quarta-feira, janeiro 17, 2007

A Festa de Margarete


Antes de mais nada, o devido e óbvio elogio ao diretor estreante Renato Falcão, por empreender a façanha de realizar o filme dos seus sonhos por conta do seu próprio bolso. Palmas por realizar e exibir, no Brasil de hoje, uma película muda e em preto-e-branco. A Festa de Margarete é, sob todos os pontos de vista, um filme corajoso e a saúde cinematográfica de uma nação necessita de (mais) filmes assim.

Mas a pergunta que se faz é: quais seriam as razões (mais profundas) de o realizador contemporâneo pensar e levar às vias de fato um filme mudo e em preto-e-branco? Começaremos, como é justo, com os motivos expressos pelo próprio artista, em depoimento ao “Diário de Pernambuco”:

Sempre me irritei com os diálogos brasileiros. As pessoas falavam como se estivessem lendo um papel. Não me considero um roteirista, não tenho formação, mas não me preocupo. Acho que os filmes deveriam ser antes de tudo visuais.

Palmas novamente. O cinema é, antes de mais nada, uma linguagem e uma arte visuais, a arte das imagens em movimento. Também é fato notório no cinema brasileiro o vício teatral da interpretação dos atores. Os atores falam com aquela retórica que fica bela no teatro, ridícula nas novelas de TV, e inaceitável no cinema. Contudo, as dúvidas que eu tenho talvez se resolvessem melhor a partir das seguintes perguntas:
1. Será que o diretor quis fazer um filme mudo e em preto-e-branco porque as imagens em tons de cinza, valorizando o claro-escuro, assim como a ausência de sons diegéticos seriam – por si só – os recursos estilísticos que melhor expressariam as idéias do filme, elaborada na mente do seu criador?
2. Ou será que o diretor quis realizar uma película utilizando – como um todo – a estética dos filmes da era muda, inspirando-se diretamente nela, talvez querendo homenageá-la?

Essas questões são da mais alta importância para sabermos se “A Festa de Margarete” é um filme que funciona ou não. Que é um filme muito bem realizado, em todos os aspectos técnicos, quanto a isso não há dúvidas. Não obstante, paira sobre ele a sombra de uma incoerência.

Por um lado, dada a parca, fragmentada e pouco conhecida história do cinema brasileiro, é interessante pensar que um filme como o de Renato Falcão poderia vir para preencher lacunas, para (re)criar fora do tempo – e de uma maneira um tanto mítica – a história dos nossos filmes, o nosso cânone cinematográfico. Seria uma fantasia, assim como a fantasia de José de Alencar ao tomar o índio Peri como um cavaleiro medieval tupiniquim (no romance “O Guarani”), ou a fantasia do cineasta Mário Peixoto ao propagandear que a sua obra-prima Limite tinha sido vista e elogiada por Serguei M. Eisenstein. Contudo, dada a “situação brasileira”, talvez essas fantasias sejam necessárias... Fazer o quê?

Mesmo assim, A Festa de Margarete apresenta uma incoerência de base bastante grave. Já respondendo, de maneira temerária, a pergunta colocada anteriormente, podemos afirmar que o filme inspira-se, como um conjunto, na estética dos filmes anteriores a 1929. Ele procura reproduzi-la na atuação chaplinesca dos atores: gestos e expressões exagerados, e na trilha sonora que busca “casar” com as imagens. Mas esses são aspectos acessórios da linguagem dos filmes da era muda. Quanto ao principal, Renato Falcão não o traz para o seu filme. Apesar de a iluminação, em alguns momentos, marcar bem os contrastes, e embora alguns planos sejam bem dotados daquele caráter iconográfico típico da infância do cinema, a posição e os movimentos da câmera não são – na maior parte do filme – condizentes com a estética histórica que o diretor quis, através de outros aspectos, representar. Eis a incoerência.

O que mais diferencia a estética daqueles tempos em relação aos nossos – se entendermos o cinema majoritariamente como arte visual – é a imobilidade da câmera. Nos filmes mudos, principalmente nos mais antigos (anteriores a Griffith), a câmera é quase sempre fixa em um único ponto, e esse ponto geralmente não é muito próximo dos atores. Nas poucas vezes em que se movimenta, é sempre um movimento duro e vagaroso (que é o que permitia a tecnologia da época). Apesar disso, “A Festa de Margarete” parece ter sido feito – literalmente – de acordo com a máxima glauberiana: “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”.

Os movimentos rápidos, dinâmicos, leves e dotados de um certo nervosismo subjetivista e daquele caráter jornalístico-documentário que faz a câmera em muitos momentos deste filme não têm nada a ver com os filmes históricos; mas têm tudo a ver com a estética dominante no cinema a partir dos anos 60 e 70. É claro que o filme de Renato Falcão não vai tão longe nesse estilo como, digamos, “Traffic” (EUA, 2000, dir.: Steven Soderbergh); mas nota-se, no filme, mais dessa estética do que suporíamos razoável numa película que busca recriar a estilística dos princípios do cinema.

O esforço pel”A Festa de Margarete” é louvável, mas o resultado final está mais para MTV do que para Griffith ou Chaplin (apesar da temática social do filme).

terça-feira, janeiro 16, 2007

Conservação e Invenção


Martin Scorsese, ao receber o Globo de Ouro de melhor diretor por “Os Infiltrados” (The Departed), disse que quis apenas fazer um filme de gângster como os (antigos) da Warner: Anjos da Cara Suja (“Angels With Dirty Faces”, 1938, dir.: Michael Curtiz) e Inimigo Público (“The Public Enemy”, 1931, dir.: William A. Wellman). É claro que um filme de Scorsese será sempre, no final das contas, um filme de Scorsese. Contudo, é interessante pensar nos parâmetros que um artista elege.

Acredito que as grandes obras de arte são as obras-primas e as que têm estas como modelo inspirador. Não se pode nunca perder os clássicos de perspectiva – esta é, aliás, uma das funções dos “clássicos”. O perigo é o artista (geralmente jovem) não estender a sua cultura, a sua bagagem, até as obras mais fundamentais. Um exemplo hipotético: um realizador jovem tem Quentin Tarantino como seu ídolo e quer fazer também um filme de gângster. O mais recomendável, obviamente, é que ele busque estudar, além de Tarantino, as fontes de Tarantino, as fontes das fontes de Tarantino, as fontes das fontes das fontes de Tarantino e assim sucessivamente. Ou, pelo menos, que esse jovem cineasta vá direto à fonte primordial dos filmes de gângster.

Correndo o risco de parecer ranzinza, não vejo muito nos jovens amantes de cinema um entusiasmo muito grande pelo cinema anterior à “nouvelle vague” dos anos 60. Muitas vezes, não vejo sequer um conhecimento básico do cinema realmente “clássico”. Entre jovens cinéfilos, falar que se gosta de Tarantino e de Almodóvar, de Godard e de Fellini é até lugar comum; mas falar que se adora Carl Dreyer, Jean Renoir, John Ford e Fritz Lang não é tão “cool”, tão “hype”...

Os filmes mais antigos acabam sendo mais lembrados por conhecedores e amantes mais profundos do cinema – será que são os únicos a terem paciência para ver, na íntegra e sem cochilar, filmes como Intolerância (1916, dir.: D. W. Griffith, dur.: 197 min.) ou Napoleão (1927, dir.: Abel Gance, dur.: 235 min.)?

Talvez o caráter mais realista da arte cinematográfica e o aspecto mais mercadológico da sua produção sejam responsáveis (em parte) pelo fenômeno. Ninguém, ao pegar um volume de A Ilíada ou de A Divina Comédia, vai reclamar ou pensar: “Que coisa mais velha! Isso não tem nada a ver!” Pode-se ter grande dificuldade na leitura dessas obras, mas os preguiçosos vão desqualificá-las por serem “cabeça” demais, e não por acharem-nas “velhas” demais... Já no cinema, como é comum torcerem-se os narizes para filmes em preto-e-branco! Filme mudo nem se fala... (o trocadilho não foi intencional)

Não sou conservador, mas é preciso manter o equilíbrio exato entre o que se mantém e o que se inventa. Se uma determinada arte se encontra em um momento excessivamente “vanguardista”, defenderei as tradições; se, por outro lado, a arte se acha por demais estagnada, serei o primeiro a pregar a revolução.

Ganhadores do Globo de Ouro 2007


MELHOR SÉRIE DE TV – DRAMA:
“Grey’s Anatomy”

MELHOR ATRIZ EM TV – DRAMA:
Kyra Sedgwick (“The Closer”)

MELHOR ATOR EM TV – DRAMA:
Hugh Laurie (“House”)

MELHOR SÉRIE DE TV – COMÉDIA:
“Ugly Betty”

MELHOR ATRIZ EM TV – COMÉDIA:
América Ferrera (“Ugly Betty”)

MELHOR ATOR EM TV – COMÉDIA:
Alec Baldwin (“3rth Rock”)

MELHOR MINISSÉRIE OU FILME DE TV:
“Elisabeth I”

MELHOR FILME – DRAMA:
“Babel”

MELHOR FILME – COMÉDIA:
“Dreamgirls”

MELHOR DIRETOR:
Martin Scorsese (“The Departed”)

MELHOR ATRIZ – DRAMA:
Helen Mirren (“The Queen”)

MELHOR ATRIZ – COMÉDIA:
Meryl Streep (“The Devil Wears Prada”)

MELHOR ATOR – DRAMA:
Forest Whitaker (“The Last King of Scotland”)

MELHOR ATOR – COMÉDIA:
Sacha Baron Cohen (“Borat: Cultural Learnings of America for Make Benefit Glorious Nation of Kazakhstan”)

MELHOR ATRIZ COADJUVANTE:
Jennifer Hudson (“Dreamgirls”)

MELHOR ATOR COADJUVANTE:
Eddie Murphy (“Dreamgirls”)

MELHOR FILME EM LÍNGUA ESTRANGEIRA:
“Letters from Iwo Jima”

sábado, janeiro 13, 2007

Séries de TV

Trechos de uma matéria publicada na Folha de S. Paulo, em dezembro último:

A televisão irá dominar o futuro da narrativa. Mais livre e ousada, dominada por escritores-produtores e tecnicamente impecável, baterá o cinema, na arte de criar ilusões e contar grandes histórias.

A opinião é de um dos mais famosos "treinadores" de roteiristas dos EUA, Robert McKee, 65, cujos alunos -50 mil pessoas entre diretores, atores, produtores, roteiristas e mesmo compositores de trilhas sonoras para o cinema- somam 94 nomeações ao Oscar, 26 delas conquistadas.

(...)

Folha - Nos últimos anos, escrever roteiros virou uma espécie de Eldorado para os jovens, considerando que um único bom script pode render uma pequena fortuna mesmo para um iniciante. Qual a sua opinião a respeito?
MCKEE - Essas coisas vêm e vão em ondas. Quando eu era muito jovem, a coqueluche era escrever um grande romance. Então, com o crescimento do teatro moderno, a onda mudou para a dramaturgia. Mais para o fim do século 20 a moda passou a ser escrever roteiros. Hoje, os melhores escritores da América estão migrando para a televisão. Estamos vivendo uma era de ouro no drama e na comédia televisivos.

Folha - Se os melhores estão na TV, o cinema está em declínio?
MCKEE - O cinema como uma forma de entretenimento sempre venderá ingressos, mas, como forma de arte, está em grande perigo. A ascensão de séries televisivas de expressão, como "Six Feet Under", "Sex and the City", "Deadwood" e "Família Soprano", corre paralelamente ao declínio do cinema. Considerando tendências que venho observando há duas ou três décadas, a televisão irá dominar o futuro da narrativa.

Realmente, quem busca, hoje em dia, enredos estimulantes, desenrolados em narrativas que utilizam procedimentos criativos e inusitados, vai encontrá-los com muito maior abundância na TV norte-americana do que no cinema de Hollywood. Os exemplos, nos últimos seis anos, são numerosos e diversificados. Passo a comentar, neste blog, alguns dos que, particularmente, mais me despertaram o interesse, fazendo-me sentir um entusiasmo novo e promissor. É claro que estou me referindo aos seriados divididos em episódios (dramáticos ou cômicos), que são o melhor produto de exportação da TV dos EUA. “Reality Shows” e outros tipos de programas são de uma outra natureza mais distante do cinema enquanto narrativa audiovisual dramatizada. Uma reflexão melhor sobre eles fica para um outro momento.

É de mão dupla o comentário que se pode fazer a respeito do fato de a maioria (quase todos) dos seriados tradicionalmente chamados de “enlatados” serem, atualmente, exibidos por aqui com os títulos originais em inglês. Mesmo as séries mais antigas, como Jornada nas Estrelas, são hoje transmitidas e discutidas sob a alcunha anglófona: “Star Trek”. Pode-se pensar que isso é negativo, que estamos abrindo mão de nossa própria língua nacional e, com isso, facilitando o processo de dominação cultural por parte dos EUA; por outro lado, podemos pensar que, já que se trata de uma produção cultural de uma nação estrangeira, nada mais coerente do que se manter o seu nome na forma original – principalmente se observarmos o fato de que a maioria desses seriados são exibidos com o áudio original em inglês (e legendas em português), nos canais por assinatura.
My Name is Earl


Série cômica criada por Greg Garcia, é bem diferente do formato de “sitcom”, marca registrada tradicional da TV americana. Não há as famigeradas “caixas de risadas”, abertas a qualquer sinal de chiste infame pronunciado por algum personagem. A ação também não é concentrada em um único ambiente, com a câmera fixa ocupando a posição de um espectador na platéia de um teatro. A decupagem e a narrativa de “My Name is Earl” são absolutamente cinematográficas. O humor não é centrado em frases de efeito ditas pelos personagens – o que faz a graça e a desgraça de séries como Friends e Will and Grace; o cômico aqui nasce exatamente das situações, estendendo-se pela maneira como os personagens reagirão a elas (o que vai muito além da fala). Nesse ponto, My Name is Earl é a verdadeira sitcom = comédia de situações.

Há quem deteste as comédias enlatadas da TV norte-americana, pois logo lhes vêm à mente coisas como Mad About You. Essas pessoas talvez gostem de “My Name is Earl”, assim como Arrested Development, pois são bem diferentes.

“Earl Hickey” é um caipira norte-americano com todos os jeitos e trejeitos, e que vive de pequenos e médios golpes praticados junto com sua “gangue”: o irmão, a esposa, o namorado da esposa (!) e um amigo. Um dia, ele ganha na loteria (sendo que o dinheiro com que ele comprara o bilhete é roubado), mas, logo em seguida, é atropelado e perde o bilhete premiado. No hospital, vendo em um programa de entrevistas alguém falar sobre o poder do Karma – o que aqui se faz, aqui se paga –, Earl tem a súbita iluminação: toda a sua vida é uma desgraça (inclusive a perda do bilhete de loteria) apenas porque ele sempre fez coisas más para as outras pessoas, por isso o “Carma” está muito irritado com ele... então, com medo de acabar sendo executado pelo “Carma”, ele faz uma lista de todas as maldades que fez e parte para corrigir uma por uma. Sua primeira missão é dar auto-confiança a um homem que, na época da escola, Earl infernizava com o “bullying”.

A serialização narrativa aqui também é bem interessante. Cada episódio (em média de 25 minutos) trata de uma missão específica da lista de Earl (o que não incomodará espectadores ocasionais), mas alguns personagens e fatos de episódios anteriores são citados ou reaparecem em subseqüentes, o que traz um andamento cronológico para a série. O último episódio da 1ª temporada elucida um mistério importante sobre a perda e a recuperação do bilhete premiado e, conseqüentemente, sobre a natureza da missão de Earl. Vai-se criando, assim, a expectativa em relação ao último episódio, em que Earl finalmente terminará de cumprir o seu “carma”.

A primeira temporada (recentemente lançada por aqui em DVD – a segunda está prestes a estrear nos EUA) contém episódios antológicos, como aquele em que Earl acaba prejudicando muito um sujeito; mais tarde, ele descobre que esse “mal” foi apenas a devida punição para um homem sem caráter, trazendo um grande bem a outras pessoas, suas vítimas. Earl conclui dizendo, com a sabedoria de um santo, que o “Carma” o usara para fazer o trabalho sujo...

É cômica, mas também é singela e sublime a maneira superficial e reacionária como um “bocó” interpreta um conceito tão alto como o de carma, usando-o para fazer o bem da maneira mais simples e ingênua (por que não pura?) que ele é capaz, o bem a si próprio a e outras pessoas. O lado sério e dramático de “My Name is Earl” está a anos-luz dos momentos melodramáticos de comédias como Friends. Também é belo o episódio em que Earl dá uma palestra na universidade sobre a sua “missão”. Sentimo-nos comovidos por sua boa vontade antes de pensarmos em ridicularizá-lo por sua ignorância em relação às “questões cósmicas”.

Earl é interpretado por Jason Lee (de filmes de Kevin Smith como “Barrados no Shopping” e “Procura-se Amy”), que cola tão bem quanto Jerry Seinfeld vivendo Jerry Seinfeld: a canastrice aqui é a maior das qualidades.

My Name is Earl é atualmente exibido no canal pago “FX”, aos domingos, às 18:00.

quinta-feira, janeiro 11, 2007

O Jogo da Morte


Alguns pontos altos da rica experiência cinematográfica vêm até nós, muitas vezes, de maneira abrupta e inesperada. Uma das melhores maneiras de se viver um filme é assisti-lo “sem querer querendo” – quando, vítimas inertes daquele tédio sonolento, zapeamos os canais da TV até cair em uma produção que nos hipnotiza lenta e astutamente; ou quando, para escapar ao metrô lotado da hora do rush, nós nos enfurnamos solitariamente em uma sala de exibição para ver “qualquer coisa”; ou ainda, quando somos praticamente arrastados a contra-gosto por alguém (namorada, amigos, etc), para ver aquele filme que, se dependesse de nossa única decisão, nunca o veríamos.

Essas situações tornam-se assim tão especiais quando o filme em questão realmente nos surpreende, além da nossa vontade, demolindo todas as nossas expectativas e transformando por completo nosso estado de espírito. Quando saímos profundamente enriquecidos por um filme do qual inicialmente não esperávamos coisa alguma – no máximo um entretenimento mediano. A experiência de começar a ver um filme com uma indisposição nervosa (ou com mera indiferença) e terminar a sessão tendo essa indisposição gradativamente transformada em um alegre entusiasmo é uma das melhores coisas que o cinema tem a oferecer. Pelo menos, é muito melhor do que entrar para ver aquela “obra-prima” e sair com a cara totalmente quebrada...

A televisão, e sua programação sempre randômica de filmes, é um excelente meio para assistir a produções que desconhecemos por completo e que dificilmente viríamos a conhecer de outro modo. A maioria dos pequenos grandes filmes que vi foi na TV, nas circunstâncias retratadas no primeiro parágrafo deste texto. Esses “pequenos grandes filmes” não fazem parte da queridinha linha do cinema “independente”, “alternativo”, “cabeça”. De jeito nenhum. São, na maioria dos casos, filmes de gênero produzidos com baixo orçamento (em relação aos blockbusters), porém, dotados de uma criatividade inversamente proporcional a este.

Filmes assim passam “batido” pela crítica e pelo grande público (alguns sequer entram no circuito comercial dos cinemas brasileiros, indo parar direto nas locadoras de vídeo ou na TV), mas conquistam o seu grupo de fãs, que, graças ao poderoso e anárquico marketing do “de boca em boca”, transformam-nos em cult. É extremamente interessante analisar filmes assim, as questões em que eles se baseiam e as que eles levantam, e que contribuem muito para assinalar a sua originalidade.

O Jogo da Morte (“Five Fingers”, EUA, 2005) ainda é por demais recente para ganhar a aura de “cult”, e talvez sequer tenha a capacidade para tanto; mas é um filme carregado de imaginação e de questões pertinentes a serem discutidas, e que surpreende. Assisti a ele nesta segunda-feira de madrugada, no canal pago Telecine Premium. Não chamou a atenção da mídia ou da crítica. Foi lançado em DVD em março do ano passado e acho que não passou pelos cinemas brasileiros (mas não tenho certeza total disso).

Escrito e dirigido por Laurence Malkin – que, antes dele, só realizara o obscuro “Soul Assassin” –, contando no elenco com os ótimos Laurence Fishburne (o Morpheus da trilogia “Matrix”) e Ryan Phillippe (que está na mais recente obra de Clint Eastwood, “A Conquista da Honra”, prestes a estrear no Brasil), Five Fingers (o título original é ótimo) é um suspense psicológico altamente claustrofóbico, com repercussões em questões sócio-políticas da mais alta prioridade no cenário mundial pós 11 de setembro. O enredo trata de Martijn (Phillippe), um jovem idealista holandês que está em Marrocos para implantar um programa de combate à fome por sua própria autoria e recursos. Então, ele é raptado – junto com o seu guia (vivido por Colm Meaney, o Chief O’Brien de “Star Trek: the Next Generation” e “Deep Space Nine”) pelo misterioso muçulmano Ahmat (Fishburne) que, usando recursos dos mais variados: desde uma partida de xadrez até a amputação sistemática dos dedos do pobre holandês, procura interrogá-lo sobre fatos que Martijn nega, mas que no fundo... Calarei por aqui. Deixo apenas as perguntas: quem é Ahmat e o que ele realmente quer? Será que Martijn é realmente quem diz ser? Quem é que diz a verdade? E o que é a verdade?

Se essa sinopse inicial já parece interessante, veja o filme inteiro e surpreenda-se com os acontecimentos posteriores.

A mútua desconfiança, a rede de mentiras tão bem trançada que se torna uma verdade, os segredos mantidos a todo custo, a paranóia, a descrença cínica em grandes ideais ao mesmo tempo em que se luta por eles com um fundamentalismo assustador, a frieza, a naturalidade, o cinismo e até a crueldade com que se faz um “trabalho” altamente discutível (com métodos mais discutíveis ainda), tudo isso é muito pertinente no mundo pós 11 de setembro de 2001 e aparece de modo contundente no filme. A atual geopolítica é um jogo, um jogo delicado e muito perigoso, onde nem todas as regras, peças, jogadas e jogadores estão claros e à mostra. Às vezes, tudo fica muito confuso, podemos ter em mente com precisão o que devemos fazer, mas, em tal cenário, vacilamos. Nesses casos, jogar o jogo é, na verdade, jogar o adversário, estudá-lo e manipulá-lo. É também o filme que manipula as emoções, idéias, ideais, preconceitos e expectativas do público; existe algo de hitchkokiano neste filme, em mais de um ponto. Ahmat diz, durante a partida de xadrez com Martijn, que os ocidentais jogam muito pôker e que deveriam jogar mais xadrez. Lembre-se dessa fala no final do filme e reflita.