Trechos de uma matéria publicada na Folha de S. Paulo, em dezembro último:
A televisão irá dominar o futuro da narrativa. Mais livre e ousada, dominada por escritores-produtores e tecnicamente impecável, baterá o cinema, na arte de criar ilusões e contar grandes histórias.
A opinião é de um dos mais famosos "treinadores" de roteiristas dos EUA, Robert McKee, 65, cujos alunos -50 mil pessoas entre diretores, atores, produtores, roteiristas e mesmo compositores de trilhas sonoras para o cinema- somam 94 nomeações ao Oscar, 26 delas conquistadas.
(...)
Folha - Nos últimos anos, escrever roteiros virou uma espécie de Eldorado para os jovens, considerando que um único bom script pode render uma pequena fortuna mesmo para um iniciante. Qual a sua opinião a respeito?
MCKEE - Essas coisas vêm e vão em ondas. Quando eu era muito jovem, a coqueluche era escrever um grande romance. Então, com o crescimento do teatro moderno, a onda mudou para a dramaturgia. Mais para o fim do século 20 a moda passou a ser escrever roteiros. Hoje, os melhores escritores da América estão migrando para a televisão. Estamos vivendo uma era de ouro no drama e na comédia televisivos.
Folha - Se os melhores estão na TV, o cinema está em declínio?
MCKEE - O cinema como uma forma de entretenimento sempre venderá ingressos, mas, como forma de arte, está em grande perigo. A ascensão de séries televisivas de expressão, como "Six Feet Under", "Sex and the City", "Deadwood" e "Família Soprano", corre paralelamente ao declínio do cinema. Considerando tendências que venho observando há duas ou três décadas, a televisão irá dominar o futuro da narrativa.
Realmente, quem busca, hoje em dia, enredos estimulantes, desenrolados em narrativas que utilizam procedimentos criativos e inusitados, vai encontrá-los com muito maior abundância na TV norte-americana do que no cinema de Hollywood. Os exemplos, nos últimos seis anos, são numerosos e diversificados. Passo a comentar, neste blog, alguns dos que, particularmente, mais me despertaram o interesse, fazendo-me sentir um entusiasmo novo e promissor. É claro que estou me referindo aos seriados divididos em episódios (dramáticos ou cômicos), que são o melhor produto de exportação da TV dos EUA. “Reality Shows” e outros tipos de programas são de uma outra natureza mais distante do cinema enquanto narrativa audiovisual dramatizada. Uma reflexão melhor sobre eles fica para um outro momento.
É de mão dupla o comentário que se pode fazer a respeito do fato de a maioria (quase todos) dos seriados tradicionalmente chamados de “enlatados” serem, atualmente, exibidos por aqui com os títulos originais em inglês. Mesmo as séries mais antigas, como Jornada nas Estrelas, são hoje transmitidas e discutidas sob a alcunha anglófona: “Star Trek”. Pode-se pensar que isso é negativo, que estamos abrindo mão de nossa própria língua nacional e, com isso, facilitando o processo de dominação cultural por parte dos EUA; por outro lado, podemos pensar que, já que se trata de uma produção cultural de uma nação estrangeira, nada mais coerente do que se manter o seu nome na forma original – principalmente se observarmos o fato de que a maioria desses seriados são exibidos com o áudio original em inglês (e legendas em português), nos canais por assinatura.
A televisão irá dominar o futuro da narrativa. Mais livre e ousada, dominada por escritores-produtores e tecnicamente impecável, baterá o cinema, na arte de criar ilusões e contar grandes histórias.
A opinião é de um dos mais famosos "treinadores" de roteiristas dos EUA, Robert McKee, 65, cujos alunos -50 mil pessoas entre diretores, atores, produtores, roteiristas e mesmo compositores de trilhas sonoras para o cinema- somam 94 nomeações ao Oscar, 26 delas conquistadas.
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Folha - Nos últimos anos, escrever roteiros virou uma espécie de Eldorado para os jovens, considerando que um único bom script pode render uma pequena fortuna mesmo para um iniciante. Qual a sua opinião a respeito?
MCKEE - Essas coisas vêm e vão em ondas. Quando eu era muito jovem, a coqueluche era escrever um grande romance. Então, com o crescimento do teatro moderno, a onda mudou para a dramaturgia. Mais para o fim do século 20 a moda passou a ser escrever roteiros. Hoje, os melhores escritores da América estão migrando para a televisão. Estamos vivendo uma era de ouro no drama e na comédia televisivos.
Folha - Se os melhores estão na TV, o cinema está em declínio?
MCKEE - O cinema como uma forma de entretenimento sempre venderá ingressos, mas, como forma de arte, está em grande perigo. A ascensão de séries televisivas de expressão, como "Six Feet Under", "Sex and the City", "Deadwood" e "Família Soprano", corre paralelamente ao declínio do cinema. Considerando tendências que venho observando há duas ou três décadas, a televisão irá dominar o futuro da narrativa.
Realmente, quem busca, hoje em dia, enredos estimulantes, desenrolados em narrativas que utilizam procedimentos criativos e inusitados, vai encontrá-los com muito maior abundância na TV norte-americana do que no cinema de Hollywood. Os exemplos, nos últimos seis anos, são numerosos e diversificados. Passo a comentar, neste blog, alguns dos que, particularmente, mais me despertaram o interesse, fazendo-me sentir um entusiasmo novo e promissor. É claro que estou me referindo aos seriados divididos em episódios (dramáticos ou cômicos), que são o melhor produto de exportação da TV dos EUA. “Reality Shows” e outros tipos de programas são de uma outra natureza mais distante do cinema enquanto narrativa audiovisual dramatizada. Uma reflexão melhor sobre eles fica para um outro momento.
É de mão dupla o comentário que se pode fazer a respeito do fato de a maioria (quase todos) dos seriados tradicionalmente chamados de “enlatados” serem, atualmente, exibidos por aqui com os títulos originais em inglês. Mesmo as séries mais antigas, como Jornada nas Estrelas, são hoje transmitidas e discutidas sob a alcunha anglófona: “Star Trek”. Pode-se pensar que isso é negativo, que estamos abrindo mão de nossa própria língua nacional e, com isso, facilitando o processo de dominação cultural por parte dos EUA; por outro lado, podemos pensar que, já que se trata de uma produção cultural de uma nação estrangeira, nada mais coerente do que se manter o seu nome na forma original – principalmente se observarmos o fato de que a maioria desses seriados são exibidos com o áudio original em inglês (e legendas em português), nos canais por assinatura.
My Name is Earl
Série cômica criada por Greg Garcia, é bem diferente do formato de “sitcom”, marca registrada tradicional da TV americana. Não há as famigeradas “caixas de risadas”, abertas a qualquer sinal de chiste infame pronunciado por algum personagem. A ação também não é concentrada em um único ambiente, com a câmera fixa ocupando a posição de um espectador na platéia de um teatro. A decupagem e a narrativa de “My Name is Earl” são absolutamente cinematográficas. O humor não é centrado em frases de efeito ditas pelos personagens – o que faz a graça e a desgraça de séries como Friends e Will and Grace; o cômico aqui nasce exatamente das situações, estendendo-se pela maneira como os personagens reagirão a elas (o que vai muito além da fala). Nesse ponto, My Name is Earl é a verdadeira sitcom = comédia de situações.
Há quem deteste as comédias enlatadas da TV norte-americana, pois logo lhes vêm à mente coisas como Mad About You. Essas pessoas talvez gostem de “My Name is Earl”, assim como Arrested Development, pois são bem diferentes.
“Earl Hickey” é um caipira norte-americano com todos os jeitos e trejeitos, e que vive de pequenos e médios golpes praticados junto com sua “gangue”: o irmão, a esposa, o namorado da esposa (!) e um amigo. Um dia, ele ganha na loteria (sendo que o dinheiro com que ele comprara o bilhete é roubado), mas, logo em seguida, é atropelado e perde o bilhete premiado. No hospital, vendo em um programa de entrevistas alguém falar sobre o poder do Karma – o que aqui se faz, aqui se paga –, Earl tem a súbita iluminação: toda a sua vida é uma desgraça (inclusive a perda do bilhete de loteria) apenas porque ele sempre fez coisas más para as outras pessoas, por isso o “Carma” está muito irritado com ele... então, com medo de acabar sendo executado pelo “Carma”, ele faz uma lista de todas as maldades que fez e parte para corrigir uma por uma. Sua primeira missão é dar auto-confiança a um homem que, na época da escola, Earl infernizava com o “bullying”.
A serialização narrativa aqui também é bem interessante. Cada episódio (em média de 25 minutos) trata de uma missão específica da lista de Earl (o que não incomodará espectadores ocasionais), mas alguns personagens e fatos de episódios anteriores são citados ou reaparecem em subseqüentes, o que traz um andamento cronológico para a série. O último episódio da 1ª temporada elucida um mistério importante sobre a perda e a recuperação do bilhete premiado e, conseqüentemente, sobre a natureza da missão de Earl. Vai-se criando, assim, a expectativa em relação ao último episódio, em que Earl finalmente terminará de cumprir o seu “carma”.
A primeira temporada (recentemente lançada por aqui em DVD – a segunda está prestes a estrear nos EUA) contém episódios antológicos, como aquele em que Earl acaba prejudicando muito um sujeito; mais tarde, ele descobre que esse “mal” foi apenas a devida punição para um homem sem caráter, trazendo um grande bem a outras pessoas, suas vítimas. Earl conclui dizendo, com a sabedoria de um santo, que o “Carma” o usara para fazer o trabalho sujo...
É cômica, mas também é singela e sublime a maneira superficial e reacionária como um “bocó” interpreta um conceito tão alto como o de carma, usando-o para fazer o bem da maneira mais simples e ingênua (por que não pura?) que ele é capaz, o bem a si próprio a e outras pessoas. O lado sério e dramático de “My Name is Earl” está a anos-luz dos momentos melodramáticos de comédias como Friends. Também é belo o episódio em que Earl dá uma palestra na universidade sobre a sua “missão”. Sentimo-nos comovidos por sua boa vontade antes de pensarmos em ridicularizá-lo por sua ignorância em relação às “questões cósmicas”.
Earl é interpretado por Jason Lee (de filmes de Kevin Smith como “Barrados no Shopping” e “Procura-se Amy”), que cola tão bem quanto Jerry Seinfeld vivendo Jerry Seinfeld: a canastrice aqui é a maior das qualidades.
My Name is Earl é atualmente exibido no canal pago “FX”, aos domingos, às 18:00.
Há quem deteste as comédias enlatadas da TV norte-americana, pois logo lhes vêm à mente coisas como Mad About You. Essas pessoas talvez gostem de “My Name is Earl”, assim como Arrested Development, pois são bem diferentes.
“Earl Hickey” é um caipira norte-americano com todos os jeitos e trejeitos, e que vive de pequenos e médios golpes praticados junto com sua “gangue”: o irmão, a esposa, o namorado da esposa (!) e um amigo. Um dia, ele ganha na loteria (sendo que o dinheiro com que ele comprara o bilhete é roubado), mas, logo em seguida, é atropelado e perde o bilhete premiado. No hospital, vendo em um programa de entrevistas alguém falar sobre o poder do Karma – o que aqui se faz, aqui se paga –, Earl tem a súbita iluminação: toda a sua vida é uma desgraça (inclusive a perda do bilhete de loteria) apenas porque ele sempre fez coisas más para as outras pessoas, por isso o “Carma” está muito irritado com ele... então, com medo de acabar sendo executado pelo “Carma”, ele faz uma lista de todas as maldades que fez e parte para corrigir uma por uma. Sua primeira missão é dar auto-confiança a um homem que, na época da escola, Earl infernizava com o “bullying”.
A serialização narrativa aqui também é bem interessante. Cada episódio (em média de 25 minutos) trata de uma missão específica da lista de Earl (o que não incomodará espectadores ocasionais), mas alguns personagens e fatos de episódios anteriores são citados ou reaparecem em subseqüentes, o que traz um andamento cronológico para a série. O último episódio da 1ª temporada elucida um mistério importante sobre a perda e a recuperação do bilhete premiado e, conseqüentemente, sobre a natureza da missão de Earl. Vai-se criando, assim, a expectativa em relação ao último episódio, em que Earl finalmente terminará de cumprir o seu “carma”.
A primeira temporada (recentemente lançada por aqui em DVD – a segunda está prestes a estrear nos EUA) contém episódios antológicos, como aquele em que Earl acaba prejudicando muito um sujeito; mais tarde, ele descobre que esse “mal” foi apenas a devida punição para um homem sem caráter, trazendo um grande bem a outras pessoas, suas vítimas. Earl conclui dizendo, com a sabedoria de um santo, que o “Carma” o usara para fazer o trabalho sujo...
É cômica, mas também é singela e sublime a maneira superficial e reacionária como um “bocó” interpreta um conceito tão alto como o de carma, usando-o para fazer o bem da maneira mais simples e ingênua (por que não pura?) que ele é capaz, o bem a si próprio a e outras pessoas. O lado sério e dramático de “My Name is Earl” está a anos-luz dos momentos melodramáticos de comédias como Friends. Também é belo o episódio em que Earl dá uma palestra na universidade sobre a sua “missão”. Sentimo-nos comovidos por sua boa vontade antes de pensarmos em ridicularizá-lo por sua ignorância em relação às “questões cósmicas”.
Earl é interpretado por Jason Lee (de filmes de Kevin Smith como “Barrados no Shopping” e “Procura-se Amy”), que cola tão bem quanto Jerry Seinfeld vivendo Jerry Seinfeld: a canastrice aqui é a maior das qualidades.
My Name is Earl é atualmente exibido no canal pago “FX”, aos domingos, às 18:00.
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