quarta-feira, agosto 26, 2009

Alguém Muito Especial


Outro dia estava eu assistindo a Ele Não Está Tão A Fim de Você (“He’s Not That Into You”, EUA, 2009). É uma comédia romântica bem gostosa que parece ilustrar perfeitamente a famosa Quadrilha de Drummond: “João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém”. Estando meu coração à deriva na maré de tantas catarses, eis que aparece no meio do filme uma breve cena de um outro, que estava sendo visto por uma das personagens. O déjà vu foi instantâneo: reconheci logo que se tratava de alguma daquelas saudosas fitas da velha sessão da tarde dos anos 80.

Enquanto me debatida dentro de mim tentando dar leme para a memória daquele pedaço de filme, duas personagens do Ele Não Está Tão A Fim de Você começam a comentá-lo e daí – naturalmente – uma delas diz o título: Alguém Muito Especial. Bem, graças a Deus que existe o Google. Colhi rapidamente todas as informações de que precisava e, dentro de umas duas horinhas, tinha o filme em mãos (por meios inconfessáveis, logicamente); a facilidade e a velocidade do acesso à informação nestes nossos tempos virtuais é uma coisa mesmo incrível, por mais que já pareça banal.

Enfim, Alguém Muito Especial (“Some Kind of Wonderful”, EUA, 1987) é simpático e charmoso como só os “teen movies” da década de 1980 conseguiam ser. Foi dirigido por Howard Deutch (de A Garota de Rosa Shocking – 1986) e escrito pelo mestre do gênero e recém falecido John Hughes (que também roteirizou o filme citado logo acima e dirigiu O Clube dos Cinco – 1985; Curtindo A Vida Adoidado – 1986). Na presente película, Hughes nos conta a história de Keith Nelson (Eric Stoltz), um jovem mecânico que se apaixona pela garota mais bonita e popular da escola, Amanda Jones (Lea Thompson).

Mas Keith é o perfeito “outcast”: tímido, nerd, esquisito (chame do que quiser) e pobretão. Apesar de tudo, ele tentará fazer contato com Amanda Jones e será ajudado nesse processo pela melhor amiga dele, chamada apenas de Watts (Mary Stuart Masterson). Pobre Watts! Ela também é uma pária: seu figurino e comportamento fizeram valer-lhe a alcunha de “tomboy” (“sapatão”). E o que é o mais interessante: a garota é secreta e perdidamente apaixonada por Keith. Até onde ela o ajudará a conquistar Amanda Jones? Revelará a ele o seu amor? Será que ele o perceberá? Os dois acabarão juntos?

John Hughes desenvolverá esse triângulo amoroso com a mesma e cativante sensibilidade demonstrada em O Clube dos Cinco (“The Breakfast Club”), sua obra-prima. Sensibilidade me relação à alma adolescente, sem a condescendência estúpida dos filmes mais “comerciais” mas sem também aquele esnobismo intelectual dos filmes “de tese”. E sobretudo, sem qualquer tentativa de doutrinação pseudo-moralista. Leveza com classe, com estilo, num filme despretensioso mas carregado de significados que estimulam reflexão e debate. Só mesmo na Hollywood dos anos 80, só mesmo no agora saudoso John Hughes.

domingo, agosto 23, 2009

Inimigos Públicos


É um grande exagero comparar Michael Mann a Scorsese, Coppola e de Palma. Por enquanto. O espectador esclarecido deverá saber observar para além dos “hypes” que infestam o debate cotidiano na mídia. Os filmes de Mann com certeza têm visão de mundo, personalidade e estilo. Mas será que são tão densos quanto os grandes clássicos? É muito difícil fazer corpo com uma tradição. Será que a bagagem cinematográfica e o talento de Michael Mann já permitem que dispute uma vaga no panteão dos imortais?

Só podemos intuir. Acredito que Mann jamais se irmanará com os mestres supra-citados. Não obstante, se o cineasta continuar se esforçando, poderá conquistar a posição de, digamos, o “clássico dos nossos tempos”. Não é muito, mas já é alguma coisa. E, além do mais, quem foi que disse que todos os filmes precisam ser eternos? Inimigos Públicos (EUA, 2009) é um filme bastante agradável.

O rigor da mise en scène (a fotografia, a direção de arte, os figurinos), a pouca presença de música incidental (ah, o silêncio!) e a direção exata dos atores fazem com que o filme adquira o charme próprio daHollywood clássica. Porém, grandes inconsistências: Inimigos Públicos foi captado em Digital e acabou saindo com uma cara de DV muito além da conta. Alguém me diga o que é que o estilo “guerrilla movie” tem a ver com a época e o universo mostrados?

A impertinência estética, a incoerência entre a forma e o conteúdo é o único pecado imperdoável em qualquer forma de arte. Não é que Mann precisasse ter filmado em preto-e-branco e editado na moviola, mas existem alguns limites, não? Mas não quero ficar reclamando. Prefiro me concentrar no “clássico contemporâneo” de Miami Vice (2006). Cada um na sua praia. Clint Eastwood e, talvez, os irmãos Coen são os realizadores de hoje com mais potencial de ascender às esferas dos clássicos atemporais. Quanto a Mann, vamos ver o que ele ainda vai fazer.

domingo, agosto 09, 2009

A Garota Ideal


Aviso preliminar: o texto abaixo não contém muito do que se chama “spoilers”, mas o filme de que ele trata é daqueles em que o melhor é assistir sem que se possua qualquer informação a seu respeito, nem a mais breve sinopse. A surpresa aqui é tudo. Quem quiser aproveitar ao máximo a experiência, não leia esta postagem. Alugue o filme e assista-o imediatamente (não leia nem a contra-capa do DVD). Você não vai se arrepender.

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Este filme não é tão perturbador quanto a sua sinopse pode sugerir. Pode acreditar. E esta é a sua maior qualidade; não fosse assim, cairia numa velha armadilha que poderia fazer cócegas aos espíritos mais fleumáticos, mas não aos mais sublimes. Não há criatura a quem eu fale de A Garota Ideal (“Lars and The Real Girl”, EUA, 2007, dir.: Craig Gillespie) que não faça uma cara de: “Como assim?” com um misto de surpresa, repugnância, curiosidade e – por que não? – compaixão.

Indicado ao Oscar de melhor roteiro original em 2008 (perdeu para Juno), esta pequena fita conta a história de Lars, um jovem de bom coração mas com seríssimas dificuldades de se relacionar com as pessoas, principalmente com as mulheres. Apesar das diligentes tentativas do irmão, da cunhada e de uma colega de trabalho que está a fim dele, a timidez extrema de Lars faz com que permaneça um misantropo incorrigível.

Até que, um belo dia, ele aparece com Bianca: uma formidável figura de silicone comprada pela Internet com os seus, imaginamos, 1,65 de altura e uns 52 Kg; além de ser, é preciso lembrar, “anatomicamente correta” – ou seja, ela tem TUDO o que uma mulher tem, fisicamente falando. Este é o momento realmente perturbador do filme. Testemunhamos de queixo caído o início do “relacionamento” entre Lars e Bianca e as reações de toda a comunidade ao redor – o cenário é, logicamente, o de uma cidadezinha.

Antes que algum espectador se lembre do engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha – uma das maiores expressões que esta humanidade já foi capaz de produzir – no próprio filme vemos Lars lendo o clássico de Cervantes para embalar o sono de sua “garota”. Então, acontece o ponto de virada. Se o roteiro ficasse apenas no registro deste “bizarro” e de suas consequências mórbidas, a obra não seria melhor do que as fantasias perversas de uns “garotos enxaqueca” que há por aí.

É claro que a roteirista Nancy Oliver poderia ter enveredado por uma linha mais literária, à lá Dostoiévski, Kafka ou Borges. Mas este é, na verdade, um filme bem simples e sensível. Mas não se trata, ainda bem, de uma sensibilidade e otimismo bobos como os do Curioso Caso de Benjamin Button, por exemplo. A história de Lars tem muito mais densidade. A virada acontece quando Bianca começa a ganhar um estatuto de realidade para todas as pessoas ao redor de Lars.

Todos se compadecem dele e querem ajudá-lo. Assim, com a supervisão de uma psicóloga, a cidade inteira mergulha na fantasia dele. É bonito ver Bianca ganhar uma vida e personalidade próprias, independentes do seu “namorado”. Evidentemente, começarão aí os problemas do relacionamento: Lars fica com ciúmes, ele não gosta de disputar Bianca com todo mundo.

O filme mostra com incrível sabedoria todas as fases de um relacionamento, todos os seus aspectos, todas as neuroses, as pequenas e as grandes crises do cotidiano. E nós assistimos a toda essa evolução surpreendendo-nos de tudo isso não ser nada surpreendente, pois para todos os efeitos Bianca é REAL. Como diz Raul Seixas: “sonho que se sonha junto é realidade”. A Garota Ideal só faz por alargar o conceito de realismo fantástico.

Não contarei o final do romance entre Lars e Bianca. Saiba apenas que o filme, no seu conjunto, é belo, humano, revigorante e transformador. Terapêutico, talvez. Não há nada de doentio ou trágico na história de Lars. Trata-se de um processo de aprendizado e de cura. Uma verdadeira educação sentimental. É um daqueles filmes que nos ensinam a amar (de verdade a pessoas de verdade), a viver a vida de maneira poética.