sábado, dezembro 23, 2006

007 - Cassino Royale


O fato de “Tróia” (EUA, 2004, dir.: Wolfgang Petersen), pretensa adaptação da clássica epopéia “A Ilíada”, não apresentar qualquer dos elementos fantásticos da mitologia grega revela bastante sobre a nossa cultura contemporânea. Vivemos um tempo de profunda (e cada vez maior) desilusão, que disfarçamos sob uma máscara de obsessão pelo “realismo”. Parece que não nos permitimos mais dar asas livres à fantasia... como se isso fosse coisa de criança ou de tolos. Assim, nossos novos mitos – e também as releituras que fazemos de velhos mitos – são cada vez mais permeáveis (e até vítimas, assim como todos nós) de todas as vicissitudes que caracterizam a vida no mundo material.

Neste ano de 2006 que passou, tivemos no cinema dois grandes exemplos que ilustram deliciosamente tal situação:
1. O Super-Homem vaidoso, ciumento e falível, em “Super-Homem, o Retorno” (EUA, 2006, dir.: Bryan Synger);
2. O James Bond inexperiente, indeciso, sensível (até apaixonado) e – é lógico – falível, em “007 – Cassino Royale” (EUA, 2006, dir.: Martin Campbell).

Reclamou-se da “feiúra” de Daniel Craig para encarnar o agente 007, mas seus traços mais “rudes” condizem bem com o personagem: esse novo 007 (na verdade, em início de sua carreira como agente “00”) não tem qualquer sutileza, sabedoria ou aquele charme cínico / dândi / niilista que caracterizam os outros 007. Ele vai aprender tudo isso – a muito custo – ao longo de suas aventuras e desventuras neste filme. E o filme mostra esse processo muito bem. “Cassino Royale” é como que um “romance de formação” (bildungsroman) de James Bond, o qual já foi um mito “cavaleiresco-cavalheiresco” para o homem-masculino ocidental na segunda metade do século XX, mas que aqui recebe carne e espírito humanos como qualquer outro pobre-diabo.

Com o perdão do termo, neste filme James Bond praticamente só se “fode”... Seus fracassos e sofrimentos são levados muito a sério pelo filme (em comparação, é claro, com todos os outros filmes da franquia). A cena da tortura é magnífica, atinge de maneira muito significativa a exata masculinidade do Sr. Bond. Depois dos mais de vinte filmes da série, uma cena dessas num filme desses joga uma luz surpreendentemente nova no mito e no homem 007. Eu nunca imaginaria que um dia veria o Sr. Bond chorar...

Mas o mais interessante é ver que tudo o que faz de James Bond um mito nasceu de muito sofrimento e frustração. De uma maneira muito romântica, só mesmo um homem que perdeu a sua humanidade pode transformar-se nessa figura que tanto conhecemos. Neste filme, a polaridade se inverte completamente e o agente 007 vira um verdadeiro e profundo anti-herói. Em princípio, são valores positivos para o crescimento do indivíduo a superação dos traumas, a adaptação às condições adversas e a manutenção da objetividade para se fazer “o que é preciso”; mas, em se tratando de um agente do MI-6 com permissão para matar, a coisa fica mais complicada...

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Sympathy for Godard


Os jovens de hoje que gostam de ver os filmes de Godard para se sentirem mais inteligentes devem tomar cuidado com esta produção. A inspiração apaixonada com que o mestre francês filma os seus assuntos e idéias pode levar o impetuoso e pouco experiente público jovem a fazer uma leitura apenas média do filme, ou seja, a se envolver de uma maneira muito entusiasmada e pouco crítica com o universo da contra-cultura, foco deste documentário poético. Assim, só aumentará o grupinho dos enfants terribles de vinte e poucos anos cuja maior fantasia é ter vinte e poucos anos em 1968.

Jean-Luc Godard pode ser um cineasta militante, mas está anos-luz à frente de um cinema dito “politizado” (que voltou à moda nesta década) que não passa de demagogia, ou reacionarismo, ou pregação para convertidos, ou “chuva no molhado”, chame do que quiser. Isso porque o cinema documentário de Godard é socrático. Expliquemos.

“Sympathy for the Devil” (1968) é um filme que alterna cenas dos Rolling Stones em estúdio, ensaiando a famosa canção homônima, com entrevistas fictícias de personagens simbólicos (como a moça “Eve Democracy”), leituras de obras subversivas, discursos e encenações chocantes envolvendo os Panteras Negras, pichações de muros com neologismos de efeito (“cinemarx”, “sovietcong”), enfim, tudo envolvendo a chamada contra-cultura. O diretor de “Acossado” faz tudo isso de maneira poética e inspirada, onde o cinema fala mais alto do que as idéias, temas ou mensagens que ele carrega, ainda que tudo seja da mais alta importância. É uma lição para filmes que pretendem lidar com ideologia.

Godard faz isso com o devido distanciamento analítico e crítico. Como bem disse um crítico dos anos 70, para falar mal do filme, “Sympathy for the Devil” mais contempla a revolução do que a propõe (Roger Greenpun, New York Times, 27 de abril de 1970). Ora, eu acredito que esse seja o melhor elogio que se possa fazer à produção, pois destaca exatamente sua preocupação fundamental. Eu disse que Godard é socrático justamente porque tudo o que ele faz é nos colocar em contato direto (e até violento) com os fatos urgentes, estimulando a reflexão e o debate. Apenas isso. O próprio realizador não “fala” através de sua câmera. Ele deixa os outros falarem e se mostrarem; o espectador que tome uma posição a respeito do que é mostrado e dito na tela. Os filmes documentários de Godard são diálogos que ele propõe ao espectador. O cineasta aplicará o método socrático do diálogo principalmente em seus documentários e programas de entrevistas para a TV, já no final dos anos 70, como “6x2” e “France / Tour / Détour / Deux / Enfants”. O mesmo crítico acima citado também reclama do excesso de didatismo em “Sympathy for the Devil”. Mas esse “didatismo” faz parte do modelo socrático e é essencial para se estimular a reflexão do público, mais do que simplesmente fazê-lo engolir idéias e conclusões pré-concebidas.

Por isso eu disse que esse filme é um perigo para certos jovens pedantes de hoje. Eles podem não enxergar e não compreender essa proposta de reflexão distanciada sobre a contra-cultura. É surpreendente ver o diretor de “Acossado” filmar os Rolling Stones e a contra-cultura com uma câmera pra lá de clássica, em planos de muito longa duração (principalmente mostrando os Stones em estúdio) e quase sempre de conjunto, ou seja, distanciado mesmo! Sendo quase todo feito em planos de conjunto rigorosamente enquadrados, o filme realiza bem a proposta de mostrar tudo em seu contexto e assim ajudar melhor na reflexão e na conclusão a serem empreendidas pelo espectador. As cenas com os Panteras Negras no ferro-velho de automóveis são belíssimas.

Eu não consigo deixar de pensar (e me divertir) em como seria um “remake” desse filme feito por algum jovem cineasta virtuose da geração (pós-)MTV: câmera na mão e tremida, ritmo de videoclipe, diversos filtros chocantes na iluminação e nas cores, primeiros-planos emocionados... (Que horror!)
O diabo é uma figura simpática e está em todos os lugares.

Sympathy for the Devil


“Please allow me to introduce myself
I'm a man of wealth and taste
I've been around for a long, long years
Stole many a man's soul and faith

And I was 'round when Jesus Christ
Had his moment of doubt and pain
Made damn sure that Pilate
Washed his hands and sealed his fate

Pleased to meet you
Hope you guess my name
But what's puzzling you
Is the nature of my game

I stuck around St. Petersburg
When I saw it was a time for a change
Killed the czar and his ministers
Anastasia screamed in vain

I rode a tank
Held a general's rank
When the blitzkrieg raged
And the bodies stank

Pleased to meet you
Hope you guess my name, oh yeah
Ah, what's puzzling you
Is the nature of my game, oh yeah

I watched with glee
While your kings and queens
Fought for ten decades
For the gods they made

I shouted out,
"Who killed the Kennedys?"
When after all
It was you and me

Let me please introduce myself
I'm a man of wealth and taste
And I laid traps for troubadours
Who get killed before they reached Bombay

Pleased to meet you
Hope you guessed my name, oh yeah
But what's confusing you
Is just the nature of my game

Just as every cop is a criminal
And all the sinners saints
As heads is tails
Just call me Lucifer
'Cause I'm in need of some restraint

So if you meet me
Have some courtesy
Have some sympathy, and some taste
Use all your well-learned politesse
Or I'll lay your soul to waste, um yeah" Sympathy for the Devil - Jagger / Richard, 1968