terça-feira, outubro 03, 2006

As Torres Gêmeas

É muito fácil falar mal do novo filme de Oliver Stone. Tão fácil que se corre o sério risco de cair nos mesmos e velhos lugares-comuns. Podemos dizer – e de fato se diz muitas dessas coisas – que o diretor absteve-se da dimensão política dos trágicos acontecimentos de 11 de setembro de 2001, ou que seu novo filme é mais um subproduto do reacionarismo da era Bush pós 11 de setembro, ou ainda que ele é muito (no termo magnificamente cunhado pelo poeta José Paulo Paes) “patriotário”.

No entanto, ao fazer afirmações nessa linha, deve-se ter muito claro o seguinte discernimento: que medida desse raciocínio nasce de uma visão aberta do filme em questão e que medida dele pode ser atribuída às nossas ideologias ou mesmo nossos preconceitos. Sim, porque uma coisa seja dita: temos preconceitos bem fortes, às vezes somos tão intolerantes quanto aqueles nos quais gostamos de apontar tais defeitos. Quando digo “nós”, refiro-me aos (alguns) brasileiros, ou, em uma acepção mais pertinente, aos não-norte-americanos. Reconheçamos a nossa fascinação mórbida pelo atentado ao World Trade Center e reconheçamos, principalmente, a alegria que alguns de nós sentimos (eu, particularmente, vi essa reação em algumas pessoas), expressa em sentenças do tipo: “Bem feito! Agora esses americanos estão pagando!”; “Quem semeia tempestade colhe furacão!”; etc. Essa alegria, na maior parte das vezes, é contida; mas já vi manifestações fervorosas. Certa foto do rosto de Osama Bin Laden já quase um ícone, tanto quanto a famosa imagem facial de Che Guevara.

Tamanho anti-americanismo – assim como qualquer outro “anti” carregado de uma dose mínima de intolerância e preconceito – deve ser deixado de lado quando virmos (se virmos) As Torres Gêmeas (“World Trade Center”, EUA, 2006). Muitas coisas do que se diz a respeito desse filme só revelam o velho problema de se acompanhar uma produção cultural com o olhar turvo sob a grossa camada de ideologias, certas disposições emocionais, preconceitos e expectativas que ostentamos pesada e soberbamente como óculos cerebrais que mais nos deixam míopes do que melhoram nossa visão. Ao contrário disso, deve-se ter a visão natural e limpa para reconhecer o que uma obra cultural se propõe a nos oferecer e se ela logra tal intento, de fato.

Por um lado, são naturais e pertinentes as críticas que se fazem da mais recente produção de Oliver Stone, baseadas em nossas expectativas: é estranho que o realizador de Platoon (1986), Nascido em 4 de Julho (1989), JFK (1991) e Assassinos por Natureza (1994), notabilizado por uma análise social polemizante e combativa, apresente este filme inspirado pelo 11/09, um acontecimento de forte conteúdo histórico, polêmico e – o que é mais interessante, recentíssimo, com uma visão apolítica dos fatos. Não há muita coerência com o resto de sua obra. Mas, a não ser por esse ponto, o filme não merecerá ser tão detratado. E, além disso, certas críticas que se fazem são incompreensíveis ; eu não sei que filme a pessoa assistiu, mas não foi, certamente, As Torres Gêmeas.

Enfim, chega de procurar neste filme o que ele não tem; que tal, para variar, observar o que ele é, intrinsecamente? As Torres Gêmeas é um filme de terror. Sim, na medida em que o terror é um sentimento / sensação despertado e conduzido por elementos e situações ambientais que cutucam e ferem o mais fundo de nosso íntimo – Oliver Stone estreou como diretor de longas no gênero dos sustos e do horror, com Seizure (1974) e o interessantíssimo A Mão (1978). O início do filme é como o de muitas obras de terror: os personagens são apresentados em diversas cenas de sua vida cotidiana e, na medida em que é rotineira, tranqüila. Mas nós não nos iludimos nem nos deixamos levar, pois já sabemos a reviravolta trágica que está logo por vir e, como se não bastasse, a trilha sonora pontua um tom de melancolia que aumenta a tensão.

Filmes-catástrofe também começam assim, mas a maneira como Oliver Stone filmará a tragédia subseqüente, alternando entre o não-mostrar (apenas sugerir) e o mostrar somente o que se pode ver da perspectiva do indivíduo (o que é bem pouco), arremessa o seu filme a léguas de distância dos de “catástrofe” tradicionais, que, ao mostrar tudo explicitamente, numa perspectiva abrangente e épica, mais faz por massagear a nossa fascinação mórbida e apocalíptica do que fazer-nos sentir e refletir (sobre) a experiência humana dos fatos.

De acordo com isso, podemos afirmar que As Torres Gêmeas é um ótimo filme. A sombra baixa do avião que estava para atingir a torre, vista apenas de relance pelo personagem na rua (ele nem soube o que viu), os sons terríveis do impacto e da destruição subseqüente, a força policial sem quase idéia alguma do que acontecera e ainda estava acontecendo, tudo isso é cinema de grande qualidade, e ajuda o espectador a compartilhar a ansiedade, o medo, a angústia e o terror com os personagens na tela. Stone mantém-se fiel a sua proposta de focalizar a dimensão humana / individual; o filme não mostra quase nada do atentado, concentrando-se nas reações das pessoas à sombra antevista da História. As únicas imagens diretas das duas torres após os impactos são mostradas nos monitores de televisão constantemente ligados nos noticiários que todos assistem. Assim, Oliver Stone faz a sua documentação, sem atiçar o fascínio apocalíptico no espectador – o que poderia acontecer, caso ele mostrasse a destruição das duas torres diretamente (filmadas com a própria câmera da película), seja reconstruindo a cena com efeitos especiais, seja mostrando as próprias imagens do acontecimento real (que, a bem da fascinação mórbida e apocalíptica, dispensam qualquer reconstituição com efeitos visuais).

O terror aumenta quando os dois policiais protagonistas, John McLoughlin (Nicholas Cage) e William Jimeno (Michael Pena), são soterrados pelo edifício desabado. A sensação de claustrofobia é imensa e os sustos provocados pelos outros pequenos desabamentos e explosões enquanto os dois estão ali, enterrados vivos, deixam o espectador quase tão desesperado quanto os dois personagens. Os policiais portuários têm, então, que buscar quaisquer maneiras e razões para sobreviver. Conseguem, a muito custo, apoiados psiquicamente um no outro e em suas famílias. São momentos bem dramáticos. Tirando algumas (poucas) cenas – as quais só aparecerão tardiamente no filme – que mostram uma visão e repercussão mais abrangentes da tragédia, como a reação de George Bush e de algumas pessoas indignadas com os ataques, poderíamos defender a idéia de que o atentado foi só um pretexto para Oliver Stone filmar o drama de dois homens acidentados.

Do lado de fora, algumas cenas dos escombros do World Trade Center, na mistura de concreto e ferros retorcidos ainda de pé no que restou dos edifícios, lembram bastante o famoso quadro “Europe After the Rain”, de Max Ernst, que retrata as ruínas européias da 2ª Guerra Mundial.

É importante que alguém, algum dia, faça uma obra cinematográfica de ficção discutindo a fundo a dimensão política dos atentados de 11 de setembro de 2001, numa chave analítica e crítica, algo para servir de filme definitivo sobre esse grande tema. Se não foi Oliver Stone, contrariando o que poderíamos esperar, haverá de ser alguém – pelo menos, confiamos que seja assim. Apesar disso, As Torres Gêmeas tem o seu valor como drama (que também deve ser mostrado em um filme) de pessoas inocentes, vítimas repentinas de uma ação covarde que só o adjetivo – “terrorista” – já basta para dar idéia de sua natureza e caráter. Será que deixar-nos comover com isso, sentir aquela compaixão e indignação humanas perante o sofrimento, especialmente o provocado por atos de violência, significa que estejamos sendo apolíticos, “patriotas americanizados”, reacionários, alienados, ou qualquer outra coisa de que só um espírito malicioso poderia nos acusar?

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