sábado, julho 31, 2010

O Grão


Sexta-feira, 23 de julho. Dia de estréia do filme. Entrei na sessão das 16:00 e havia só uma pessoa na sala. Era uma senhora muito simpática que, ao término da exibição, dirigiu-se a mim e teceu o seguinte comentário, visivelmente comovida: “Que coisa, né? Ninguém na sala! E um filme tão bonito, poético... Mas todo mundo só quer saber dessas (resmungos ininteligíveis) americanas!”

Este esboço de crônica já valeria por uma crítica para O Grão (Brasil, 2007), do diretor estreante Petrus Cariry. Mas vamos jogar outras lenhas. Este filme passa longe das expectativas não só do público que gosta de viajar pelos lugares-comuns da indústria, mas também do público que não costuma perder a chance de se refestelar no charco de produções pretensamente alternativas, mas que não passam de marketing mal-disfarçado (leia-se: tudo o que é “hype”).

O Grão não arrastará atrás de si legiões de seguidores e imitadores. Felizmente. Tampouco inspirará detratores. O mais provável é que este filme passe altivamente despercebido, simplesmente porque as coisas que ele discute e a maneira como as discute não estão na pauta do dia. Quem quererá saber de uma película que filosofa sobre a morte – um dos mais universais temas desta espécie que vos fala –, e usa para isso o típico cenário do sertão nordestino sem relacionar a dita cuja, que isso seja bem dito, a qualquer questão “social”?

Lição para novos cineastas: como criar o novo em cima do já manjado, escapando graciosamente de todas as esperadas armadilhas. Não é o caso de que O Grão se abstenha de tocar nas chagas abertas deste Brasil, mas o faz como um João Guimarães Rosa: o sertão é trampolim para o infinito. Assumamos temerariamente: este filme é uma curiosa mistura – inclusive em aspectos formais – entre o “Vidas Secas” de Graciliano Ramos e o “Miguilim” de Rosa, dois monumentos da nossa literatura.

Numa casinha bem simples do interior do Ceará vivem o menino Zeca e sua família. O pai tira algum sustento do trabalho de tocar cabras, enquanto a mãe, a avó e a irmã se revezam na tecedeira. São todos pobres, mas não miseráveis. A câmera estática de Cariry (não há praticamente movimento de câmera algum, no filme inteiro), em planos bastante longos, ajuda a esculpir o tempo (tempos mortos) do cotidiano simples, mas digno, daquela família, com uma poesia sutil.

Há algo de irônico – com um mínimo de comentário social – nos planos que mostram a família jantando e assistindo às imagens mal sintonizadas da pequena e velha TV, na qual vemos propagandas de bens de consumo (incluindo uma referência genérica a “loterias” do tipo “Baú da Felicidade”) e cenas do enlatado The New Adventures of Old Christine, com aquele humor típico de “sitcoms” americanas. O contraste entre o que se vê na (pobre imagem da) telinha e o que se passa no ambiente ao redor atinge o paroxismo e grande força expressiva.

Mas a avó está doente e cada vez pior. A sombra da morte começa a se estender pela casa. Zeca pedirá a ela que lhe conte uma história, e a velha começará a falar de um rei e de uma rainha – em tempo e lugar indefinidos – que queriam muito ter um filho. A progressão dessa história, contada em parcelas ao longo do filme, estabelecerá associações poéticas com todo o resto que acontece à família, e a sua conclusão amarrará e fechará planos narrativos e líricos que mal havíamos percebido que o filme os estava trabalhando.

A construção, amarração e conclusão deste filme-fábula são de sabedoria e sutileza raras em nosso cinema. O final é belo e comovente, na medida exata. Aliás, tudo é feito com grande exatidão neste filme, mas não daquela racional, e sim a exatidão dos poetas líricos que almejam à simplicidade dos sentimentos e da expressão, casados numa arquitetura despojada, mas firme.

A fotografia passa longe daquele estilo “câmera na mão”, tão em voga hoje em dia. Como falamos, os planos são fixos e longos: a referência ao “esculpir o tempo” do cineasta russo Andrei Tarkovski vem bem a propósito. E a composição dos elementos dentro do quadro é de inspiração verdadeiramente pictórica: a unidade das cores em torno dos tons pastéis (o agreste); o aproveitamento da contra-luz; a predominância de planos gerais ou de conjunto, tornando expressiva a inserção dos personagens dentro de um espaço e de um tempo;

a disposição dos objetos e dos personagens dentro do quadro – assim como o movimento destes –; a expressividade das molduras dentro do plano, através do enquadramento provido por batentes de portas, janelas, pedaços de parede, árvores, etc (o que lembra os mestres do cinema clássico japonês, particularmente Ozu e Yoshida). Todos esses elementos atestam a grande consciência visual do filme.

Além do roteiro e da composição visual, contribui muito para o lirismo de O Grão a trilha sonora original, em acordes graves que sugerem uma atmosfera sobrenatural e amedrontadora, lembrando a música tétrica que acompanha o clássico A Carruagem Fantasma (“Körkalen”, Suécia, 1921) de Victor Sjöström. Há definitivamente algo do clima fantasmagórico do cinema escandinavo no filme de Cariry: além de Sjöström, lembramo-nos do Dreyer de O Vampiro (“Vampyr”, 1932) e do Bergman de A Hora do Lobo (“Vargtimmen, 1968).

No final das contas, O Grão não será lá um filme para cinéfilos iniciantes. Assim como um adolescente iniciante em poesia apreciará (e compreenderá) mais um Augusto dos Anjos do que um Carlos Drummond de Andrade. Mas constatar que o cinema brasileiro é capaz de produzir uma obra densa e madura como esta, ainda por cima realizada como debute por um diretor jovem (33 anos de idade), é mais do que estimulante. Este filme pode fracassar veementemente, em todos os termos, sejam eles críticos ou comerciais. Mas o mundo – e o Brasil – precisam de filmes assim.

sábado, julho 10, 2010

As Melhores Coisas do Mundo


Laís Bodanzky é a cineasta com produção mais coerente e mais promissora do cinema brasileiro de hoje. Façamos uma previsão – um tanto quanto temerária, como o são todos os prognósticos: em cinco ou dez anos ela produzirá uma obra-prima que entrará quase que imediatamente para os cânones nacionais. O domínio e uso significativo da linguagem cinematográfica, sempre em função das realidades profundamente humanas que formam o espírito temático dos seus filmes, fazem-se presentes desde o primeiro curta da diretora, intitulado Cartão Vermelho (1994).

Este, assim como o longa mais recente As Melhores Coisas do Mundo (2010), trata do universo adolescente – a melhor e (ou) a pior fase da vida de alguém – com um lirismo de medida exata que é um dos grandes trunfos da cineasta, se não o maior. E o que seria esse lirismo “exato” (adjetivo pouco afeito semanticamente a ser combinado com o substantivo em questão)? É a expressão da subjetividade que, por um lado, não se permite refestelar no lodo dos melodramas folhetinescos (a série de TV Malhação); por outro, sabe evitar as armadilhas da auto-indulgência pretensiosamente “alternativa” – vide Gus Van Sant, particularmente Paranoid Park (2008).

Bodanzky não quer fazer coro nem com a turma dos “populares” nem com a turma dos “geeks”, pois sabe que qualquer rotulação só faz por empobrecer a figura e a experiência humanas. No cinema em geral, a poesia e o ritmo quase musical dos filmes de Bodanzky lembra um pouco aqueles do recém-falecido John Hughes – sendo raríssimo encontrar alguém que se desnude tanto do paternalismo quanto da condescendência ao observar a figura do adolescente. Ou melhor: o desafio é misturar os dois posicionamentos na atitude fenomenologicamente franca de entrar em contato com o outro (na qual não se pode apagar nem o “eu” nem o “outro”).

Sentimos que a narrativa – em Bodanzky e em Hughes – é elaborada pelo artista, como o fazem grandes escritores. Mas toda a voz é dada diretamente aos personagens, com seu linguajar e sua visão de mundo. O artista organiza a história, mas não está lá para falar em nome de ninguém. Por isso, é muito interessante comparar este As Melhores Coisas do Mundo com o clássico O Clube dos Cinco (“The Breakfast Club”, 1985). A epígrafe de David Bowie que Hughes usou para o seu filme também poderia ser aplicada ao da diretora brasileira:

“And these children that you spit on as they try to change their worlds are immune to your consultations. They’re quite aware of what they’re going through…” (E essas crianças, nas quais você cospe enquanto elas tentam mudar o mundo delas, são imunes aos seus conselhos. Elas sabem muito bem pelo que estão passando...)

Que todos os professores e pedagogos se lembrem disso ao ver tais filmes; mais ainda quando forem exibi-los aos seus alunos. A poesia cinematográfica de Bodanzky, toda voltada à expressão lírica da subjetividade do seu personagem, já se apresenta muito contundente antes que a primeira imagem do filme apareça: com a tela escura, ouvimos o clamor de uma platéia numerosa durante um show de rock and roll; em seguida, a voz do protagonista (o jovem Mano, interpretado por Francisco Miguez) agradece a oportunidade de ter aberto o show de Jimmy Page (lendário guitarrista do Led Zeppelin).

Até então, não há nada que entregue a fantasia. O que o espectador ouve poderia ser muito bem real – e é real, para todos os efeitos que importam, é real para o personagem em cuja alma mergulhamos tout d’abord graças à imensa tela preta que cega nossos olhos para as realidades externas, mas que os abre para o universo interior do sujeito. O filme começa com uma meditação. A verdade subjetiva é anterior a qualquer outra. Isso tem a força de quase uma subversão, uma heresia para os valores éticos / estéticos que (pre)dominam no cinema brasileiro.

Eis outro valor diferencial que se pode reputar ao cinema de Laís Bodanzky: ela está pouco interessada em elaborar tratados sociológicos que “expliquem” ou “mudem” o Brasil. É claro que um filme como As Melhores Coisas do Mundo pode ser usado e citado por cientistas sociais, psicólogos e principalmente pedagogos (infelizmente). Mas prestemos atenção ao filme em si mesmo, para variar, enquanto elaboração de um texto audiovisual de características estéticas: trata-se de um drama bastante lírico; é isso o que ele é. O cinema brasileiro só atingirá graus mais elevados de maturidade quanto mais fizermos filmes e refletirmos sobre eles enquanto... filmes! Nada mais simples, não?

Nossos cineastas ainda precisam abrir mão (mesmo que só um pouco) de um complexo colonial do qual derivou a “missão” de nossa literatura romântica (no dizer de Antônio Cândido), retomada (ainda que às avessas) pelos modernistas, e que continua exercendo seus sopros em diversas manifestações artístico-culturais desta nação. O filme novo de Marcelo Gomes, Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, representa um passo importante no caminho que busca menos historicismo, menos sociologia, e mais humanismo, mais universalização (palavras com certeza odiadas por muitos intelectuais de linhas excessivamente prestigiadas).

Ou melhor: o verdadeiro caminho a ser seguido é o da mistura e equilíbrio entre as duas tendências. E Laís Bodanzky parece seguir também cada vez melhor tal caminho a cada filme novo. O work in progress destes dois cineastas mostra que o indivíduo não é escravo do “contexto” histórico-social, assim como não se podem negar absolutamente as influências deste nas experiências humanas. Mas voltemos à cena inicial de As Melhores Coisas do Mundo, que estávamos discutindo. Quando a lente da câmera se abre, vemos o jovem Ermano em seu quarto, tocando violão diante do pôster de uma grande apresentação musical, vista do ponto de vista de quem está no palco.

Somos entregues à realidade objetiva, mas a força lírica do subjetivo ainda persiste, pois vemos os elementos objetivos (o pôster e o violão) que disparam a fantasia, crescendo em força poética junto com ela. São imagens simples, mas muito ricas. Com certeza, é muito mais sábio do que usar algum efeito especial qualquer. E a cena continua, numa das melhores introduções de filmes nacionais dos últimos tempos: vemos Mano correr pelo quarto, fazer movimentos coreografados e jogar-se ao chão como se estivesse em cima de um palco, numa brincadeira bela e tipicamente adolescente.

E ele faz tudo isso, enquanto o som que o espectador ouve não é o ruído diegético do cenário em questão, mas a melodia alta e rasgada de uma guitarra elétrica. Ouvimos o que o personagem “ouve” em seu interior. Eis a sabedoria: Bodanzky coloca logo de começo o espectador na posição subjetiva do personagem, fazendo-o se identificar com ele, apresentando que a proposta do filme não é meramente “falar sobre” adolescentes. Por outro lado, o filme não cultiva a fantasia estética de ter sido rodado por um adolescente. Na fenomenologia de Bodanzky, o filme é o adolescente. Simples assim.

E isso é seguramente muito mais interessante do que a indiscreta câmera-olho que fica espiando e seguindo pelas costas, como um voyeur, os adolescentes do Elefante (2003) de Van Sant. O cinema de Laís Bodanzky é interessante porque ela não procura fazer “filmes para festivais”; seus filmes não procuram ser esquisitices pitorescas para mostrar pessoas esquisitas e pitorescas; a diretora não faz “firulas” com a linguagem cinematográfica. Seus recursos estilísticos, nas mãos de qualquer cineasta desprovido de senso poético, virariam clichês, virariam o cinema-publicidade de Besouro (2009, de João Daniel Tikhomiroff), ou o cinema-folhetim de Olga (2004, de Jayme Monjardim).

E é muito nítido o desenvolvimento da diretora desde O Bicho de Sete Cabeças (2001 – que já trabalhava “questões sociais” sem pretensão de fazer tese, sem aquele naturalismo do tipo “mundo cão”), passando pelo sublime Chega de Saudade (2007 – talvez o filme brasileiro mais humano da década). Quanto às Melhores Coisas do Mundo, ainda há uma ou duas coisas interessantes a se comentar. Falei anteriormente do ritmo “musical” do filme. É comum e muito interessante, em Bodanzky, a presença de música (geralmente, uma canção) em alguns momentos líricos fundamentais, sem exageros nem banalizações.

Neste, o destaque vai para a belíssima “Something”, de George Harrison. Cabe aqui mais uma ligação com John Hughes, que coloca como que “videoclipes” muito poéticos dentro de seus filmes: a propósito, já que falamos dos Beatles, quem da geração anos 80 não se lembrará do “Twist and Shout” de Ferris Bueller em Curtindo a Vida Adoidado (“Ferris Bueller’s Day Off”, 1986)? Outro momento interessante, que remete, em princípio e coincidentemente, a uma cena do recente 500 Dias Com Ela (“500 Days of Summer”, 2009, de Marc Webb), é quando Mano sai pedalando pelas ruas numa alegria explosiva e cheia de devaneio, após transar pela primeira vez com a garota por quem é apaixonado.

Nesta cena, há um plano no qual a câmera de Bodanzky acompanha a bicicleta de Mano pela lateral, num enquadramento em que as rodas desta ficam quase alinhadas ao limite inferior do quadro, enquanto vemos ao fundo a paisagem da selva urbana de São Paulo, criando um belo efeito de que o garoto pedala em pleno ar, num devaneio de amor... Alain Resnais fez algo semelhante em Ervas Daninhas (“Les Herbes Folles”, 2009), no primeiro plano, em câmera lenta, de uma bolsa agitando-se em pleno ar, logo após ter sido levada por um ladrão sobre patins (em francês, voleur pode significar tanto ladrão quanto “voador”).

E já que falamos na paisagem paulistana, é interessante notar que a cidade aparece nos filmes da cineasta não através dos manjados planos gerais, nem através de um ou outro típico cartão postal; apenas vislumbramos São Paulo através de pequenos sinais: os ônibus coletivos, o detalhe de um ou outro prédio ou avenida (com a exceção da belíssima vista da Praça do Pôr do Sol, presente no filme que estamos discutindo). A cidade fica assim mais sugerida do que traspassada por uma câmera onívora. E não há qualquer embelezamento “cosmético” nas imagens – truque fácil de publicidade muito usado pelo frívolo Cidade de Plástico (2009, de Nelson Yu Lik-Wai).

Por fim, chamemos a atenção para a estrutura do roteiro, que gira em torno de acontecimentos cotidianos dos personagens durante certo período de tempo. Claro que alguns desses acontecimentos serão transformadores, mas o filme se encerra com uma impressão comovente de que o que vimos foi nada mais do que um pedaço de vida. Não se trata de dramas ou tragédias raras que parecem tomar lugar num excerto de tempo colocado entre parêntesis, momentaneamente paralisado e arrancado da linha temporal. Tudo o que testemunhamos encontra-se plenamente inserido dentro de um fluxo de vida, de mundo e de tempo do qual se extrai com justeza a grande poesia.

sexta-feira, julho 02, 2010

Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo


A cor local é uma maldição no cinema brasileiro contemporâneo, o qual um dia atingirá – se Deus quiser – o estado de revolução e maturidade que a nossa literatura chegou com Machado de Assis, há mais de cem anos. Enquanto não aparece um gênio que questione a coerção que nossos filmes sofrem de trabalhar quase que exclusivamente as coisas “nacionais” – quem sabe ironicamente, como fez o bruxo – contentamo-nos com aqueles que sabem matizar em harmonia as questões que movem nossa alma coletiva e aquelas que se agitam dentro de cada um, segundo a história de cada um.

Entenda-se bem: a “cor local” que assola a sétima arte tupiniquim não é aquela que, segundo os românticos do século XIX, constituía nossa identidade nacional. Ou seja, o retrato parcial do Brasil que o cinema atual oferece não é aquele do turista, com belas paisagens, belas mulheres, belas canções; trata-se do oposto: miséria e violência, sobretudo. Sob a marca bem intencionada da denúncia, acabamos muitas vezes aplicando a nós mesmos o estigma perigoso da história única (“single story”: ver a palestra da escritora Chimamanda Adichie, que circula pelo Youtube).

Por isso, são muito bem vindas experimentações do naipe de Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009, dir.: Marcelo Gomes e Karim Aïnouz). É difícil fazer um filme pleno de lirismo – o que arrasta, consequentemente, a dimensão individual da experiência, com suas doses de psicologia, filosofia, universalismo – e colocá-lo em perspectiva equilibrada com o estudo do meio – com suas conseqüentes doses de sociologia, política, história, dentre outras particularizações pouco afeitas ao emotivo e ao estético. No fundo, é a intersecção da ficção e do documentário.

Os diretores parecem ter em mente a famosa fala de Godard, a respeito de Jean Rouch: “todo grande filme de ficção tende ao documentário, assim como todo grande filme documentário tende à ficção”. No caso do cinema brasileiro de hoje, em associação com a tendência de que falamos, tais imbricações estão na ordem do dia e resultam em técnica e prática mais do que em meros suspiros de inspiração, conforme diz Carlos Augusto Calil em conferência no festival É Tudo Verdade:

“No cinema contemporâneo brasileiro há uma apropriação do método documental para realizar ficção realista ou hiper-realista, verossímil ou inverossímil – cada um escolha o adjetivo que convier. São baseados em pesquisa de campo, antes exclusiva do documentário, ou em livros de autores que viveram ou presenciaram as experiências relatadas: refiro-me a Drauzio Varella e a Paulo Lins. São, no mínimo, testemunhos reconstituídos, tão ‘verdadeiros’ como It’s All True.” (CALIL, Carlos Augusto. A conquista da conquista do mercado – in O cinema do real. São Paulo, Cosac Naify, 2005 – p.170)

A realização dessa pesquisa de campo torna-se evidente na história do geólogo (sem nome) que viaja pelo sertão nordestino mais remoto para catalogar o terreno no qual será construído um canal de transposição de águas fluviais e, com isso, vai entrando em contato – bastante variado, diga-se de passagem – com a população local. Carregando uma pequena filmadora e uma máquina fotográfica, além do indefectível bloco de notas, ele registra e entrevista pessoas como se estivesse fazendo um documentário no estilo cinema direto.

Com isso, vemos ali o casal de idosos que será desapropriado para a construção do canal, a cidadezinha semi-abandonada que desaparecerá definitivamente sob as águas, a garota de programa com o “olhar triste”, uma outra garota de programa que sonha em encontrar o amor eterno e verdadeiro, as festividades religiosas em Juazeiro do Norte (com direito à estátua de Padre Cícero, cartão postal da região), a feira de Caruaru, a paisagem árida e desolada do sertão, as rodovias, caminhões, postos de gasolina, motéis à beira de estrada, música popular “brega” etc.

Mas tudo isso nos é mostrado do ponto de vista confesso e exclusivo do protagonista, que, por sinal, está sofrendo de amor pela mulher (a “Galega”) que deixou na cidade grande. Desse modo, ao objetivo e documental se associa o subjetivo e ficcional da história individual do personagem que viaja também para fugir do que lhe aperta o coração e que vai narrando ao espectador o que se passou e o que se passa. O lírico perpassa muito bem as duas dimensões: há o poético das realidades documentadas

(como um homem, em determinado momento, que se diverte fazendo cócegas numa criança pequena – a qual se diverte mais ainda) e o poético dos estados de alma do próprio personagem-narrador, que jamais aparece na frente da câmera: o filme inteiro se passa com uma câmera subjetiva e poucas vezes se vê no cinema uma narração verbal e visual em primeira pessoa tão elaborada e natural ao mesmo tempo. O documento e a poesia se tocam como também poucas vezes se vê com verdade e beleza: a prostituta dos olhos tristes não foi apenas “registrada”;

o narrador nos diz que desistiu do programa com ela no caminho para o motel. Quanto àquela que sonha viver um grande amor, foi a única que fez o geólogo esquecer seus problemas durante a viagem – o programa durou 24 horas. Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo não é uma quase obra-prima como o longa anterior de Gomes (Cinema, Aspirinas e Urubus – 2005), mas é mais interessante do que os anteriores de Aïnouz (Madame Satã – 2002; O Céu de Suely – 2006), o que nos deixa bastante curiosos pelas próximas empreitadas dos dois cineastas.