito a todo um cenário teatral. “Onde estou?” é o que parece perguntar a si mesmo Zé do Lino no mundo louco da TV, já que, por natureza, ele não pertence àquele meio (ele declara ao apresentador que só participa do programa para ajudar a família); “Onde estou?” é o que parece perguntar o negro que até hoje luta para conquistar um lugar digno no Audiovisual – vale lembrar que o cenário onde aquele artista negro canta, durante o jantar de gala, é decorado com elementos da natureza selvagem. Após um movimento para trás, a câmera revela que a “selva” onde o cantor negro se apresenta está instalada num salão de jantar luxuoso; eis o espetáculo nacional. São essas antíteses que revelam as contradições sociais brasileiras, a “inclusão excludente”, as desigualdades e os preconceitos.
Absolutamente Certo é um grande filme de entretenimento com interessantes e importantes coisas “a mais”.
Absolutamente Certo (1957)
Gênero: Comédia
As relações entre cinema e TV dão muito assunto para discussão. É comum dizer que a televisão no Brasil, a partir dos anos 50, arrancou à sétima arte uma parte considerável do seu público. Apesar disso (ou por isso mesmo) o diálogo entre os dois meios é intenso: em alguns lugares, formaram-se parcerias produtivas que fazem bastante sucesso; na estética, a linguagem da TV assimilou a do cinema e, posteriormente, o foi o cinema que assumiu o estilo televisivo. Mas e quanto às relações temáticas? Não conheço, no cinema brasileiro, uma fita que trate do universo da televisão, do modo como faz Anselmo Duarte em Absolutamente Certo.
Nesse filme de estréia (1957), o diretor se faz pioneiro em mostrar o que é a TV, invenção maravilhosa que acabara de surgir, e qual o seu impacto na sociedade, numa chave de crônica humorística. Tudo bem colocado, pesa um elogio ao novo meio audiovisual, mas sem deixar de lado aspectos negativos, tratados com o humanismo característico de O Pagador de Promessas.
A TV está no filme, e o filme está na TV: Absolutamente Certo abre e fecha com as luzes de um estúdio de televisão, manipuladas pelos técnicos. Mas a identificação entre o filme e a atração televisiva não pára por aí. Em seguida, vemos uma câmera de TV se aproximar até quase tocar na do próprio filme, enquanto aparecem na tela os créditos. Coloquemo-nos numa posição imaginária onde possamos ver as duas câmeras, uma diante da outra, perscrutando-se mutuamente, como duas espécies de animais que desconhecem uma à outra mas que se sentem familiares; perceberemos o impacto significativo dessa imagem e do filme que ela anuncia.
Em vários momentos, podemos ver como era a TV brasileira nos anos 50. A começar pelos “quiz show”, do tipo do programa justamente intitulado “Absolutamente Certo”, que premia o chamado “conhecimento inútil” e fazem muito sucesso até hoje – veja-se, por exemplo, o Show do Milhão. O filme também mostra de importante:
1. O dilema (bastante atual) dos programadores de TV entre o “apelativo” – que aumenta a audiência e agrada aos anunciantes e patrocinadores (dos quais a emissora depende) – e a preocupação por uma cultura e educação mais elevadas. Esse tema aparece na cena (apesar de curta) em que se discute a importância e o interesse de se levar ao ar um homem que tem toda a lista telefônica decorada na cabeça;
2. A vaidade das primeiras estrelas dos programas, o nascimento do “star system” da TV nacional, na cena da cantora que dá “chiliques” por causa de seu vestido excessivamente apertado. O personagem simples (Zé do Lino) interpretado pelo próprio Anselmo Duarte considera louca essa mulher.
3. As imensas e pesadas câmeras de TV, que não tinham “zoom”, e precisavam se deslocar no espaço para fazer tomadas mais aproximadas; o aparelho receptor nos domicílios familiares, que custava a ter uma imagem de qualidade satisfatória na recepção, merecendo por isso a reclamação da personagem engraçada de Dercy Gonçalves.
Quanto às relações entre TV e sociedade, tem-se representado no filme o fenômeno dos “televizinhos”, assim como a dificuldade de se comprar um aparelho – na cena em que o marido da personagem de Dercy se refere à compra em prestações do televisor (na época, havia uma política de crédito ao consumidor na compra de aparelhos de televisão, tudo para estimular a expansão da TV no Brasil). Um momento significativo é quando a esposa do italiano Rinaldi vê, no programa “Absolutamente Certo”, Zé do Lino recitar de cor o endereço e o número do telefone de seu marido. Quando ela comunica ao último esse fato, a reação assustada do pobre homem, que até então apenas lia o seu jornal, é bem engraçada para nós; mas coloquemo-nos no lugar daquele homem, naquela época, aos se achar “descoberto” pela TV em sua própria casa. Rinaldi, ao telefone com o apresentador do programa (ao vivo, pois ainda não existia VT) para corrigir o número do seu telefone – indevidamente anotado pela produção –, fala alto e gesticula para o televisor, interagindo com o aparelho como se fosse ele o seu interlocutor.
Contudo, o melhor deste filme está no protagonista Zé do Lino (Anselmo Duarte). Já é absurdo o fato de ele decorar a lista telefônica mas não possuir um aparelho de telefone. Interrogado com surpresa pela secretária da emissora de TV (onde ele participará do programa de perguntas e respostas “Absolutamente Certo”), ele responde com aquela calma...: “Arrumar lista é fácil, mas telefone nesta terra...” É a visão social de Anselmo Duarte (tanto do personagem vivido por ele quanto dele como cineasta).
Zé do Lino é o homem simples, comum, repentinamente jogado no distante mundo do “showbusiness”: a timidez e o embaraço dele são características. Porém, mesmo imerso no universo da vaidade e manipulado pelos “maus” (os apostadores do programa), ele se mantém file aos bons e tradicionais valores, recusa propostas indecentes, não se acostuma com riqueza e fama, é espiritualista – veja-se a opinião que tem sobre a beleza interior da namorada – e ainda por cima sofre com a intolerância dos sogros. Enfim, ele é o autêntico “bom rapaz” da canção de Wanderley Cardoso, à maneira antiga.
A apresentação dele, no começo do filme, é bem significativa, tal como a dos grandes personagens narrativos: enquanto a família toda se espreme ao redor do televisor, com a atenção inabalavelmente fixa, a câmera abre caminho por entre eles e vai descobrir Zé do Lino e sua namorada lá no fundo da sala, num abraço apaixonado e completamente alheios a tudo o que se passa ao redor. Ou seja, Zé do Lino é o homem simples e sábio que não se deixa dominar pelo “canto de sereia” da TV, novidade na vida daquelas pessoas. No entanto, esse momento também vai ser maculado pela TV-destruidora-das-relações-familiares, quando – na mesma cena – a família interrompe o namoro dos dois para sugerir a Zé que use a sua inteligência para enriquecer no programa “Absolutamente Certo”.
O lado “bom rapaz” de Anselmo Duarte (desta vez como diretor) fica evidente na ligação entre as cenas da festinha “rock and roll” (novidade “subversiva” da época) dos bandidos e o “jura” (famosa canção popular brasileira antiga) cantado por Dercy Gonçalves na festa em casa da namorada de Zé. É definitivamente um filme familiar. A família inteira é levada para a frente das câmeras de TV, na sarabanda do final, e a frase de Dercy para a câmera (de TV, que neste momento se mistura à do próprio filme) ressalta a defesa da família que Anselmo propõe.
A crítica social humanista de Anselmo Duarte adquire beleza estética fenomenal na cena em que um cantor negro interpreta o número “Onde estou?”, promovido pela emissora durante um jantar, com direito a todo um cenário teatral. “Onde estou?” é o que parece perguntar a si mesmo Zé do Lino no mundo louco da TV, já que, por natureza, ele não pertence àquele meio (ele declara ao apresentador que só participa do programa para ajudar a família); “Onde estou?” é o que parece perguntar o negro que até hoje luta para conquistar um lugar digno no Audiovisual – vale lembrar que o cenário onde aquele artista negro canta, durante o jantar de gala, é decorado com elementos da natureza selvagem. Após um movimento para trás, a câmera revela que a “selva” onde o cantor negro se apresenta está instalada num salão de jantar luxuoso; eis o espetáculo nacional. São essas antíteses que revelam as contradições sociais brasileiras, a “inclusão excludente”, as desigualdades e os preconceitos.
Absolutamente Certo é um grande filme de entretenimento com interessantes e importantes coisas “a mais”.
Absolutamente Certo (1957)
Gênero: Comédia
Duração: 95 min
Origem: Brasil
Estúdio: Cinedistri
Direção: Anselmo Duarte
Produção: Oswaldo Massaini
Elenco: Anselmo Duarte (Zé do Lino), Dercy Gonçalves (Bela), Odete Lara (Odete), Aurélio Teixeira (Raul), Maria Dilnah (Gina), Murilo Amorim Correia (Guilherme), Suzy Arruda (Mulher do Luciano), Jaime Barcellos (Capanga)
Elenco: Anselmo Duarte (Zé do Lino), Dercy Gonçalves (Bela), Odete Lara (Odete), Aurélio Teixeira (Raul), Maria Dilnah (Gina), Murilo Amorim Correia (Guilherme), Suzy Arruda (Mulher do Luciano), Jaime Barcellos (Capanga)
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