segunda-feira, março 30, 2009

Palavra (En)cantada


Palavra (En)cantada é um documentário honesto, feito com inteligência e sensibilidade. Mesmo assim, não vai além do que se espera das cabeças bem-pensantes neste nosso Brasil contemporâneo: uma preocupação politicamente correta de se mostrar as diversas facetas do objeto em estudo, mas que não deixa de trair um ponto de vista central essencialmente elitista. Vejamos: o novo filme de Helena Solberg (que realizara Vida de Menina em 2004) discutirá as relações entre poesia e letra de música; ou melhor, o filme deixará que os próprios poetas, músicos e “especialistas” (professores universitários) discutam o assunto. Muito bem.

Começando com gente como Adriana Calcanhoto (que nos presenteou com uma bela “canja” envolvendo uma antiga cantiga provençal de Arnaut Daniel), Chico Buarque de Holanda, Arnaldo Antunes e os professores doutores músicos Luiz Tatit e José Miguel Wisnik (verdadeiros biscoitos finos), em um determinado momento da exibição eu já estava me remexendo inquieto na poltrona, na esperança do momento em que o filme finalmente começaria a falar da música popular brasileira de fato. Eis, então, que são chamados ao picadeiro os rappers Black Alien e Ferréz, B. Negão (o mais próximo do universo do funk carioca que este filme ousou chegar, ainda sim terrivelmente distante) e

Martinho da Vila; sem contar as cenas que mostram os desafios de rima e improviso empreendidos por cantadores repentistas e MC’s de rap – verdadeiros achados. Mesmo assim, considerando que do “outro lado” ainda há Tom Zé, Zélia Duncan, Lenine, José Celso Martinez Corrêa, Jorge Mautner e Lirinha (o Justin Timberlake das garotas universitárias, vocalista do Cordel do Fogo Encantado), concluímos que este filme acaba pendendo mais para as velhas (e sempre as mesmas) manifestações musicais do “bom gosto”, daquela “MPB” que sempre está na boca dos professores de português (e literatura) – mas nunca dos seus alunos.

O desequilíbrio não é tão forte assim, este pequeno e bom filme continua sendo bastante recomendável. Mas a diretora bem que poderia ter buscado beber um pouquinho a mais nas fontes realmente populares de nossa música; dizer que nelas não há poesia alguma, ou uma poesia de qualidade “inferior” seria o cúmulo de um absurdo que, não obstante, perpassa o discurso de muitos dos espectadores de um filme como este. Ora bolas, por que não entrevistar Paulo Coelho, co-autor de magníficas canções em parceria com Raul Seixas? Por que não pesquisar o forró “brega”, a música sertaneja “brega”, o pagode, os clássicos como Odair José, Nelson Gonçalves, Reginaldo Rossi, Roberto Carlos e Erasmo Carlos?

(Estes dois últimos são sofisticados mesmo, inclusive dentro dos padrões acadêmicos de “poesia”, conforme atestam pérolas do quilate de “Detalhes” e “As curvas da estrada de Santos” – quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça). Por que não mergulhar mais a fundo no (sub)mundo do “pancadão”? Enfim, se a diretora tentou, mas não conseguiu (imagino que não seja lá muito fácil entrar em contato com Paulo Coelho e Roberto Carlos), tudo bem. Mas não podemos perdoar forma alguma de “vista grossa”, pois muita gente já faz isso demais por aí. Do outro lado, um compositor que lança um disco de “MPB” chamado “Pérolas aos poucos”, fazendo o tipo de música que ele faz, não merece ser levado a sério. Mas não interessa falar quem é. Quem quiser, que descubra.

sábado, março 28, 2009

Watchmen


Finalmente, Zack Snider realizou um filme no qual os maneirismos tão caros ao diretor de 300 (2006) e Madrugada dos Mortos (2004) ganham vida e significado. No entanto, os maiores agradecimentos devem ser prestados a Alan Moore e Dave Gibbons, autores da obra original. Ambos elaboraram, utilizando os recursos das histórias em quadrinhos, um conceito de storytelling visual que se aproxima, com muito virtuosismo e pertinência narrativo-dramática, da linguagem própria do cinema – uma verdadeira decupagem. A contribuição de Snider é bastante natural: seu estilo se casa, quase que espontaneamente, com o que seria uma adaptação “fiel” da obra de Moore-Gibbons.

Isso não quer dizer que Zack Snider tenha grande talento ou competência como cineasta. Sua felicidade é a mesma que Tom Cruise, por exemplo, tem como ator: seu tipo físico e personalidade simplesmente ficam perfeitos com tais papéis e quais histórias. Uma vez que ambos possuam plena consciência disso e orientem suas carreiras de acordo, ponto para eles. Watchmen é um filme perfeito, em sua proposta. Não gosto do tipo de afirmação que vou fazer, mas corro os riscos mesmo assim: Watchmen é a melhor adaptação que o cinema já empreendeu de uma história em quadrinhos. Temos aí um grande parâmetro para o que vier depois.

É preciso entender que os filmes que se fazem baseados em super-heróis dos gibis não são, geralmente, adaptações de alguma história específica (graphic novel, minissérie, etc). A fantasia em destaque, nesse caso, é transformar em carne e osso figuras míticas que até então só eram vistas na “pulp fiction”. Eis o grande valor do mais recente Batman, de Christopher Nolan (e também, mais ainda, o grande valor do Coringa representado por Heath Ledger). São, essencialmente, filmes de cinema, que não se preocupam – logicamente – em imitar a linguagem quadrinística, cujo maior valor (e limite, ao mesmo tempo) é sugerir um efeito, uma impressão de imagens em movimento, organizadas segundo as leis da montagem cinematográfica.

É por isso que as tentativas de transformar a tela do cinema numa página de gibi, empreendidas por Ang Lee no seu Hulk (2003), não são mais do que risíveis – uma curiosidade pitoresca tal qual as antigas engenhocas que tentavam “animar” as imagens antes da invenção do cinematógrafo. Lee errou porque tentou levar, literalmente, o papel para a tela. Não entendeu que a essência de uma determinada forma de linguagem não está nos meios físicos que ela utiliza, mas no modo como o próprio código (os paradigmas e os sintagmas; no caso, a fotografia e a montagem) se desenvolve utilizando o potencial e os limites dos meios tais (papel ou película).

E é exatamente onde Ang Lee fracassa que Zack Snider triunfará. Mas ele já estava com a faca e o queijo na mão. O caminho lhe tinha sido aberto, preparado e pavimentado por Alan Moore e Dave Gibbons, que empreenderam uma das mais (senão a mais) cinematográfica obra dos quadrinhos. Em termos de decupagem, era muito fácil levar Watchmen do papel para a tela grande (para quem dispusesse dos recursos financeiros e tecnológicos para tanto, é claro). A “maxissérie” original (12 volumes) já era praticamente o storyboard para um filme. Que bom que Snider entendeu (e muito bem) isso. A longa duração da fita (162 minutos; será lançada nos EUA um DVD com versões estendidas que chegarão a 205 minutos) atesta o fato.

Watchmen, o filme, é uma cópia, quase quadro a quadro, da obra original (e pensar que existe uma versão em I-MAX que, até agora, está sem data de estréia no Brasil). Estão ali todos os elementos que fazem a sofisticação artística de Alan Moore e Dave Gibbons: os “movimentos de câmera”, a ironia, os paralelismos metafóricos (envolvendo diversos planos da narrativa, seja numa montagem paralela, seja usando a profundidade de campo), a intrincada intertextualidade (que o filme trabalha bastante utilizando a trilha sonora, incrível acréscimo estético em relação aos quadrinhos: as letras das músicas, dentre as quais contamos Nat King Cole, Bob Dylan e Jimi Hendrix, parecem comentar – às vezes ironicamente – o que se passa na cena).

Tanta virtuose é natural que caia como uma luva para duas obras com a proposta pós-moderna de desconstruir a cultura pop e a civilização da qual ela é a expressão-mor. Em outros contextos, Watchmen soaria constrangedoramente pueril. Enfim, este filme deve ser pensado com o mesmo rigor e seriedade com que se pensa em adaptações de obras literárias. Mais do que fidelidade, as equivalência e pertinências estéticas e temáticas que podemos traçar entre o original e a adaptação são grandes exemplos do que se pode conquistar quando se tem visão e sensibilidade suficientes para compreender uma proposta, um projeto. E me digam uma coisa: o que é aquele Rorschach, hein?!

quinta-feira, março 19, 2009

Coraline e O Mundo Secreto


Nos limites entre o consciente e o inconsciente, entre o mundo físico e o metafísico, entre o real e o mito, entre a prosa e a poesia, entre o adulto e o infantil, entre a vigília e o sono, entre o desvelado e o segredo, a razão e o instinto, o temporal e o eterno, a luz e as trevas, o masculino e o feminino, o bem e o mal, o yin e o yang, encontra-se a obra (ou delírio? – daydream / devaneio) de Henry Selick e Neil Gaiman. Coraline retira sua impressionante força da ambigüidade que está na base do pensamento infantil, mitológico e (ou poético). Trata-se de uma vidência toda especial que era atributo dos antigos poetas / profetas das civilizações (civilizações?) primitivas, num tempo em que o homem ainda se encontrava mais conectado às raízes do seu próprio ser (o inconsciente) e de todos os seres (a natureza).

Hoje, neste nosso mundo absolutamente dessacralizado e violentado das piores maneiras, tais funções restam nas mãos dos artistas (escritores? cineastas?). Selick e Gaiman, inserindo-se na melhor tradição dos escritores “videntes” e suas fábulas de infantis para adultas (Lewis Carroll) ou de adultas para infantis (Johnathan Swift) promovem o sempre rico e altamente pertinente embate entre a vivência mito-poética universal (por mais que se queira reprimi-la) e as (se é que se pode chamar) vivências do mundo contemporâneo, pós-moderno, pós-estruturalista, pós-tudo. Devemos dar graças (aos primitivos deuses pagãos) que ainda existem, no cinema, gente como Henry Selick, Tim Burton, Guillermo Del Toro, Hayao Miyazaki (diretor de A Viagem de Chihiro) – sem contar aqueles que produzem para a TV,

como C. H. Greenblatt (a mente insana criadora da séria animada Chowder, atualmente em cartaz no Cartoon Network) e Maxwell Atoms (responsável pelas Aventuras de Billy e Mandy, também do Cartoon Network). Numa indústria cultural assolada por “Hanna Montana”, “High School Musical”, “Gossip Girl”, “Lazytown”, “Crepúsculo” e outras enfermidades cujos males para as almas das crianças e adolescentes ainda serão pagos pela sociedade de um futuro bastante próximo, respiramos aliviados em saber que a sombra da barbárie ainda não obscureceu todos os pontos da superfície desta terra em relação a qual uns poucos (ainda) iluminados se sentem cada vez mais exilados. Nos extras do DVD de O Estranho Mundo de Jack, Henry Selick (o diretor) explica as suas afinidades com Tim Burton (o roteirista)

dizendo algo como ambos pertencendo ao mesmo universo (ou à mesma raça espiritual, ou coisa assim). Pois bem. Que esses “alienígenas” em nosso meio se unam e façam frente à sistemática violação do espírito humano livre, criativo e totalizante (no sentido de dialogar com e unir todos os planos de oposições que compõem nosso ser e nossa existência numa universalidade transcendente), zelando particularmente para jamais fazer ou deixar que se façam das crianças e adolescentes nada menos do que eles realmente são. Em nosso tempo, qualquer idéia de revolução, mudança ou reflexão crítica deverá passar, necessariamente, por esses âmbitos, sob a pena de não fazer nada mais do que reproduzir – ainda que sob novas roupagens – velhas formas de barbárie.

Artistas dessa natureza não tratam de criar fábulas “góticas”, ou de mostrar o lado “cruel” e “macabro” do universo infanto-juvenil. O buraco é muito mais embaixo: gente da raça de Lewis Carroll, assumindo heroicamente a função dos profetas dos antigos tempos, não nos deixa esquecer velhos arquétipos, e suas representações míticas das mais essenciais; com isso, eles nos fazem lembrar o tempo todo de nós mesmos, ainda que as forças tenebrosas da “modernidade” (que vão muito além de uma mera “massificação”, “banalização” ou “fragmentação” dos indivíduos) estejam aí para promover o contrário. Coraline, por sua vez, promove nada mais nada menos do que sugestões para um verdadeiro (e sempre livre, significativo e nada dogmático) encontro de nós conosco mesmos, com este e com quaisquer outros mundos.

quinta-feira, março 12, 2009

Milk - A Voz da Igualdade


Gus Van Sant vem se tornando, sem dúvida alguma, um dos cineastas mais pertinentes da atualidade. Ele está em cena já faz algum tempo (o filme que o revelou foi Drugstore Cowboy, de 1989); mesmo assim, é estimulante acompanhar a evolução de sua carreira: cada filme novo de Van Sant chega com o impacto da primeira obra de um “enfant terrible”. É um efeito interessantíssimo e nada fácil de obter. Naturalmente, como autor (ou aspirante a autor), o cinema de Van Sant tem lá as suas idiossincrasias estilísticas, que aparecem em alguns filmes mais pesadamente do que em outros. Não é o caso deste Milk (2008).

Se, em Paranoid Park (2007) e Last Days (2005), sentíamos algumas gratuidades estéticas e – principalmente – um certo distanciamento sarcástico em relação aos personagens centrais mostrados (apesar de a câmera sempre os acompanhar de perto), nesta mais recente película o espectador há de perceber e se comover com o grande envolvimento do filme, enquanto discurso, nos acontecimentos e pessoas referenciadas – quase reverenciadas. Milk é uma sensível elegia desta personalidade tão peculiar que é Harvey Milk. Temos aqui um ótimo filme-biografia – diferente de muitos outros produzidos em Hollywood justamente pelo equilíbrio entre forma e conteúdo alcançado por Van Sant.

Milk apresenta, na essência, a assinatura artística do seu diretor; contudo, desta vez as escolhas da mise en scène estão condicionadas absolutamente em função da pertinência dramática, narrativa e psicológica das personagens. O discurso fílmico – muito visível enquanto construção, o que é típico de Van Sant – apresenta-se aqui servindo exclusivamente ao engrandecimento do protagonista. Engrandecimento esse que é bastante maduro, ou seja, não há nada aqui de emotiva e excessivamente condescendente, tampouco de uma paródia tragicômica disfarçada de “mostrar-o-lado-humano-da-personagem” – coisas que vemos tão freqüentemente em cinebiografias.

O filme deixa muito claro que Harvey Milk é nada menos do que um herói. Por isso, esta película coloca-se no lado oposto às duas últimas produções anteriores do cineasta, citadas mais acima. É interessante compará-la com o “Benjamin Button” de David Fincher – outro filme que, à sua própria maneira, distancia-se da produção mais recente do seu diretor – para entendermos o como se faz uma biografia elegíaca cinematográfica de verdade (seja ficcional ou baseada em “fatos reais”). Milk obedece bem a muitos dos gostos hollywoodianos sem apelar para muitos dos cacoetes hollywoodianos. Logicamente, o autor de Elephant (2003) não está fazendo concessões (como pareceu tanto ser o caso mais recente de Fincher).

Gus Van Sant está, como em Gênio Indomável (1997) e Encontrando Forrester (2000), assumindo uma posição claramente subjetiva e dotada de um juízo de valor fortemente positivo em relação aos personagens mostrados, arrastando carinhosamente o espectador para esta rede de identificações. Tudo isso está muito claro na própria tessitura narrativa, dramática e audiovisual do filme – pois não se trata aqui de ficar especulando sobre as intenções do “autor”. Pela primeira vez em quatro anos, a câmera de Van Sant identifica-se intelectual e afetivamente com o protagonista, talvez com uma força nunca antes experimentada.

Como cinema político / politizado, Milk consegue fazer frente às melhores produções de Costa Gravas, pensando no calor, no envolvimento quase pedagógico, panfletário ou proselitista (no melhor sentido) do discurso do filme com as lutas e ideologias retratadas. Este filme corre o “risco” de acabar se tornando um modelo para o gênero. Apesar de tudo, Gus Van Sant não é o único responsável pela força fotogênica e “cinematogênica” desta obra. Uma parte bastante considerável dela responde pelo nome de Sean Penn. Um grande artista não faz arte; ele vive arte, ele é arte. Van Sant, com este filme, chegou um passo mais perto desse ideal. Sean Penn já está lá.