quarta-feira, outubro 29, 2008

Bioscópio


Filme exibido na 32ª Mostra de Cinema de São Paulo.

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Isto não é um filme. Isto é uma experiência. Pouquíssimas vezes eu sentira antes o poder do cinema, nos recônditos mais profundos de meu corpo e de minha alma, alterando meu estado de consciência e minhas sensações físicas (visão, audição, etc) de muitas maneiras, sutis e maliciosas ao mesmo tempo, maneiras um tanto quanto vagas, mas com a certeza de algo que está lá, de fato. É difícil descrever o fenômeno, mas garanto que se trata de algo transformador, transfigurador, epifânico. Bioscópio (Índia, 2008, dir.: K. M. Madhusudhanan) é uma experiência estética, lisérgica e mística – a um só tempo. Eu nunca tinha visto antes um filme indiano (será que todos são assim?), tampouco sei de quem se trata Madhusudhanan; mas a sua câmera, o seu olhar...

São dotados de um entusiasmo, no sentido etimológico (grego antigo) da palavra: o artista aqui é possuído por alguma divindade, que lhe revela e o faz revelar a nós realidades escondidas por trás do véu da nossa própria realidade – que, no entanto, trata-se dela mesma. Assim como o poeta-profeta das épocas em que os velhos mitos ainda recebiam alguma credibilidade. Bioscópio é um filme raríssimo. Pode-se dar valor a ele ou não, mas deve-se saber reconhecer esse fato. Se for para tentar estabelecer a genética de Bioscópio, teremos de colocar à mesa a linha cinematográfica que se inicia com Georges Méliès, conquista suas obras-primas em Carl T. Dreyer e Jean Vigo, e segue com grande força por Píer Paolo Pasolini, Andrei Tarkovski, Stanley Kubrick, Francis Ford Coppola e David Lynch.

Trata-se do cinema de poesia. Um cinema que se utiliza do surreal, do bizarro, do processo de estranhamento (no sentido freudiano) apenas para desvendar melhor as realidades interiores (subjetivas), unindo-as dialeticamente com as realidades exteriores e, com isso, alcançando absolutos e totalizações transcendentes. Para boa parte do público contemporâneo (inclusive os mais “críticos”), isso tudo parecerá besteira ou perda de tempo. Mas, para quem estuda (e valoriza) as bases mitológicas da cultura humana, este filme ganhará a aura de uma relíquia sagrada, um objeto de culto, uma obra de arte no sentido mais puro da palavra. É um cinema meditativo, de ritmo lento e com uma incrível volúpia do olhar, uma curiosidade do olhar, um olhar de libido e fé ao mesmo tempo: no plano mítico em que o filme trabalha, todas essas oposições se desfazem.

A cosmo-visão, que carrega e expressa uma espécie de “materialismo religioso” (Alfredo Bosi sobre a literatura de Guimarães Rosa), panteísta: trata-se de um filme ambicioso, mas no sentido de uma cultura que já desapareceu – pelo menos, do nosso ocidente “iluminista”. Quanto ao caráter meditativo, o filme de Madhusudhanan lembra bastante o cinema do russo Tarkovski (Andrei Rublev, Solaris, O Espelho): inclusive na temática metafísica e na das “questões de família”. Filmes assim são sempre difíceis de serem compreendidos e apreciados, ainda mais à nossa sensibilidade pós-moderna pouco afeita a questões “metafísicas”. Um exemplo disso são as (poucas) sinopses de Bioscópio que circulam por aí. É um daqueles filmes praticamente impossíveis de se resumir – sem que se deixem de lado aspectos importantíssimos da experiência que eles proporcionam ao espectador.

A história é mais ou menos o seguinte. Um homem simples (mas de uma família com boa estabilidade financeira), chamado Diwakaran, assiste a uma exibição do “bioscópio” (o próprio nome já é sugestivo: olhar a vida), empreendida por um francês chamado Dupont, em viagem pela Índia. Isso nos anos de 1920. O bioscópio não passa de um velho projetor de filmes, à manivela. Diwakaran fica tão impressionado que compra o aparelho e passa a exibir os filmes ele mesmo, armando e desarmando a sua tenda itinerante. As reações que o cinema provoca naquelas pessoas, que vêem pela primeira vez as imagens em movimento, é incrível. Reside aí o poder mágico do primeiro cinema, principalmente quando se trata das primeiras produções indianas, focalizadas nos mitos religiosos. É impagável ver as pessoas testemunhando na tela a “verdade” de suas crenças. Eis o cinema da epifania.

De resto, o bioscópio exibe velhos clássicos como Intolerância (1916), de D. W. Griffith, e O Gabinete do Dr. Caligari (1919), de Robert Wiene. Eis uma das formas como este filme revela sua paixão pelo cinema, meditando em cima de suas primeiras obras-primas. O bioscópio logo vira assunto (e polêmica) popular: as pessoas enxergam-no como algo sobrenatural – ou divino ou demoníaco. Enquanto isso, a irmã de Diwakaran definha em casa lentamente, presa a uma cama por doença que não se consegue descobrir ou curar; apenas se sabe que ela a teria adquirido após ver o cadáver de um europeu na praia, dez anos antes – aliás, a imagem desse cadáver é um refrão visual de grande impacto no filme. O pai passa a acreditar que o mal misterioso é uma maldição causada pelo bioscópio e exige que o filho se livre da máquina diabólica.

Diwakaran se encontrará, então, em um terrível dilema. Tanto quanto – ou mais importante do que – esta história é o modo como ela é filmada. A mise em scène, a fotografia, são de um rigor pictórico como poucas vezes se vê na Sétima Arte. Falar em fotogenia é pouco. Cada imagem do filme parece que é pintada à mão: o senso de composição, de equilíbrio, de linhas de força e tensão, a perspectiva (lembrando o valor que a profundidade de campo possui para a arte do cinema), a harmonia das cores, do claro-escuro, das atmosferas. Tudo aqui é um apelo quase psicodélico à visão. Até mesmo os contornos do alfabeto sânscrito em faixas e cartazes ganham uma aura impressionista, dotados que são de uma vida, de uma alma. A alma das coisas: poucos pintores a captaram. Decididamente, não é à toa que o filme usa como epígrafe uma frase dita por Paul Cezánne: “Olhem para esta montanha, um dia isto foi fogo?”

Madhusudhanan filma com a fascinação dos pioneiros nas imagens em movimento. E transmite ao espectador essa fascinação de coração aberto: nada se perde pelo caminho. Querendo ou não, a reação do espectador de Bioscópio, hoje, será inacreditavelmente análoga à reação das platéias dos primeiros filmes, dos próprios filmes mostrados dentro de Bioscópio. Poucos filmes nos fazem olhar para a tela como da primeira vez (seja da primeira vez em nossas vidas individuais, seja da primeira vez que o ser humano tomou contato com o fenômeno do cinematógrafo). Bioscópio promove o resgate do cinema em seu estado mais essencial. Faz-nos lembrar e sentir o entusiasmo com que os primeiros teóricos da Sétima Arte discutiam o “cinema puro”: se os filmes deveriam contar uma história dramaticamente – e com isso prestar tributos à literatura e ao teatro – ou se deveriam investir no “específico” da linguagem cinematográfica e trabalhar apenas com as impressões causadas pelas imagens, per si, no público. O dilema continua pertinente.

quarta-feira, outubro 22, 2008

O Último Tiroteio


Filme exibido na 32ª Mostra de Cinema de são Paulo.

Descobrir certos filmes e cineastas do passado – aqueles não tão conhecidos do público mais geral, mas altamente valorizados pelos cinéfilos mais eruditos – leva a agradáveis surpresas, daquelas que fazem parte tão peculiar da experiência do cinema. O negócio é garimpar. E ficar atento. Hoje, é o caso de Kihachi Okamoto (1924-2005), que dirigiu quase 40 filmes, transitou por diversos gêneros (foi um cineasta essencialmente de gênero) e promoveu misturas entre eles. O Último Tiroteio (“Ankokugai No Taiketsu”, Japão, 1960) é uma fita adorável para quem gosta da estética dos anos 60, ou seja, aquela coisa meio “Nouvelle Vague”, meio Cinema Novo, meio psicodelia, meio tropicalismo... (cada “meio” forma um quarto, como se vê). Tudo resumido no cinema meio “vintage” de um Quentin Tarantino (ainda que meio frívolo).

A história é a de um investigador de polícia (Saburo Fujioka, interpretado pelo clássico Toshiro Mifune) insubordinado, impulsivo e "esquentadinho", que está - além do mais - sob suspeita de corrupção. Assim, ele é transferido para a cidade de Kojin, assolada por uma brutal guerra de gangues mafiosas, o clã Kozuka e o clã Oka. Durante um tiroteio, um (ex) gângster chamado Tetsuo Maruyama (dos Kozuka) é salvo por Fujioka e os dois se tornam meio que amigos. Mais tarde, o detetive descobre que a esposa dele - morta tempos atrás - provavelmente tinha sido assassinada pela gangue Oka, e decide investigar. Mas ele descobre também que o seu amigo Tetsuo está buscando vingança pelo ocorrido e pretende levá-la a cabo mesmo que tenha de entrar em conflito com o policial. O "último tiroteio" do título será uma cena clássica.

O filme é um policial – bem de gênero mesmo – feito à base de crimes, mistérios, traições, reviravoltas e redenções. Com o grande Toshiro Mifune no papel central (como um investigador de polícia indisciplinado e impulsivo). Mas há ótimos elementos de comédia (apenas uma certa ironia romântica, nada muito burlesco) e até, quem sabe, de musical (a imagem um tanto recorrente dos quatro assassinos profissionais fazendo as vezes de conjunto musical de bar é incrível). É um filme “estiloso”; nada muito profundo, universal, sublime, etc. Apenas uma ótima diversão – para que mais? E uma diversão inspiradora, porque feita de modo competente. É uma arte fútil como um desfile de moda, repleta de gratuidades estéticas. Mas competente no seu fazer e no entretenimento almejado pelo gênero. Está de bom tamanho.

terça-feira, outubro 21, 2008

Sonata de Tóquio


Filme exibido na 32ª Mostra de Cinema de São Paulo.

Sonata de Tóquio (Japão, 2008, dir.: Kiyoshi Kurosawa) é um filme belo como só o cinema oriental. O rigor e o equilíbrio da mise em scène faz com que cada imagem seja um acorde, ecoando em harmonias sutis com as outras imagens. Os movimentos dentro do quadro, principalmente os movimentos e gestos das personagens, compõem linhas de força – com os movimentos de outros personagens ou com as linhas do próprio cenário – que nos remetem imediatamente à pintura, mas ao pictórico oriental. Ou uma coreografia, mas uma coreografia de balé oriental. Algo sempre muito calmo, sereno, disciplinado; apesar disso, leve, despretensioso, espontâneo, sem parecer excessivamente calculado, racionalizado e controlado. Quem, no ocidente, consegue atingir tais efeitos?

Junte-se a beleza serena da forma com a beleza serena do conteúdo. O carinho do diretor em relação aos personagens e à sua (em que medida trágica?) história será o maior efeito – e o efeito final – que este filme exercerá no espectador. O filme trata de assuntos contemporâneos e graves, mas está bem longe de ser um daqueles tratados sociológicos do “mundo cão” ocidental. Sonata de Tóquio está mais para Zavattini do que para Zola. Ou seja, é uma obra sensível e condescendente ao gênero humano. A própria “sonata” do título já vai sugerindo a atmosfera deste pequeno poema em prosa. A história é a de um pai de família que perde o emprego de anos e anos numa grande companhia – dentro da “política” do “downsizing”.

O homem, aos 46 anos de idade, esconde da mulher (e dos filhos) que está desempregado, e finge sair para trabalhar, todos os dias, enquanto procura uma nova colocação. Enquanto isso, o filho mais velho pretende se alistar no exército norte-americano, e o filho mais novo começa a tomar aulas de piano usando (ilicitamente) o dinheiro que a mãe lhe dá para a merenda escolar. Vão surgindo outros personagens, conhecidos e desconhecidos, compondo um painel realista e pouco animador do Japão no mundo globalizado. Mas repito: a mera denúncia do “lado ruim” da realidade não é a maior das preocupações do diretor. O filme vai muito além (graças a Deus!). É a primeira vez que vemos na mostra o cinema de Kiyoshi Kurosawa (o qual não tem qualquer relação de parentesco com o seu homônimo mais famoso, o Akira). Queremos mais.

domingo, outubro 19, 2008

O Poderoso Chefão


Filme exibido na 32ª Mostra de Cinema de São Paulo.

Por mais que Walter Benjamin já tenha falado da perda da aura da obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, a experiência de assistir a uma cópia restaurada de O Poderoso Chefão (“The Godfather”, EUA, 1972, dir.: Francis Ford Coppola), no cinema, mantém algo do maravilhoso de se ver uma obra prima em toda a força presente de sua materialidade. Poucas vezes se terá a oportunidade de vivenciar e compreender a experiência do Cinema, de um ponto de vista fenomenológico. Não importa quantas vezes já se tenha assistido a esse filme, o quanto que já se conheça de cor e salteado todos os detalhes da história, o espectador sempre ficará tenso em sua cadeira, tomará sustos, surpreendendo-se com o conhecido tanto quanto com aspectos jamais percebidos (eis a grande dimensão da obra prima).

Cada (re)visão será uma (re)descoberta. E não estamos falando apenas do que aparece na tela. Parte importante da vivência de se ver tal película na tela grande da sala escura será a comoção coletiva que ela provoca. A aura também está no público. Assistir a “The Godfather” numa sala cheia, em 2008, é uma verdadeira celebração. Obviamente, a maior parte desse público será de gente que já conhece e idolatra a obra. A atmosfera que se respira antes, durante e depois da exibição é algo inspirador e revigorante, como deviam ser os cultos das antigas religiões pagãs (poéticas e míticas a um só tempo). O Poderoso Chefão é poético e mítico, épico e lírico, sem abandonar as asas históricas e sociológicas. Eis a versatilidade dos grandes filmes, da grande arte.

Que se mantenha sempre viva essa dimensão do cinema enquanto celebração coletiva de uma obra de arte que, por mais reproduzida que seja, em cada ocasião e em cada lugar ela se fará única, como que apresentada pela primeira vez (mesmo que para pessoas que já a testemunharam incontáveis vezes, eis a questão). Nada muito diferente da consagração de um simples pedaço de pão em eucaristia, e sua conseqüente comunhão por todos os fiéis. Para que toda vez se relembre – e se reviva – o que jamais deve ser esquecido. E este cinema – experiência epifânica – deve sempre influenciar as novas produções. Não merecerá jamais ser levado a sério um diretor que não tenha como ideal, ou como perspectiva, o cinema de Coppola.

Não estou sendo classicizante. A questão é: mesmo que seja para destruir os padrões do cinema dito clássico e instaurar paradigmas completamente novos, deverá se conhecer e se ter em vista as melhores realizações de um cinema “conservador”. Para quê? Para que se saiba como fazer melhor, superar os mestres. Como disse Manuel Bandeira a um jovem poeta, é preciso saber compor sonetos decassílabos antes que se disponha a empreender versos livres. Mas como são raros os cineastas contemporâneos que parecem possuir em sua bagagem o cinema mais “antigo”! Não é à toa que um filme como Onde Os Fracos Não Têm Vez (2008, Joel e Ethan Coen) causará tanta (e tão positiva) surpresa. Que jovem (ainda mais nos EUA) terá paciência e disciplina para fazer verdadeiras óperas como “The Godfather”?

quinta-feira, outubro 16, 2008

A Carruagem Fantasma


A Carruagem Fantasma (“Körkalen”, Suécia, 1921, dir.: Victor Sjöström) é um clássico dos clássicos. Não no sentido de intensidade – de que seria o maior clássico dentre todos os do cinema – mas no sentido mais exato da expressão: a obra de Sjöström está na fonte de grandes filmes e grandes diretores que vieram depois. E só. De resto, o filme é pouco conhecido e menos assistido. Mas Ingmar Bergman presta tributo a ele, especialmente em O Sétimo Selo (1957); e também Stanley Kubrick, especialmente em O Iluminado (1980): é assim que descobrimos de onde “vem” realmente a antológica cena de Jack Nicholson, ensandecido, arrebentando a machadadas a porta do cômodo onde se escondem a mulher e o filho. Sjöström é um cineasta dos cineastas, assim como alguns poetas são “poet’s poet” (um poeta de poetas).

O enredo e a mensagem de A Carruagem Fantasma parecerão ingênuos às inteligências contemporâneas: o filme é uma fábula (adulta) com visão de realidade e princípios morais bastante simplistas. A história lembra uma mistura de Um Conto de Natal (“A Christmas Carol”), clássico literário de Charles Dickens, e A Felicidade Não Se Compra (“It’s A Wonderful Life”), clássico da Hollywood clássica de Frank Capra. Há uma metáfora no filme que resume bem a proposta de Sjöström: “mend the coat = mend the ways”. A jovem e solícita irmã do Exército da Salvação (Edit) tenta, ao mesmo tempo, costurar o casaco do velho alcoólatra (David Holm) – todo rasgado – e “costurar” a sua vida, lutando para que o homem largue a bebida e a vida nas ruas. O fato de Holm rasgar cinicamente todas as emendas feitas, na frente da coitada da boa samaritana, já vai dando mostras do seu “caráter”.

Mas é na realização que a fita conquista seus maiores méritos. Primeiramente, na estrutura narrativa: em um dado momento, vemos as imagens da história da “carruagem fantasma” (de que a última pessoa que morrer ao final de um ano conduzirá a carruagem da morte por todo o ano seguinte, recolhendo a alma dos que morrerem) sendo contada por um personagem chamado Georges (que está em um bar junto de seus camaradas de copo). No entanto, já a história de Georges está sendo recontada por um antigo amigo seu (David Holm), enquanto bebe com outros pés-de-cana na sarjeta, às vésperas do ano novo. O filme primeiro mostra Holm; daí, corta para Georges; então, corta para a história contada por este. Ao fim de tudo (inclusive da história de vida do próprio Georges) voltamos a Holm. Foi um dos casos pioneiros no cinema de uma estrutura narrativa em espiral.

Outro recurso pioneiro, que trouxe bastante sucesso para o filme, foi a fotografia em sobre-impressão, criando efeitos de fantasmagoria surpreendentes (a carruagem e os mortos que circulam por cima das ondas no mar, atravessam paredes, misturam-se ao mundo dos vivos sem que estes os percebam). Sjöström foi o primeiro a fazer uso dramático e efetivamente estético do recurso, após as primeiras tentativas “de brincadeira” do prestidigitador Georges Méliès. Outra assinatura estilística do diretor sueco é a presença em campo, sempre relativamente central – em plano mais próximo ou mais afastado – de algum foco diegético de luz (sempre estourada, marcando muito o contraste com o resto do ambiente): um abajur de mesa, um lustre de teto. Mais uma vez, lembramo-nos de Kubrick. Por fim, é altamente recomendável a nova trilha sonora para o filme, composta pelo grupo nórdico KTL: os efeitos eletroacústicos são assustadores, claustrofóbicos, uma perfeita atmosfera.

quarta-feira, outubro 15, 2008

Ensaio sobre a Cegueira


Ensaio sobre a Cegueira (Brasil / Canadá / Japão, 2008, dir.: Fernando Meireles) é um filme aplicado. Disciplinado. Formalista. Lembra quase um poema parnasiano: que se leia a “Profissão de Fé”, de Olavo Bilac. Ou seja, nada poderia estar mais distante – neste aspecto – da forma tão livre do discurso de José Saramago. É claro que há o longo debate sobre como se adaptar uma obra tão literária para a linguagem cinematográfica; mas a questão não é “adaptar”, e sim buscar equivalências entre as duas formas de arte, respeitando-se as diferenças. Quero dizer, um romance não deverá ser simplesmente vertido para o cinema, mas o bom cineasta procurará buscar quais os recursos estilísticos especificamente cinematográficos que poderão equivaler (jamais traduzir) às escolhas artísticas do escritor, inspirado sempre pela lógica das analogias, das correspondências, ou seja: a lógica poética (neste particular, universal e comum a todas as artes).

Pensando nisso, a visão de Meireles teve alguns acertos. A fotografia em branco, com muitos momentos desfocados, translúcidos ou simplesmente opacos (a tela inteira em branco, ou preto, por razoáveis segundos), a expressar os efeitos do “mal branco” (a cegueira na acepção de Saramago); a câmera subjetiva (algo meio óbvio numa história dessas, mas mesmo assim, fundamental); a direção de arte que construiu bem o caos apocalíptico (é muito interessante ver a cidade de São Paulo neste filme); o tom da narrativa entre dinâmico e irônico (para o qual contribui bastante a trilha sonora): isto Meireles soube reconhecer bem na obra de Saramago. Entretanto, é nesse último aspecto que começam os problemas: a trilha sonora assinala demais praticamente todas as cenas do filme, principalmente o seu conteúdo dramático. Clichê dos clichês. É para tornar o filme mais acessível, mais palatável?

O pior é que o conteúdo dramático, cinematograficamente falando, nem fica tão assinalado assim. Pesa sobre a película uma atmosfera excessiva de descrição, quando o diretor poderia se deter mais e durante mais tempo em cima dos acontecimentos, explorando de maneira mais “meditativa” (digamos assim) suas implicações humanas. Não que o próprio Saramago seja lá muito enfático nesse sentido, mas a câmera de Meireles é apressada, enquanto a pena de Saramago é espontânea; a câmera do cineasta é ansiosa (por isso, age com volúpia e volubilidade ao mesmo tempo), ao passo que a pena do escritor é sutil (mesmo ou principalmente quando trata de coisas graves e perturbadoras, o que é uma grande marca e qualidade em José Saramago). Enfim, Meireles é pesado; Saramago é leve. “Blindness” acaba sendo mais descritivo do que expressivo, porque sentimos que o diretor quis colocar (quase) tudo do livro em duas horas de fita.

É neste caso que uma “adaptação” mais livre e indisciplinada, sem tanta e tão visível reverência ao autor da obra original, ficaria mais rica. “Blindness” é um filme mais profissional do que artístico. Eis sua conquista e seu limite. É um filme extremamente competente, mas pobre de espírito. É um filme excessivamente publicitário: muitas cenas, seja na fotografia, na montagem ou na dramaturgia, lembram aquelas propagandas mais “elaboradas artisticamente” que passam na TV ou nas salas de cinema. “Blindness” é um film dell’a arte contemporâneo. Parece que foi feito sob o peso da preocupação de “dar certo”: dar certo dentre o público (pensando nos vários “tipos” de público), dar certo dentre os críticos, dar certo nos festivais e premiações internacionais, dar certo profissional e artisticamente (por que não?). São todas preocupações legítimas, mas que podem arrastar para baixo a realização da obra.

Há algumas cenas do filme que ilustram bem o caráter mais publicitário do que artístico da adaptação, no que ela tem de apressada e descritiva. A primeira é a famosa cena do cão das lágrimas. Que se faça a concessão de que é difícil mesmo colocar em imagens esse momento tão forte do livro. Mesmo assim, da maneira como ficou no filme, a cena tem um impacto muito, mas muito menor. Era mesmo necessário mostrar (eis a mera descrição) num plano absolutamente chapado o cão lambendo as lágrimas de Julianne Moore (a câmera na frente dos dois, para que o espectador entendesse bem que o cão está lambendo as lágrimas da mulher)? Na ânsia de mostrar exatamente o que as palavras dizem no livro, o filme acaba perdendo a sua força de cinema. O curioso é que outras cenas do romance, incrivelmente fotogênicas, não foram trazidas para o filme com a força “fílmica” que elas possuem no livro.

Falo da cena da morte do ladrão, que no romance (conforme eu comentei aqui mesmo no BLOG, em outubro do ano passado) possui um aspecto muito impressionante de filme de terror, particularmente os filmes de zumbi. Em “Blindness”, esta cena também é mostrada de modo muito apressado, tentando (e não logrando) criar um efeito de susto à lá Shyamalan. Por fim, a cena da igreja, onde as imagens santas se encontram com os olhos vendados por panos ou tintas brancos: para que colocar um profeta do apocalipse fazendo um sermão assustado para alguns cegos ali presentes? Banalizou-se a cena. Exagerou-se o drama. Arrancou-se a força pura da imagem da mulher do médico descobrindo, numa igreja vazia, aqueles ícones “cegados”. Sem contar que, no ritmo da montagem que vai mostrando os santos vendados, a coisa toda fica parecendo demais uma propaganda de televisão. Enfim, Meireles acabou conquistando, para o melhor e para o pior, o título de Roland Emmerich do cinema cult.

quarta-feira, outubro 01, 2008

Filmes de Setembro


Zombie (Itália, 1979, Lucio Fulci)
A velha história: zumbi, vodu, apocalipse. Com muito “gore” (muito mesmo) e boas doses de ironia.

Ainda Orangotangos (Brasil, 2007, Gustavo Spolidoro)
Filme experimental e independente. Interessante por isso. E por nada mais. Que se continuem com as experiências. Acredito piamente que uma hora aparecerá a obra-prima acabada.

Trovão Tropical (“Tropic Thunder”, EUA, 2008, Bem Stiller)
Sei que a palavra “irreverência” já perdeu qualquer significado que um dia possa ter tido. Mesmo assim, Bem Stiller recupera algo que dá gosto em afirmar: IRREVERENTE!

Canções de Amor (“Chansons d’Amour”, França, 2007, Christophe Honoré)
Mais um daqueles filmes que ensinam a amar. Com muita música, que é essencial. Há quem não goste de musicais (o que já me causa certo estranhamento), mas eu desconfio bastante de quem não gosta de música...

Viagem ao Mundo dos Sonhos (“Explorers”, EUA, 1985, Joe Dante)
Mais um daqueles filmes que ensinam a sonhar. Este, particularmente, é um dos filmes que definiram minha vida. É questão de formação.

O Martírio de Joana D’Arc (“La Passion de Jeanne D’Arc”, França, 1928, Carl T. Dreyer)
A arte do cinema em seu estado mais puro.

O Estranho Mundo de Jack (“Nightmare Before Christmas”, EUA, 1992, Tim Burton)
Tim Burton é o messias dos “outcasts”. Filme belo. Deve estar presente na formação de toda e qualquer criança.

Escola do Rock (“School of Rock”, EUA, 2003, Richard Linklater)
A grande sessão da tarde do futuro. Deverá fazer parte da formação dos (pré-)adolescentes daqui a uns dez ou quinze anos. Sem contar que também é um grande filme sobre professor / pedagogia.

Hellboy (EUA, 2004, Guillermo Del Toro)
O início de mais uma grande marca do cinema de fantasia. Del Toro tem qualidade e inteligência para superar Spielberg, Lucas, Peter Jackson. Só não cito Tim Burton, porque aí a coisa ficaria polêmica.

Hellboy II: O Exército Dourado (“Hellboy II: The Golden Army”, EUA, 2008, Guillermo Del Toro)
Se você achou o primeiro surpreendente e promissor, veja o segundo...

O Bandido da Luz Vermelha (Brasil, 1968, Rogério Sganzerla)
Filme revolucionário. Mas estamos falando aqui da verdadeira revolução, daquela que realmente precisa ser feita: a revolução das mentalidades, da estética, da cultura, antropofagia, tropicalismo, contra-cultura, vanguarda, criatividade extrema, livre e desimpedida, busca eterna por novos paradigmas e a superação dos mesmos novos paradigmas antes que virem fórmulas consolidadas. Cinema marginal, cinema manifesto. Celebração da vida e da morte ao mesmo tempo.

Finis Hominis (Brasil, 1971, José Mojica Marins)
Sganzerla e Mojica contam-se entra as pouquíssimas inteligências efetivamente livres no Brasil dos anos 60. Inteligências dotadas de alta capacidade de discernimento e que não se prendiam aos determinantes (modas?) da época: estamos falando das manjadas ideologias da esquerda “revolucionária”. Sganzerla e Mojica não são (sub) produtos da Guerra Fria, como o são parte considerável do Cinema Novo. Sganzerla e Mojica vão muito além das dicotomias simplistas da época. Sendo assim, têm muito mais potencial de sobreviver à foice do tempo e de apontar (continuar apontando) caminhos para o futuro. Sganzerla e Mojica são, acima de tudo, filósofos. No sentido clássico do termo.