terça-feira, setembro 22, 2009

Up - Altas Aventuras


Depois da obra de arte que é Ratatouille (2007) e da obra-prima que é Wall.E (2008), dois filmes que dificilmente aceitarão a alcunha de “infantis”, a Pixar decide voltar a navegar por águas mais conhecidas e seguras com este Up (2009). É claro que continua sendo mantida a alta qualidade que faz com que o estúdio (agora pertencente à Disney) supere seu concorrente mais direto, a Dreamworks. Up é melhor do que a Era do Gelo 3 (desta mesma safra de 2009) – mesmo sendo a nova produção de Carlos Saldanha também muito boa.

O diferencial é que a equipe da Pixar parece dar mais linha à criatividade e à experimentação vanguardistas – excetuando-se, naturalmente, os gênios individuais e relativamente independentes de gente como Tim Burton (A Noiva Cadáver, 2005) e Henry Selick (Coraline, 2009); o grande clássico de ambos ainda é O Estranho Mundo de Jack (“The Nightmare Before Christmas”, 1993). Próximo do universo “gótico” desses dois artistas está o curta que abre a exibição de Up, intitulado Parcialmente Nublado (“Partly Cloudy”).

A Pixar ganhou notoriedade e soube mantê-la ao longo dos anos graças a curta-metragens de animação computadorizada premiados como Luxo Jr. (1986) e Gery’s Game (1998). Arrisco-me a dizer que este Parcialmente Nublado tornar-se-á antológico também. Desde Red’s Dream (outro curta, este de 1987), passando por Knick Knack (curta, 1989), Procurando Nemo (2003), Carros (2006) e os já citados Ratatouille e Wall.E, o estúdio parece ter escolhido como personagens favoritos os párias, ou seres que por alguma razão tornam-se excluídos, renegados, esquecidos, exilados.

Parcialmente Nublado e Up não são diferentes, e é desse romantismo que a Pixar tira sua força muito particular, em histórias corajosamente melancólicas. Em comparação, o cinismo do Shrek da Dreamworks não soa mais do que uma piada de mau gosto. Fazer filmes que funcionem ao mesmo tempo para crianças e para adultos não é bolar personagens e histórias ambíguos que agradem à ingenuidade daquelas e à malícia destes (especialidade da Dreamworks), mas procurar o ponto central na alma dos indivíduos que permanecerá sempre o mesmo em todas as idades.

Esse ponto jamais poderá ser categorizado como infantil ou adulto, embora as crianças e os velhos são os que têm as melhores condições de reconhecê-lo e cultivá-lo. Esse ponto não é a mistura entre o infantil e o adulto, é algo que os transcende. Perpassa toda a nossa vida, ajuda a amarrá-la e dar-lhe significado, mas não deriva dela, ainda que se manifeste nela. Esse ponto é a poesia. Nada mais do que a poesia. E a poesia não pode ser explicada, por mais que a gente tente. Ela deve ser vivenciada. E uma das maneiras para tanto é ver animações como Wall.E ou Up.

domingo, setembro 13, 2009

No Tempo das Diligências


O caráter universal e a função mítica do western já foram bem assinalados por André Bazin no ensaio “O western ou o cinema americano por excelência”. Os filmes de “bangue-bangue” não dizem respeito apenas a particularidades da formação dos Estados Unidos da América como nação, no século XIX – destacando-se delas a “conquista” do oeste e a Guerra de Sessessão. Para atraírem platéias em todos os continentes e para influenciarem e se assemelharem tanto ao cinema e a literatura de culturas tão diferentes (pensamos nos filmes de samurais de Akira Kurosawa e nas histórias de jagunços de João Guimarães Rosa), as fitas de western devem possuir algo de eterno, de transcendente. Assim sendo, os maiores clássicos do cinema norte-americano são constituídos por símbolos que velam e revelam realidades mais profundas por debaixo das diferenças nacionais: símbolos que chamamos de mitos e que levam à intuição de arquétipos fundamentais do inconsciente coletivo da humanidade.

Em que medida a saga do rumo ao oeste norte-americano se assemelha à saga dos cavaleiros andantes medievais, dos marujos e piratas desbravadores de oceanos, dos samurais andarilhos do Japão feudal, dos jagunços e cangaceiros do sertão brasileiro, dos fora-da-lei românticos que vagam por entre as estrelas na ficção científica? Todo esse folclore trata, no fundo, de novas formas de cosmogênese: a constituição ou descoberta de novos universos graças ao valor de indivíduos que se adaptam e vencem as adversidades de um meio natural hostil. Não é esta a grande epopéia humana, desde que nossa espécie deixou o continente africano? Não é em função de adaptar-se ao meio, descobrindo o valor específico do indivíduo em relação a esse meio, que se enfronharam os arquétipos e, a partir deles, se formaram os mitos, segundo a Psicologia Analítica de C. G. Jung? O western é apenas uma dentre várias facetas que se localizam na intersecção dos traços que compõem e orquestram algo que se pode chamar de humano.

A força primeva e ilógica da noite do inconsciente, que está em toda parte:

“A razão normal de coisa nenhuma não é verdadeira, não maneja. Arreneguei do que é a força – e que a gente não sabe – assombros da noite. A minha terra era longe dali, no restante do mundo. O sertão é sem lugar.” João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas

O “sertão está em toda parte”, o “sertão é dentro da gente”: O espaço, para Guimarães Rosa, é a paisagem da alma, tanto quanto o é o cenário do Monumental Valley para John Ford, tão real e mágico ao mesmo tempo. Travessia. A travessia do sertão, para o jagunço Riobaldo de “Grande Sertão: Veredas”, é a travessia da vida, é o próprio viver: a jornada da alma. O mesmo pode ser dito da travessia empreendida pelo jovem caubói Ringo Kid (John Wayne), em No Tempo das Diligências (1939), de Ford. Nessa viagem, em busca da auto-afirmação de sua própria identidade (o processo de individuação), o jovem Wayne terá que lidar com as forças do meio, numa dialética de adaptação e superação delas. Essas forças são representadas pela selvageria (a natureza, o índio) e pela barbárie (o preconceito, a corrupção e hipocrisia da sociedade civilizada, representada por alguns dos seus companheiros de diligência. A mesma situação se põe, cotidianamente, a cada um de nós.

No destino de Ringo Kid está a vingança pelo assassinato de sua família: imperativo que constela os valores de honra, amor e lealdade – fundantes do indivíduo moderno e estruturantes de todos os westerns. No processo, ele encontrará o amor – cuja conquista será a sanção definitiva para a sua maturidade. Mas a travessia do sujeito também será a travessia de uma sociedade. A pequena diligência a atravessar o deserto assume a proporção mítica de uma arca de noé que não carrega o melhor de cada espécie. As contradições que reparamos no microcosmo social da stagecoach devem-se antes à decadência de um velho mundo (o mundo puritano; europeu?) do que às vicissitudes naturais do processo de constituição de uma personalidade (caso do solícito fora-da-lei Ringo Kid). A riqueza e complexidade humana expressas pelas figuras dos oito personagens que viajam na diligência, dividindo bem ou mal um espaço interno tão pequeno (e seguro?) em meio à vastidão desconhecida do deserto, é uma das coisas mais admiráveis nesta obra-prima de John Ford – e metáfora sensível da nossa civilização urbana, minúscula diligência atravessando a escuridão.

Temos a jovem Dallas (Claire Trevor), garota de bordel expulsa da cidade pela liga das senhoras zelosas da moral e dos bons costumes (retratadas com impiedoso sarcasmo por Ford); Ringo Kid, fugitivo do qual já falamos; Buck (Andy Devine), o condutor da carruagem, figura folclórica do parvo; Hatfield (John Carradine), o dândi, o jogador galante; Doc Boone (Thomas Mitchell), o médico alcóolatra e sarcástico, grande responsável pelo rico elemento de humor do filme; Lucy Mallory (Louise Platt), jovem grávida e membro da liga das senhoras, que viaja para se encontrar com o marido e será cortejada por Hatfield; Curly (George Bancroft), o xerife representante da lei, que viaja como segurança da diligência; Sr. Peacock (Donald Meek), homem franzino, tímido e medroso, extremamente polido, dono de um discurso de conotações religiosas, o que lhe dá a alcunha de Reverendo; no entanto, ele é vendedor de whisky (caixeiro viajante). Por fim, temos o Sr. Gatewood (Berton Churchill), banqueiro irritadiço, senhor de um discurso muito à lá George W. Bush, mas que viaja de fuga, hunto com o dinheiro dos clientes que acabou de roubar.

Todos eles, de uma forma ou outra, receberão alguma parcela da sátira de John Ford, exceto Ringo e Dallas (as maiores vítimas e ao mesmo tempo os mais corajosos), que, no final, receberão a recompensa de serem os formadores de uma nova civilização no oeste conquistado, terra prometida para John Ford – colocando-se aqui de acordo com os valores fundantes de seu país (a liberdade, a natureza verdadeira dos valores vivenciados) em oposição às convenções cansadas da velha letra da lei européia). A última frase do filme, pronunciada pelo médico ébrio Boone, ao ver a carroça que leva o novo casal Ringo e Dallas se afastar no horizonte, resume muito da mensagem proposta por Ford: “They’re safe from the blessings of civilization” (Eles estão seguros das bênçãos da civilização). No baixar das cortinas, a maior das alfinetadas irônicas distribuídas por John Ford ao longo da fita.

Não se trata da defesa dicotômica da natureza contra a civilização, da forma como diversas manifestações culturais nos propõem. Para Ford, a natureza puramente selvagem representa as zonas mais escuras, desconhecidas e perigosas do inconsciente, que o homem deverá saber integrar (não se trata de reprimir, mas integrar) à consciência, se quiser alguma evolução psicológica e social. A luta entre o homem e a natureza, entre a cavalaria e os índios apache em No Tempo das Diligências adquire o status das mitologias mais primitivas, mais essenciais de qualquer civilização humana – incluindo a dos próprios índios apache. É claro que isso tudo bate de frente contra a perspectiva histórica dos fatos. Mas André Bazin explica e justifica perfeitamente a impertinência histórica dos westerns em função dos seus propósitos míticos – coisa, aliás, que qualquer mitologia sempre fez. O pensamento racional moderno pode criticar tais procedimentos, mas a Psicologia Analítica já demonstrou a sua importância para a saúde e evolução psicológica do ser humano.

O humanismo de John Ford busca integrar o aspecto verdadeiro do civilizado e o aspecto verdadeiro do natural, do selvagem. É a única maneira de escapar à barbárie: tanto a do mundo civilizado (o preconceito), quanto a do mundo natural (as chacinas promovidas pelos apaches). Ringo Kid e Dallas tornam-se assim, para o católico Ford, novíssimos Adão e Eva (o único casal realmente válido da diligência-arca), que partem para morar no rancho dele, justamente na fronteira (física e moral) entre o civilizado e o natural, na intersecção ainda mal definida entre o território do branco americano, o do índio e o do mexicano. Longe das “bênçãos” da civilização, mais próximos dos perigos do deserto; não obstante, buscando por conta própria sua própria adaptação, sua própria superação, criando e vivendo suas próprias vidas, numa nova e mais verdadeira civilização, integrada ao meio natural. Eis o novo Gênesis de John Ford.

Não é suficiente analisar a moral de No Tempo das Diligências pela ótica do individualismo. Não se trata de sujeitos que lutam contra o coletivo para melhor realizarem suas idiossincrasias pessoais. Para o cineasta, quando os valores da coletividade deixarem de corresponder aos valores do indivíduo, será a hora de se defender e estabelecer uma nova coletividade, purificando os seus valores. Quando passa a haver uma contradição entre os imerativos da Lei e aqueles da consciência individual, os indivíduos que preferirem manter e seguir suas próprias consciências serão logicamente expulsos, excluídos da “civilização”. E, uma vez que eles se tornam párias, cabe a eles estabelecer uma nova civilização, em algum lugar distante das zonas de decadência. Não é exatamente esse o mito de fundação dos Estados Unidos da América?

Para Ford, a América jovem (o oeste conquistado) não é imune ao germe de sua própria corrupção – cujos efeitos mais devastadores nós viemos acompanhando nos últimos oito anos. Assim, concomitante à explosão mundial da barbárie (1939, ano de início da Segunda Guerra Mundial), ele lança um filme que propõe a refundação da América já no momento mesmo de sua fundação. Mitologicamente, a refundação da civilização humana ou a refundação de cada indivíduo por si mesmo, antes que seja corrompido ou destruído pelas forças da barbárie. Em 1939, já era tarde demais para essas reflexões, mas e quanto a hoje? Chamo Bazin:

“Admirável ilustração dramática da parábola do fariseu e do publicano, No Tempo das Diligências, de John Ford, nos mostra que uma prostituta pode ser mais respeitável do que os beatos que a expulsaram da cidade e do que a mulher de um oficial; que um jogador debochado pode saber morrer com dignidade de aristocrata, que um médico bêbado pode praticar sua profissão com competência e abnegação; um fora-da-lei perseguido, por algum ajuste de contas passado e provavelmente futuro, dar provas de lealdade, de generosidade, de coragem e de delicadeza, enquanto um banqueiro considerável e considerado foge com o cofre.” O western ou o cinema americano por excelência

Todo tempo é tempo de conscientização, esclarecimento e discernimento. Inclusive – talvez principalmente – no tempo de desespero: seja durante uma perseguição por índios sanguinários, durante uma guerra mundial ou durante uma crise econômica global. Se um novo entendimento é possível, uma nova atitude é possível. Exceto para o banqueiro (caso perdido), mas incluindo na redenção e salvação a atitude final da mulher do oficial (Sra. Mallory), ao contrário do que Bazin pode dar a entender.

Mas não nos esqueçamos de que No Tempo das Diligências é, acima de tudo e antes de mais nada, cinema. Trata-se do filme que, reza a lenda, Orson Welles teria assistido 40 vezes antes de realizar Cidadão Kane (1941). A obra de John Ford é uma aula de cinema do primeiro ao último minuto de exibição. O espírito de pioneirismo do cineasta está presente, por exemplo, nas ousadias de colocar a câmera no chão, para que os cavalos passassem “por cima” dela em contra-plongée (ponto de vista que olha de baixo para cima); ou em colocar a câmera em cima da diligência, enquanto esta adentra um rio para atravessá-lo (a balsa havia sido destruída pelos índios). Outro belo exemplo da linguagem do cinema clássico está na cena em que a diligência é perseguida por muitos índios a cavalo. Os homens defendem-na com carabinas e revólveres, enquanto as duas mulheres se protegem como podem. Então, as munições começam a acabar. O jogador dândi, Hatfield, vê que lhe sobrou uma única bala no revólver.

Ele olha para o lado e vê a Sra. Mallory, desesperada, a rezar de olhos fechados. A câmera mantém um primeiro plano frontal no rosto dela. Vemos, então, o revólver do Sr. Hatfield se aproximar lentamente pela lateral, apontando para a cabeça da pobre mulher (metonímia magnífica, percebemos aí a extensão do caráter do “gambler”, o qual prefere ele mesmo matar a companheira do que permitir que ela seja torturada e assassinada brutalmente pelos índios). O revólver está prestes a disparar, quando ouvimos, ao mesmo tempo, o estampido de um tiro, o grito surdo do Sr. Hatfield e o som distante de cornetas militares. Vemos a mão soltar lentamente o revólver, os olhos da Sra. Mallory se abrirem e seu rosto expressar um sorriso, que logo se transforma numa alegria eufórica. A cavalaria acaba de chegar. Maneira sublime de a fé e a intervenção divina serem apresentadas no cinema. Não há, absolutamente, cenas como essa, com esse espírito estético e temático, no cinema contemporâneo.

Entretanto, a maior mostra da poesia cinematográfica de John Ford neste filme está em um outro momento. Num plano de conjunto, vemos a diligência (o ataque dos apaches ainda não tinha acontecido) pequenina e à grande distância, percorrendo o Monumental Valley. A câmera está aparentemente instalada no alto de um penhasco. Então, num rápido travelling lateral para a esquerda (e com grande susto para o espectador), a câmera revela a cavalaria indígena à beira de um penhasco, a observarem a diminuta diligência lá embaixo. A cena se repete (ênfase redundante que pode parecer ingênua hoje em dia). Neste único movimento de câmera, estão resumidas as questões filosóficas do filme, de que tratamos. O choque que se dá entre a civilização e a selvageria, entre o homem e a natureza, entre o conhecido e o desconhecido, entre o consciente e o ainda inconsciente; choque que se dá, entretanto, pela travessia, pela passagem de um a outro, o que pressupõe a união entre ambos. Duas posições tão distantes, em um mesmo espaço tão vasto, unidas por um único movimento da câmera-olho. A totalização do espaço. A totalização do mundo, do homem. E a transcendência.

terça-feira, setembro 08, 2009

A Onda


Muito do que eu poderia dizer sobre este A Onda (“Die Welle”, Alemanha, 2008, dir.: Dennis Gansel) eu já o fiz a propósito daquele A Onda (“The Wave”, EUA, 1981, dir.: Alexander Grasshoff), principalmente no que se refere ao ensinamento anti-barbárie que estes dois filmes podem nos proporcionar. Prefiro não chamar o alemão de refilmagem do americano, mas entender que foi inspirado nos mesmos acontecimentos que lhe deram origem. As diferenças são pontuais, mas essenciais.

Primeiramente, os personagens aqui estão mais delineados e elaborados, os acontecimentos vão sendo mais bem engendrados e se desenrolam com mais naturalidade; em suma, o filme alemão é mais narrativo e menos “de tese”. O que não causa tanta espécie, visto que o original americano tinha apenas 44 minutos de duração (este tem 102). Contudo, o que mais chama a atenção é a não-pequena diferença no desfecho de ambas as histórias. A moral é a mesma, mas o telefilme de 1981 fecha de uma maneira menos... digamos assim, traumática... do que a versão atual.

Fico agora curioso para saber qual dos dois “causos” mais se aproxima do real – que aconteceu na Cubberley High School em Palo Alto, Califórnia, em abril de 1967. O fato é que existe um artigo (“The Third Wave”) escrito pelo próprio professor que conduziu o experimento da “Onda”, chamado Ron Jones – o qual, de acordo com o IMDB, tornou-se autor profícuo indicado até para o Prêmio Pulitzer. Correrei atrás. Trivia: Ron Jones faz uma ponta em Die Welle, como cliente em uma cafeteria.

De qualquer maneira, a transposição da fábula para a Alemanha atual não deve ser vista como justificativa para as idéias que defendem a relação entre o nazismo e as exclusivas condições sócio / histórico / econômico / culturais da Alemanha. No filme, os adolescentes germânicos do século XXI são iguais aos de qualquer país do mundo globalizado. A bem entender as idéias do filósofo Adorno (no livro “Educação e Emancipação”), as condições do surgimento da barbárie são muito mais comuns e sutis do que gostaríamos de admitir. É ficar de olho.

segunda-feira, setembro 07, 2009

Arraste-me Para O Inferno


Modinha do empregado de banco

Eu sou triste como um prático de farmácia,
sou quase tão triste como um homem que usa costeletas.
Passo o dia inteiro pensando nuns carinhos de mulher
mas só ouço o tectec das máquinas de escrever.

Lá fora chove e a estátua de Floriano fica linda.
Quantas meninas pela vida afora!
E eu alinhando no papel as fortunas dos outros.
Se eu tivesse estes contos punha a andar
a roda da imaginação nos caminhos do mundo.
E os fregueses do Banco
que não fazem nada com estes contos!
Chocam outros contos para não fazerem nada com eles.

Também se o diretor tivesse a minha imaginação
o Banco já não existiria mais
e eu estaria noutro lugar.

Murilo Mendes

Eu já trabalhei em banco, por uns dois infelizes anos. Era aquele um ambiente abjeto, repleto de pessoas abjetas vivendo uma rotina abjeta. É claro que nunca recusei a extensão da hipoteca a nenhuma velhinha humilde – meu trabalho lá era bem mais simples do que isso, eu não passava de um arquivista. Mas não foi preciso ser amaldiçoado por nenhuma bruxa cigana para que meu corpo e minha alma fossem definhando a olhos vistos com o passar dos meses. Eu sentia que, se continuasse por muito mais tempo lá, iria morrer...

A morte, quando já se está no inferno. Sim, um inferno dantesco, movido por irônicos tormentos de cujo alívio não se pode ter qualquer esperança. Apesar de tudo, minha vida não era um filme de “terrir” do Sam Raimi (graças a Deus, não?!); desse modo, minha inércia, minha preguiça, minha inaptidão e indisposição para o trabalho ajudaram-me a conquistar uma bem merecida demissão (mas sem justa causa). Depois disso, virei professor de Literatura e nunca mais pus os pés num escritório.

Nos tempos de Citibank (sim, era esse), eu ouvia demais aquele discurso da eficiência, da produtividade, da otimização, da coragem para tomar as “decisões difíceis” – era o suficiente para me fazer quase vomitar cotidianamente no carpete bem aspirado do sétimo andar. Em Arraste-me Para O Inferno (“Drag Me To Hell”, EUA, 2009), a despretensão de Sam Raimi (que, além de diretor, é roteirista) é bem clara: as tão propagadas “decisões difíceis” são o pecado mortal. Além de qualquer redenção, elas levam rápida e diretamente para o inferno.

Já nos cansamos de ver, ao longo dos últimos 150 anos, estratégias econômicas e militares (sobremaneira, mas existem outras) serem pensadas e conduzidas como meras questões de logística, deixando-se absolutamente de lado a dimensão e as consequências humanas de tais políticas. Enfim, não é isso o que define de maneira bem especial a contemporaneidade? Sam Raimi coloca frente a frente duas forças que alegorizam a dualidade do mundo moderno:

1. a razão positivista, a ciência, a tecnologia e a lógica econômica, representadas pela “heroína” e seu namorado. Aquela é a encarnação da futilidade bancária, as mesquinhas ambições profissionais, o consumismo vulgar. Este levanta a bandeira da ciência (no caso, a psicanálise freudiana) como única chave para a descoberta de todas as verdades de um mundo que já “superou” a ilusão do sobrenatural. O “terrir” de Sam Raimi faz uma deliciosa piada com os dois.

2. as forças do inconsciente (e não o simplório inconsciente de Freud, mas o de Jung, animado por incontáveis arquétipos, mitos e forças que escapam ao intelecto, por mais que nos esforcemos em contrário – aliás, a tirada que se faz no filme com a velha polêmica Freud / Jung é muito bem colocada), os poderes teriomórficos (zoomórficos) de uma (sobre) natureza que está muito além do nosso entendimento e mais ainda do nosso controle.

Os primeiros desses elementos tentam varrer os segundos para debaixo do tapete (tanto no capitalismo quanto no comunismo) com uma neurose que nos mostra já o inútil, o ridículo e o doentio de tal mentalidade. É a dissociação tão falada pelos jungianos, que produz o verdadeiro mal estar na nossa civilização, fenômeno a um só tempo psíquico e social. Impossível viver assim. Consequentemente, o inferno não será nada mais do que a figurativização de um estado de alma insuportável que nós inventamos para nós mesmos.

Sam Raimi já tinha feito a “sobre-natureza” revoltar-se sarcasticamente contra a presunção do homem (e da mulher) modernos em The Evil Dead (1981). É claro que ele não é nada tão subversivo quanto George A. Romero, mas distribui lá as suas alfinetadas. Arraste-me Para O Inferno é um daqueles filmes que provocam jocosamente os preconceitos e a ideologia do espectador.

Por exemplo, muitos de nós também não concederíamos a extensão da hipoteca para a pobre velha; afinal, o banco já tinha feito isso duas vezes antes e de nada adiantara. Quantos de nós não concordarão com a atitude da mocinha bancária? Da mesma forma que concordamos com as mais diversas formas da bárbárie que se apresentam diariamente aos nossos olhos, tanto no cinema quanto na TV.

Adiante no filme, quantos de nós não concordarão em “presentear” o objeto amaldiçoado para qualquer pessoa, apenas para escaparmos à condenação eterna? Pelo menos, havemos de concordar em dá-lo para alguém “malvado”, alguém que realmente “mereça”. Contudo, os protagonistas dos filmes de terror de Sam Raimi merecem tudo o que lhes acontece; mas não cabe a nós sermos os seus juízes e (ou) carrascos.

Como já disse Edgar Allan Poe, toda história de terror deve colocar em pauta alguma questão moral. O horror tem que possuir um significado, uma função, uma causa e consequência (sem querer parecer aqui excessivamente racionalista). Os contos de assombro estão mais ligados aos contos de fadas do que se costuma imaginar. E Sam Raimi faz – continua fazendo – isso muito bem.

domingo, setembro 06, 2009

O Balão Vermelho


Pode acreditar: O Balão Vermelho é um daqueles filmes que nos fazem erguer as mãos aos céus e agradecer pela existência de uma coisa chamada Cinema. Estará este pequeno grande filme dentre os maiores da sétima arte? Será ele o maior curta-metragem de todos os tempos? Terá potencial para se tornar um dos maiores filmes na vida de um bom cinéfilo, pelo menos? Não sei, e prefiro nem pensar nessas coisas. O fato é que certas películas só fazem por crescer dentro de nós, logo após as termos finalmente conhecido. Certas películas só fazem por fazer crescer dentro de nós coisas que constituem o melhor de nós, nossa alma. Alguns filmes são cultivadores de almas.

O Balão Vermelho renova em nós a capacidade da visão poética, especificamente a visão da criança. Renova em nós o gosto pela novidade, pelo fantástico cotidiano (ou cotidiano fantástico), a descoberta da própria vida e do mundo (e de coisas além), com todas as suas doses de prazer e de dor, de conforto e de perigo, principalmente. Os perigos mais essenciais, que não se reduzem à “questão social” ou psicológica. São os perigos que constituem a simples questão de se estar vivo. “Viver é muito perigoso”, já dizia o jagunço Riobaldo no Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa.

Todo o filme se constrói e se apresenta dentro de uma tonalidade mítica, o simbólico mais fundamental do balão dotado de todo o brilho do vermelho do technicolor em um mundo cinzento, numa cidade anêmica. O Balão Vermelho (“Le Ballon Rouge”) é uma produção francesa de curta-metragem (34 minutos de duração) escrita e dirigida por Albert Lamorisse em 1956. Recebeu a Palma de Ouro em Cannes no mesmo ano e o Oscar de melhor roteiro original em 1957. Lamorisse é autor de uma outra fita clássica do cinema infantil, uma espécie de realismo mágico infantil (“off-Disney”, naturalmente), chamada O Cavalo Branco (1953).

Ambos os filmes foram relançados em cinemas de São Paulo no ano passado. Mas, pelo que pude ver, não há qualquer sinal ainda de lançamentos em DVD. De qualquer maneira, O Balão Vermelho conta a história de um menino (Pascal Lamorisse, filho do diretor) e seu balão, que o segue pelas ruas de Paris como se fosse um cãozinho. O final é absolutamente incontável. As situações mostradas são de uma imaginação incrível, com um poder sugestivo que só o cinema mesmo consegue obter. Extrair drama e significado a partir da simples e abjeta figura de um balãozinho vermelho exige uma dose de arte e de sensibilidade que não se vê com freqüência.

Vendo este filme, compreendemos melhor as possíveis fontes de obras tão únicas quanto Wall.E (EUA, 2008). Estamos falando aqui de algo que foge completamente daquelas obras pseudo-infantis (na literatura ou no cinema) que mal disfarçam as formas do mais pobre moralismo, as tentativas mais repressoras de se enquadrar (preparar) a criança para a “vida adulta”. Obras que destroem o espírito da criança fazendo dela menos do que ela é. Não é o que acontece com Lamorisse, que só tem uma preocupação: brincar. Brincar com a arte, com a imaginação, com a vida, com o mundo. O poder ilógico e criativo do sonho, da poesia; eis a chave.

André Bazin (“A Montagem Proibida”, in O Cinema: Ensaios) fala do zoomorfismo d’O Balão Vermelho. Entretanto, parece-nos que se trata mais de uma prosopopéia, no sentido que o balãozinho que vemos na tela não é transformado num animal – no que o animal tem de “irracional” e “selvagem”. Somente associamos a imagem do balão vermelho à de um fiel cachorrinho na medida em que costumamos enxergar esse animal como “o melhor amigo do homem”. Dotamos nossos animais de estimação de um caráter específico e atribuímo-lhes comportamentos que nada mais são, na verdade, do que espelho de nossas próprias almas.

Daí a prosopopéia, a personificação, o repositório mais arcaico dos nossos mitos e arquétipos essenciais. Por isso, o balão de Lamorisse está mais para uma antropomorfização simbólica, na medida em que o dotamos de uma “personalidade” significante. O amor que o balão tem pelo garoto é o nosso próprio amor, que transferimos aos animais e objetos para que estes nos devolvam numa relação com o outro cuja função é simbolizar a relação de nós conosco mesmos. A imaginação simbólica exercitada a partir de uma realidade prenhe de magia latente, o realismo mágico. Eis a arte sublime.

Considerando a pura experiência cinematográfica, O Balão Vermelho será uma verdadeira aula, uma apresentação do que é a arte das imagens (e sons) em movimento. A começar pela música tema, composta por Maurice Leroux e absolutamente inesquecível. A emoção, sutil e sublime, evocada pela música logo nos créditos iniciais já nos transporta com carinho e afeição e nos coloca exatamente no centro do universo que virá a seguir, com o próprio filme. Mas as maiores qualidades desta película estão na fotografia. Em primeiro lugar, a sua qualidade cromática: o fortíssimo contraste entre o vermelho do balão e o cinzento do mundo ao redor – com todas as implicações simbólicas, conforme já discutimos.

Em segundo lugar, a composição dos planos no filme apresenta as grandes qualidades pictóricas, fotogênicas, etc, dos maiores fotógrafos franceses. O diretor de fotografia Edmond Séchan aproveitou o rigor e a sensibilidade plástica de Willy Ronis (1910) e os misturou ao senso do “instante decisivo” que é a assinatura estética de Henri Cartier-Bresson (1908-2004), talvez o maior fotógrafo de todos os tempos. Cada fotograma de O Balão Vermelho evoca o rigor e o humanismo, o aspecto do eterno e do passageiro, o insólito e o banal, que habitam a pintura do Renascimento ao Impressionismo.

Bazin, no mesmo ensaio supra citado, faz um elogio da fita de Lamorisse pelo que a riqueza cinematográfica nela não depende da montagem, defendendo com isso a tese de que a montagem não é o velho e tão buscado “específico cinematográfico”, a montagem não é o supra-sumo da arte do cinema. Há uma cena, logo no início do filme, que mostra bem isso. Encerramos este texto com ela, procurando sugerir no leitor o valor único da experiência cinematográfica que ela proporciona (o ponto máximo da aula de cinema do Professor Lamorisse). Vemos o menino descendo por uma escadaria nas ruas de Paris, indo para a escola.

A câmera está colocada pouco mais à frente dele, poucos degraus mais abaixo. Então, o garoto Pascal, ao se aproximar de um poste de luz, tem a sua atenção desviada para cima, para onde imaginamos eu esteja a lâmpada do poste. Ele pára. Começa a escalar o poste, devagar e com cuidado, enquanto a câmera se mantém fixa no corpo do personagem: sem sair do nível do chão, a câmera sobe o seu olhar conforme Pascal vai subindo no poste, sem jamais revelar ao espectador o que o garoto viu lá no alto. Não há nem haverá qualquer corte. Quando o menino finalmente chega ao alto, estende o corpo e o braço, alcançando um balão vermelho que estava enroscado pelo seu cordão no topo do poste.

Pascal desce e segue o seu caminho, carregando seu novo achado. Qualquer corte no meio desta cena estragaria irremediavelmente seu potencial artístico. E o fato de o balão só ser revelado ao espectador no momento exato em que o menino o alcança com os dedos contribui magnificamente para a surpresa, para o valor da descoberta, para a curiosidade e o poder da imaginação que tanto fazem parte do universo infantil e que o filme consegue despertar na alma do espectador utilizando de um mero plano-sequência. Os maiores resultados estéticos de um filme são atingidos com uma sabedoria tão simples...

quarta-feira, setembro 02, 2009

Brüno


Eu não gosto de “Pânico na TV”; também não gosto de “CQC”. Não adianta me dizerem o quanto esses programas são inteligentes, o quanto eles são “ousados”. Esta última palavra já se esvaziou de qualquer valor semântico que ainda poderia ter: “ousado” não vai além das frases de efeito das vinhetas de qualquer emissora de TV aberta.

Tenho uma amiga que não gostou de Borat (2006). Achou nele o mesmo tipo de picaretagem que exemplifiquei acima. Talvez eu concorde, mas num grau menor. Para mim, a grande farsa do humor pseudo-satírico é o “Saturday Night Live”. Já o programa de Sacha Baron Cohen e os dois filmes baseados em seus personagens: o já citado “Borat” e agora o Brüno (EUA, 2009, dir.: Larry Charles) possuem ainda alguma reserva de pensamento livre e de novidade.

Enquanto fabulação, Brüno não vai além de Borat, soando neste caso mesmo artificial: o filme não passa como “mockumentary” (o pseudo-documentário paródico). Os grandes clássicos do gênero: Zelig (1983, dir.: Woody Allen) e This is Spinal Tap (1984, dir.: Rob Reiner) são infinitamente superiores como obras cinematográficas. No entanto, a provocação de algumas de suas cenas são constrangedoramente deliciosas.

Tudo o que Cohen faz é sabotar os preconceitos da “América profunda”. As situações mostradas e os diálogos constituem-se verdadeiros atentados terroristas contra as estruturas da ideologia média. Como tais, essas mesmas cenas balançam na ambigüidade das escolhas éticas e do bom gosto (o que nos remete muito a coisas como “Pânico na TV”). Seria isso válido e legítimo como “liberdade de expressão”? Ou tempos desesperados pedem medidas desesperadas? Cada um julgue por si.