segunda-feira, junho 30, 2008

A Um Passo da Eternidade


A Um Passo da Eternidade (“From Here To Eternity”, EUA, 1953, dir.: Fred Zinnemann) é o modelo inalcançável para muitos filmes “de arte” produzidos hoje em dia com o olho nas estatuetas do Oscar. A receita é: pegue-se uma história de amor promissora, mas com alguns obstáculos factuais (briga de famílias, diferenças de classe social, etc); faça-se com que tais obstáculos concentrem-se na figura de um indivíduo que seja descrito como a encarnação da maldade (ou da ignorância, da falta de consciência da realidade); coloque-se essa história amorosa (o micro) numa moldura histórico-social abrangente (o macro), com pitadas épicas. Por fim, faça-se com que o amor termine em tragédia, mas uma tragédia com ares moralizantes – para que, pelo menos em certo sentido, as coisas terminem bem, as pessoas ganhem experiência e aprendam com a vida e com o mundo.

Encontram-se variações dessa fórmula básica em filmes que vão de Pearl Harbor (2001, dir.: Michael Bay) a Desejo e Reparação (2007, dir.: Joe Wright) – a mais nova encarnação. É um esquema essencialmente romanesco, folhetinesco até; talvez por isso seja tão retomado. Mesmo assim, filme algum (ou nenhuma obra de arte) se faz pela mera aplicação de esquemas, fórmulas, temáticas, estilos, etc. Eis o problema das produções mais recentes. Eu já disse que a estrutura conteudística e formal de “Atonement”, por exemplo, é matematicamente calculada nos mínimos detalhes – e sem grandes sutilezas – para produzir “efeitos”: efeitos estéticos ou efeitos intelectuais / emocionais no espectador. O discurso do filme fica muito evidente, parece propaganda publicitária. “Pearl Harbor” é, obviamente, um milhão de vezes pior nesse aspecto.

São obras muito fechadas e, sobretudo, utilitárias: a de Bay serve para agraciar o público médio e, com isso, conquistar grandes bilheterias; a de Wright serve para agradar ao público mais intelectualizado e sensível à Arte e, com isso, conquistar prêmios (com naturais resultados nas bilheterias também). Os melhores filmes são matematicamente calculados (como princípio estético), mas são, no final de tudo, obras abertas. No entanto, como é difícil encontrar películas assim! Um bom exemplo é “A Um Passo da Eternidade”, que é tudo o que filmes do tipo ”Desejo e Reparação” tentam ser, mas não conseguem. Temos aqui todos os elementos do romance, porém, mais livres, mais soltos, mais sutis e mais sublimes (embora a sutileza no gênero folhetinesco jamais seja lá muito grande).

Todas as dimensões da vida humana são magnificamente orquestradas neste clássico: a psicológica, a social e a histórica. O filme trata do amor, da amizade, da integridade do indivíduo ameaçado pelas coerções do meio, da calúnia, da honra, da lealdade, das relações entre a verdade e a mentira, das alianças “políticas” que se deve fazer para conquistar prestígio e legitimidade no corpo social, da guerra, da arte (a música), do esporte (como talento individual, de cunho que não deixa de ser também artístico), de um momento específico e significativo na História, do remorso, do sacrifício, da flagelação e da auto-flagelação, do crime, do passado (revelado ou escondido a todo custo), da dúvida, do medo do futuro, do patriotismo, da passagem do tempo e dos seus efeitos, dentre outras coisas ainda mais.

Contudo, o filme não apresenta qualquer ar de didatismo, de obra circunstancial e pretensiosa. Quem assiste a ele, não ficará jamais com a impressão de que a película é “sobre isto” ou “sobre aquilo”. Eis exatamente o problema das duas produções mais recentes citadas mais acima. Dizer que “A Um Passo da Eternidade” é sobre o ataque a Pearl Harbor, por exemplo, seria de uma miopia grotesca. Ou sobre uma relação amorosa, ou de amizade, ou sobre o exército, ou ainda sobre um personagem “paria” (o “outcast”). O filme, na verdade, é sobre tudo isso e mais um pouco. E, ao mesmo tempo, sobre nada disso. É difícil fazer uma sinopse de filmes assim. A partir disso, podemos até afirmar que as melhores obras cinematográficas resistem à camisa-de-força reducionista da sinopse.

Nesse sentido, é ilustrativa a “sinopse” que o TCM conseguiu fazer desse filme, para quem o viu neste mês de junho na TV paga digital. Ela diz muita coisa (é mais longa do que um resumo tradicional), mas ao mesmo tempo diz pouca coisa a respeito do que se vai ver, num sentido mais exato. Acaba despertando melhor a curiosidade do espectador que tiver paciência para descobrir o filme conforme vai assistindo a ele. “From HERE to ETERNITY”: Daqui até a eternidade. Só o título original já demonstra a mistura de planos que as melhores obras artísticas promovem: o particular e o universal, revelando-se um ao outro infinitamente, num jogo de espelhos muito bem equilibrado. Vale a pena ver, como parâmetro das grandes conquistas atingidas (no passado) pela Sétima Arte. E nem preciso falar da lendária cena do beijo na praia, entre Deborah Kerr e Burt Lancaster.

domingo, junho 29, 2008

WALL-E


Eis que aparece mais um fort(íssimo) concorrente aos melhores de 2008. E não estamos falando apenas dos melhores desenhos animados, mas dos melhores filmes. É incrível. Se Ratatouille (2007) era bom por ser um desenho que parecia um filme (elevando a animação a um nível de arte cinematográfica jamais atingido antes pelos desenhos), WALL-E (EUA, 2008) é bom como poucos filmes “live-action” são bons (o nível artístico aqui é alcançado por poucas películas de “cinema” mesmo). Veja-se bem: já não estamos falando mais do universo dos “cartoons” (nem mesmo daqueles cuja qualidade da animação computadorizada seja para lá de impressionante); o robozinho de WALL-E simplesmente pavimentou o caminho aberto pelo ratinho precedente. A partir de agora, os desenhos animados serão analisados e julgados segundo outros e mais elevados paradigmas, justamente os mesmos paradigmas que usamos para os “filmes de arte”.

Se isso nunca havia ficado claro até agora (pois a história da animação audiovisual – desde os seus princípios – não é de todo desprovida de resultados altamente artísticos), a existência e o sucesso das duas últimas produções da Disney / Pixar é mais do que suficiente para fazer-nos mudar nossos conceitos de “animação infantil”. A vida de quem escreve sobre os filmes que vê é uma vida ingrata: em relação à maioria das fitas que a gente assiste, não dá vontade de escrever uma linha sequer. Não porque sejam ruins, mas porque a maioria dos filmes que há por aí – e que pipocam o tempo todo, de todos os cantos – não nos despertam, não nos tocam em nada; não fedem nem cheiram. Particularmente, fico muito feliz em ver um filme ruim, mas ruim de doer, pois a minha indignação será tanta que precisarei extravasar isso numa “crítica” altamente inflamada.

O difícil é tentar extrair suco de laranjas secas. Preciso confessar que minha formação cinematográfica fundamenta-se em filmes dos anos 70 para trás. Não quero ficar defendendo um classicismo pedante, mas acho fundamental que qualquer nova obra – que nunca nascerá desvinculada de um determinado contexto histórico – saiba dialogar com a tradição, com o passado. Aceitando ou renegando a história, a arte, a cultura (e o entretenimento) não devem jamais se esquecer do que já foi feito antes, como se o mundo começasse neste exato instante, tabula rasa. Por isso, bagagem cultural, artística (em todas as artes, principalmente a cinematográfica), histórica, enfim, o conhecimento de mundo é absolutamente indispensável num diretor, produtor ou roteirista que se dêem à tarefa de “fazer” um filme.

Entretanto, não detecto tal bagagem na maioria dos “novos” cineastas e realizadores. Esses aí não ficarão, não terão qualquer chance de entrar para a história. A arte que fica é sempre aquela que carrega dentro de si a densidade, o peso e o volume de uma história, de uma memória, de um mundo: é a arte de caráter (ou mais ou menos) universal, universalizante. Sem esquecer também, é claro, a relação dialética com o particular. O particular que expressa o universal; o universal que joga outra luz sobre o particular. Quantos filmes buscam e conseguem alcançar esse caráter? Contam-se nos dedos. Assim, são pouquíssimos os filmes atuais que me surpreendem e impressionam. São raros os filmes que despertam em mim o entusiasmo que tenho e tive quando descobri os grandes clássicos do cinema (tal entusiasmo pode não ser do mesmo nível, mas precisa ser da mesma natureza).

São poucos os filmes que nos ensinam a arte do cinema. Mas este ano de 2008, no circuito comercial das salas de exibição brasileiras, já nos presenteou com dois felizes exemplos: Onde Os Fracos Não Têm Vez e WALL-E. Ainda há esperanças para o audiovisual norte-americano. Esperanças que respondem pelos nomes de Joel Coen, Ethan Coen, Peter Jackson, J. J. Abrams, e agora Andrew Stanton, com o seu robozinho enamorado. Stanton é roteirista de quase todas as produções em longa-metragem da Pixar Studios: Toy Story (1995), Toy Story 2 (1999), Vida de Inseto (1998), Monstros S. A. (2001), Procurando Nemo (2003) e este WALL-E (2008). É produtor executivo de Ratatouille (2007) e diretor de Vida de Inseto (co-diretor), Procurando Nemo e agora WALL-E. Aguardamos ansiosamente os próximos trabalhos.

Qual é a “bagagem” de WALL-E? Em primeiro lugar, o melhor da ficção científica. De 2001, Uma Odisséia no Espaço (1968, de Stanley Kubrick), temos o robô-piloto da nave-arca dos humanos, chamado Auto (de piloto AUTOmático, mas no trocadilho com “alto”: no sentido de uma ordem para que se pare qualquer movimento) – do inglês “Halt” – referência ao computador maquiavélico “Hal 9000” da obra de Kubrick / Clarke. E ambos possuem o mesmíssimo e vermelho olho, que já faz parte do folclore da cultura pop contemporânea. De “2001”, também se fazem presentes, na trilha sonora, a valsa “Danúbio Azul” de Johann Strauss Filho e o “Assim Falou Zarathustra” de Richard Strauss, numa cena que talvez seja a melhor (e mais respeitosa, no sentido de tão artística tanto) paródia desse clássico do cinema: se lá tínhamos o “erguer-se” evolutivo dos hominídeos rumo ao super-homem (o über-mensch de Nietzche), aqui ocorre o reerguer-se do ser humano que, de tão “evoluído”, acabou involuindo.

O difícil levantar do obeso capitão da nave é o grande épico pós-moderno. Se os “macacos” de “2001” evoluem utilizando ossos como armas, ossos esses que se transformarão em naves espaciais, os burgueses de WALL-E deverão reaprender a utilizar seus próprios ossos – para lá de atrofiados – em atos motores essenciais a qualquer espécie animal: andar, pegar objetos, etc. De ET, O Extraterrestre (1985, de Steven Spielberg), temos o “design” do robozinho protagonista, o Wall-E (pronuncia-se “Wally”): os olhos, a cabeça, o tronco, os membros e o tamanho, tudo aqui é “copiado” do clássico “infantil” de Spielberg. Também há referências satíricas à folclórica série Star Trek (1967-1969). O visual pós-apocalíptico da (extinta) civilização urbana terrestre é dotado da fascinação de Blade Runner (1981, de Ridley Scott) e da série Mad Max (1979, 1981, 1985, de George Miller).

Agora, no enredo há uma grande referência literária, também no âmbito da ficção científica, contribuindo particularmente para a moral sócio-política desta fábula. Trata-se do romance A Máquina do Tempo (1895), de H. G. Wells. Ele mostra um futuro distante no qual a classe burguesa se transforma em uma espécie física e mentalmente desabilitada. O excesso de consumo, de uma vida excessivamente apegada aos confortos da civilização industrial, tornará o homem fraco de corpo e com um intelecto meio estúpido e absolutamente preguiçoso, vivendo apenas para “brincar” e descansar. Em WALL-E, a espécie humana se reduziu a seres tão obesos que vivem e se locomovem em cadeiras flutuantes, tão atrofiada se tornou a sua estrutura óssea. E vivem a consumir “junkie food” e entretenimento barato, totalmente distraídos da realidade ao redor e uns dos outros.

Por exemplo, na “ágora” da nave em que vivem, há uma enorme piscina bem no centro, mas ninguém repara na sua existência. Pelo menos, não até o momento de desequilíbrio da situação mostrada, que será, no fundo, a revolução promovida pelos dois robozinhos protagonistas. Mas a nave-cruzeiro dos sonhos em que vivem, no espaço, nada mais é do que uma versão alegórica dos atuais condomínios fechados, ou de países (como os EUA) que funcionam como condomínios “fechados” em relação ao resto do mundo. A involução intelectual é mostrada muito jocosamente na incapacidade (analfabetismo) do capitão em ler o texto de um manual impresso em papel – aliás, ele fica muito assombrado com esse material (o papel) que nunca vira antes. O mesmo capitão, como líder e representante-mor da espécie humana, não conhece absolutamente nada da história humana, do seu patrimônio cultural (nem mesmo sabe o que é um “baile”) e do planeta Terra.

A ingenuidade dele em querer “plantar pizza” é hilária. Guardadas as devidas proporções – evidentemente –, é uma situação da mesma natureza que já se vê com crianças e adolescentes nas escolas (no Brasil e no exterior). Aí, o caso já não é de se rir, mas de chorar. Uma pesquisa divulgada há pouco tempo revelou que mais da metade dos adolescentes norte-americanos pensa que os EUA foram aliados da Alemanha na Segunda Guerra Mundial. Será que esses jovens nunca sequer viram filmes sobre a II Guerra? Obviamente, culpa-se a Internet por tamanho nível de ignorância e de “preguiça intelectual”. Essa dimensão da memória coletiva, sua perda e o necessário resgate, é uma das mais importantes em WALL-E, no que o filme revela sua profundidade, significado e pertinência histórica.

São bem ricas as relações que se podem fazer (estudando a memória, a coletividade e a história) entre este filme e as idéias do filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) – lembrando ainda que ele era fascinado pelo ato de colecionar (assim como o robozinho Wall-E), sendo ele mesmo colecionador de brinquedos, e adorava literatura infantil, escrevendo ensaios muito ricos sobre ela. No ensaio “O Narrador”, Benjamin critica a decadência da experiência coletiva (presente nas epopéias) em função da experiência individual do herói do romance burguês. Em WALL-E, a experiência coletiva está praticamente morta e enterrada: as pessoas circulam paralíticas em suas cadeiras móveis para lá e para cá, cada uma conectada ao seu próprio terminal multimídia. Um contato real entre as pessoas só vai começar a acontecer quando interfere o elemento de desequilíbrio, de desautomatização, de revolução daquele universo: o robô Wall-E e a sua companheira Eva.

Por que Wall-E trará a “revolução”? Além do caráter de Prometeu desse incrível protagonista (que daqui a pouco discutiremos), o robozinho é o colecionador. Como teórico do colecionismo, Walter Benjamin entenderá que cada coisa isolada, fragmento, objeto, ou ruína, por menor e mais insignificante que seja, terá a qualidade e a atribuição de conter dentro de si a totalidade das coisas, do contexto que produziu esse pedaço e que ele ajuda a compor. O todo se revela no singular. Dito isto, passemos a palavra ao próprio filósofo, no livro Passagens:

“Escrever a história significa (...) citar a história. Ora, no conceito de citação está implícito que o objeto histórico em questão seja arrancado do seu contexto.”

Desse modo, o robozinho escreve, recompõe a história humana através dos pequenos objetos que ele retira e guarda das ruínas da civilização: isqueiros, garfos, músicas, trechos de filmes: o musical Hello, Dolly! (1969, de Gene Kelly), que funciona como mote para a pequena história de amor entre Wall-E e Eva, e é mais um exemplo de como o filme de Stanton dialoga bem com a tradição cinematográfica. Outro exemplo interessantíssimo de (re)montagem da história através de fragmentos expressivos são os créditos finais, que mostram a nova evolução da humanidade (emagrecendo e repovoando o planeta) em imagens animadas e desenhadas segundo as marcas estilísticas de diversos movimentos da História da Arte: arte egípcia, arte clássica, arte medieval / bizantina, arte renascentista, arte barroca, arte impressionista e arte pré-modernista (o estilo de Cézanne). Quando se achava que o filme não tinha mais como surpreender, eis que até depois do final ele continua dando o seu recado.

Diz o Professor Márcio Seligmann-Silva, tradutor de Benjamin e autor de estudos sobre o filósofo: “O gesto do colecionador de arrancar as coisas de seu contexto, assim como o gesto do catador que ‘reencanta’ o que fora descartado pela sociedade de consumo, são paralelos ao gesto do ‘materialista histórico’ que, com sua historiografia-montagem, visa romper com o continuum da dominação. Esta libertação, para Benjamin, é tanto dos homens como do próprio passado. Para Benjamin, apenas em uma sociedade libertada caberia uma memória total do passado: (...)”

Não seria Wall-E esse “catador”? O robô chega mesmo a fazer uma montagem artística a partir do lixo, entulho e ferro-velho que encontra (para impressionar a sua Eva); como as instalações daqueles artistas contemporâneos que se aproveitam de tudo o que se joga fora. Nesse sentido, é Wall-E quem – mesmo sendo máquina – rompe a “dominação” do homem e do passado pela própria máquina (o “Halt”), trazendo a “libertação” que recuperará a “memória total do passado”. Essa função do protagonista se torna ainda mais significativa se considerarmos que é ele quem encontra e guarda o único exemplar de vida vegetal a existir na Waste Land que um dia se chamou Terra. Um broto de plantinha que nos faz lembrar os versos de A Flor e a Náusea, de Drummond: “É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”.

É aí que Wall-E assume um caráter de novo Prometeu, “criador” de um novo homem que há de (re)ssurgir, presenteando-o com o novo fogo que é a plantinha. Castigado pelo velho homem – assim como o titã fora castigado pelos deuses – encontramos primeiramente o robozinho vivendo sua vida solitária no abandono, no exílio das ruínas da Terra “velha”. Posteriormente, ele será perseguido e maltratado pelos últimos representantes do “velho homem”: as máquinas lideradas por “Halt”; no entanto, assim como Prometeu, Wall-E há sempre de se regenerar. Agora, o mais incrível é unir toda essa mitologia clássico-pagã com os mitos judaico-cristãos, representados pela robozinha Eva, que fora enviada como sonda para procurar vida vegetal que possibilite a recolonização do planeta, e que se tornará companheira e par romântico de Wall-E. São muito expressivas as imagens dos dois numa Terra devastada.

Ela descobrirá a plantinha encontrada por Wall-E e a tomará dele. Tal plantinha, como um novo fruto proibido, provocará uma total ruptura no equilíbrio estagnado, “a-histórico” dos últimos remanescentes da humanidade (este momento teria tanto de Apocalipse quanto de Gênese), dominados por um deus (“Halt”) intransigente. No entanto, essa ruptura, essa nova queda do Paraíso, longe de ser o fim, de ser a desgraça absoluta, dará origem à (nova) história, à (nova) evolução do ser humano por suas próprias forças, num ambiente em que o sustento não será mais provido por algum deus, mas será cultivado pela força do próprio homem. Nesse ponto, o enredo do filme se propõe uma nova Bíblia para uma nova humanidade, mas uma bíblia igual à antiga (pois a questão é relembrar valores abandonados). Há aí também uma dimensão nietzcheana (o “super-homem”), justificando mais ainda as referências a 2001.

A nave / jardim do Éden habitada por aqueles homens chama-se Axioma. Um “axioma” é uma verdade evidente, que não precisa ser demonstrada. Ou seja, o significado alegórico dessa bolha social é evidente. A mensagem do filme é evidente: a nossa sociedade é aquela nave, nós somos aquelas pessoas ridículas. Não seriam necessárias maiores explicações. Basta olhar e ver. De qualquer modo, a nave possui ares também de uma nova Arca de Noé, escapada do dilúvio provocado pelo próprio homem crendo-se no lugar de Deus. Eva é a pomba enviada para descobrir se há “terras secas”. Enfim, a intersecção de mitos pagãos e cristãos – Prometeu e Eva dando origem à nova humanidade – pode ser lida numa chave multiculturalista ou, melhor ainda, numa chave arquetípica. Como as melhores fábulas, WALL-E é carregado de arquétipos humanos dos mais essenciais.

Voltando a Walter Benjamin, diz a professora Sônia Kramer a respeito do filósofo: “Sem negar que os conhecimentos e as atitudes humanas mudaram, ele recusa o mito do progresso da humanidade, que seria resultado de descobertas técnicas, da evolução das forças produtivas ou da dominação crescente sobre a natureza. Propõe a ruptura do ‘era uma vez’, com um tempo pleno de ‘agoras’, em que passado, presente e futuro se cruzam.” Ora, o filme parece também recusar o mito do “progresso” técnico-produtivo; a sua mensagem anti-consumista é evidente. Contanto, é claro, que entendamos que “consumo” e “consumismo” são coisas bem diferentes. O cruzamento dos tempos é o que propõe a obra de Stanton, misturando também os planos da fabulação (o enredo) e do discurso (a linguagem fílmica):

o passado da humanidade (esquecido) e o passado do cinema (citado no discurso do filme), o presente diegético (momento de ruptura) e o nosso presente do mundo real (alegorizado pelo futuro mostrado no filme), o futuro (tanto o daquela nova humanidade quanto o futuro de nossa sociedade presente, e também o futuro do cinema e das animações digitais, dotados cada vez mais de qualidade tecnológica e artística). Continua a professora: “Para Benjamin, ‘em cada época é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela’, porque o passado e o presente se conectam e se reorganizam em novas constelações.” Essa tarefa de “acordar” a tradição, que para Walter Benjamin caberá ao intelectual, é exercida no desenho pelos robôs Wall-E e Eva (Prometeu e Eva).

Quanto à conexão e reorganização do passado e do presente em novas constelações, é nesta chave que deve ser entendida as múltiplas referências – culturais, literárias e cinematográficas – tecidas por WALL-E. Ao contrário de muitos filmes contemporâneos bem cotados pela crítica, este não é apenas uma colcha de retalhos subserviente às suas fontes. O filme é criativo, tem uma força sua, uma força única, autêntica. Equilibra muito bem o seu discurso, na medida em que é formado por elementos já existentes, mas organizado de maneira a dizer coisas novas, de um modo novo. O robozinho, como já bem mostrou a crítica, tem uma base em Chaplin e Keaton – o fato de a maior parte do filme ser “mudo” possui mais de um significado, como ainda veremos.

No fundo, este filme já estava como que anunciado. A Pixar é famosa por ótimas animações computadorizadas em curta-metragem, envolvendo um humor apegado simplesmente a gags visuais (a essência do cinema mudo). Os melhores desses curtas (como Gery’s Game) foram recentemente reunidos no DVD Pixar Short Films Collection. Como abertura a WALL-E, vemos mais uma pepita: Presto, também repleto de referências clássicas. Assim, já estava demorando para fazerem um longa de gags “mudas”. A proposta, é claro, é arriscada: será que as platéias contemporâneas (o cinema falado existe há mais de 70 anos)teriam disposição para ver um filme assim? A resposta parece ser positiva. A Dreamworks também sabe disso: basta ver o curta que deu origem a Era do Gelo (2002).

Ainda em Benjamin: “O filósofo se refere ao presente como momento revolucionário e ao passado como obra inacabada sobre a qual devemos trabalhar (...). A tarefa que temos é tornar presente o tempo escondido sob ruínas da história universal, vinculando-nos aos que nos precederam e foram vitimados pela barbárie (...). Benjamin critica a história como continuidade, procurando na descontinuidade momentos críticos, quando mudanças podem ocorrer.” Através dos objetos colecionados, o robozinho torna presente o tempo escondido sob as ruínas da história, vinculando-se afetivamente – por que não? – aos que forma vitimados. Daí a sua paixão por música e pelo filme Hello, Dolly!. Nisto reside a humanidade do robô: no ato de colecionar e imaginar outra vida (a vida amorosa), ele vai além daquilo para o qual foi programado.

Ou melhor, ele continua exercendo sua programação, como um bom trabalhador (os robôs da série wall-e são coletores e compactadores de lixo), e são impressionantes os arranha-céus que ele construiu de lixo compactado – durante um tempo tão longo quanto a força das imagens sugere. Mas o ato de selecionar e guardar pessoalmente certos objetos, re-encantando-os com isso, não faz parte do trabalho. Nesse sentido, as verdadeiras máquinas automatizadas são os seres humanos na Axioma. E é o que dirá Walter Benjamin: “Por entender que a experiência se configura como um traço cultural enraizado na tradição e não se situa apenas no nível ‘psicológico’, Benjamin ‘denuncia o caráter medíocre da experiência no mundo moderno’. O desencanto do mundo na era capitalista significa o declínio da experiência humana coletiva.

Para ele, ‘a felicidade não está no tesouro encontrado, mas no trabalho de escavar a terra’. Na era industrial, porém, gestos repetitivos e mecânicos tornam a experiência cada vez mais imune a choques; o comportamento torna-se reativo, a memória é liquidada. A perda da experiência está ligada à mudança dos seres humanos em autômatos, peças da linha de montagem, sem significado.” Não parece uma descrição exata do que acontece na “Axioma”? Quer dizer, a fala do filósofo é uma verdade axiomática. A perda da capacidade de narrar é a perda da memória, que é a perda do passado, que é a perda da coletividade, que será por fim a perda da humanidade. O filme mostra muito claramente essas coisas. Quem é que esperaria da Disney um filme tão “subversivo”?

Como último argumento, WALL-E é um ótimo filme por uma razão muito simples: é um filme no qual as próprias imagens contam a história. As imagens nos fazem entender os acontecimentos, o caráter e o estado dos personagens e os temas discutidos através deles. Eis o cinema puro. Para que diálogos, quando se pode dispor da força incrível das imagens, e de imagens produzidas com uma tecnologia digital cada vez mais impressionante – a qualidade da animação gráfica aqui é algo que parece muito além de qualquer desenho mais recente, seja da Pixar / Disney ou Dreamworks. O começo da fita já revela toda a força e a surpresa: o robozinho em suas atividades cotidianas, sozinho numa terra devastada (sua companhia é apenas uma barata). A pequenez do personagem e a vastidão do cenário. Há algo melancólico, ridículo, absurdo, mas ao mesmo tempo simpático, sublime nessa apresentação. A trilha sonora (apenas notas melancólicas) dá o toque definitivo. Quem é que esperaria isso da mais nova produção da Pixar / Disney?

sábado, junho 28, 2008

Agente 86


Graças a Deus que temos Steve Carrell. Pensar que, até poucos anos atrás, a “melhor” escolha para viver o glorioso agente Maxwell Smart seria Jim Carrey é dose... Somente Steve Carrel é dotado daquela personalidade naïf – na postura, no andar, no olhar, gestos e fala – da qual os grandes comediantes não podem prescindir. É claro que esse jeito espontâneo e meio bobo de ser remonta a Chaplin e Keaton, mas aí é que está. Se Chaplin era o parvo perdido no mundo dominado pela máquina (Tempos Modernos), Carrell é o parvo perdido num mundo de relações sociais em que o próprio homem se transformou em máquina. A graça de suas atitudes está na ingênua indiscrição, no constrangimento nunca previsto, nunca intencionado, provocado por um indivíduo que é uma criança no corpo de um homem de meia idade.

As relações dos personagens de Carrell (incluindo aí o “virgem de 40 anos” e o gerente Michael Scott) com as pessoas ao seu redor são tão atrapalhadas quanto as de Carlitos ou Jacques Tati (o saudoso Ms. Hulot) com a tecnologia. Na verdade, as relações inter-pessoais se pautam cada vez mais no mundo contemporâneo por uma mecanização calculada em busca constante e inapelável de uma “eficiência”. Eis o que se vê na agência de espionagem do CONTROLE, nesta refilmagem da genial série “Agente 86”, criada nos anos 60 por Mel Brooks e Buck Henry – que dão consultoria para esta nova produção, dirigida por Peter Segal. Não é à toa que o velho Hime (o agente robô da série original) fará uma ponta muito significativa neste filme. O próprio Maxwell Smart busca muito a eficiência no seu trabalho (e a conquista efetivamente, com muito talento). Mas é o único que convive naturalmente com seus “defeitos”, que no fundo é a sua própria humanidade.

A “falha”, em personagens clássicas como o inspetor de polícia Clouseau, o agente secreto Maxwell Smart e o super-herói Chapolim, não é colocada como um desvio do “acerto”; mas como parte intrínseca e dialeticamente relacionada à natureza humana do indivíduo. O ato de falhar simplesmente faz parte do mesmo pacote. Aí está a fascinação especial que esses (anti-)heróis exercem. A humanidade de Smart fica patente na engraçada cena em que ele “convence” o vilão brutamontes (que até então não tinha dito uma única palavra) a não matá-lo, dando conselhos a respeito dos problemas conjugais do homem, devidamente espionados. Tudo termina num abraço choroso. A humanização burlesca de contextos tradicionalmente “não-humanos” (a guerra, a espionagem, etc.), eis o diferencial de tais comédias.

Um dos filmes da série Austin Powers (de Mike Myers) tem uma cena que vai nessa mesma linha: ao passo que o super-agente Powers vai matando a esmo guardas, seguranças, capangas baratos e funcionários das instalações inimigas, vão-se intercalando cenas que mostram as notícias das mortes deles recebidas por suas esposas, o impacto nos filhos e outros efeitos “cotidianos”. Voltando ao Agente 86, a cena em que a agente 99 (a gostosíssima Anne Hathaway) consegue escapar de um “abraço” mortal desse mesmo brutamontes (um homem feioso) dando-lhe um longo beijo na boca também nos toca de uma maneira especial. Não é apenas o inesperado do ato, mas o efeito do contraste entre a “bela” e a “fera”, entre o golpe e o carinho, entre o humano e o mecânico, entre a criatividade e a automatização. Eis a importância da criação de Brooks: a força do criativo num mundo de coerções.

sábado, junho 21, 2008

Fim dos Tempos


M. Night Shyamalan é uma mistura entre Stephen King e Paulo Coelho. Ou seja, uma literatura média para interesses médios. Shyamalan está para Spielberg ou para Hitchcock assim como esses escritores “modernos” (incluindo-se aí também caras como Dan Brown e Khaled Hosseini) estão para os grandes mestres do passado. Ao se elogiar – ou criticar – os filmes do cineasta indiano, é preciso guardar tais proporções. Seus filmes dão um caldo muito ralo, excetuando-se talvez A Vila (2004). Esse problema não creio que se deva a interesses “comerciais” que dominariam os filmes, mas a uma limitação das idéias e do talento do próprio diretor mesmo. Shyamalan é um daqueles artistas-artesãos que constroem sua vida, fama e obra em cima dos mesmos cacoetes, repetindo-os à exaustão em quaisquer circunstâncias, por mais diversificadas que sejam e por mais que peçam soluções estéticas mais pertinentes. As variações em cima de um mesmo tema jamais podem ser tão restritas.

Fim dos Tempos (“The Happening”, EUA, 2008) é um filme que não pode ser levado a sério. Juro que eu tentei, mas não dá. Não há nada ali que convença. Sejam as situações mostradas neste filme “catástrofe”, sejam as interpretações dos atores (principalmente a de Mark Wahlberg), seja a trilha sonora, seja a fotografia, seja – mais particularmente – a banalidade do discurso “ecológico” propagado sem a menor fabulação artística no final. Muitas vezes a produção dos discípulos é a degenerescência da obra dos mestres. Por isso, repito o que disse a respeito de A Dama na Água (2006): é bom parar de comparar Shyamalan com cineastas de projeto estético e ideológico mais densos – a não ser que seja para mostrar a cansada decadência típica dos epígonos. Fim dos Tempos é um filme cansativo. Os elementos de autoria (na forma ou no conteúdo) que os filmes de Shyamalan podem nos trazer são muito escassos e pobres para que possamos falar com gosto em uma filmografia.

Continua sendo irritante (e cada vez mais) neste último filme o semi-virtuosismo da câmera e dos efeitos sonoros que (tentam) provocar sustozinhos ridículos, sem qualquer propósito dramático, sem qualquer significado ou implicação. É um cineminha primário, elementar; como eu disse, equivale à literatura média – ou medíocre – do “best-seller”. O pior é que não dá para recomendar que Shyamalan passe a fazer adaptações de Stephen King, visto o histórico de grandes diretores que construíram filmes de verdade, baseados na obra do “mestre do terror psicológico”: basta citar Stanley Kubrick e John Carpenter. Mas com certeza Shyamalan será “o cara” para levar a “obra” de Paulo Coelho para o cinema. Agora, não sei se terei paciência para ver (que Deus nos ajude!) o próximo filme do diretor. Talvez em DVD, num dia em que não tiver absolutamente mais nada para fazer. Quanto aos momentos “dramáticos”, a estupidez aqui rivaliza com a de Olga (Brasil, 2004, dir.: Jayme Monjardim).

Se Fim dos Tempos fosse um filme B, uma história “trash-cult” de “terrir”, poderia merecer algum respeito. Mas o pior é que esta produção “audaciosa” se leva a sério (!). Não é um filme de catástrofe, mas uma catástrofe de filme (com o perdão do trocadilho infame). Enfim, é tanta bobagem cinematográfica que nem sei se vale a pena (se fará alguma diferença) falar do talvez único ponto positivo do filme – que está mais para uma potencialidade frustrada do que para uma realização potente: a insistência paranóica da câmera em filmar o invisível, a ameaça etérea e mortal que se coloca entre a lente da filmadora (na função do nosso olhar) e os objetos concretos e reais do mundo – particularmente a natureza, animada aqui de uma vontade assustadora. Os personagens, assim como o próprio filme, lutam para enxergar e reconhecer a emanação maléfica que “vaza” das coisas. Mas, antes que se fale de um cinema espiritual, de terror psicológico-paranóico, assista-se ao Possuídos (EUA, 2006) de William Friedkin e se terá mais uma prova do lugar que cabe a Shyamalan.

segunda-feira, junho 16, 2008

O Incrível Hulk


O Hulk de Ang Lee é um bom filme, mas feito por quem não conhece e (ou) não se interessa pelo mito Hulk. Sendo honesto, o filme pesquisou aspectos do personagem, de sua história e de suas imagens “marcas-registradas” (o que é extremamente importante nas fitas atuais de super-heróis vindos dos quadrinhos), fez um recorte e colocou o resultado na tela com grande profissionalismo, pesquisando também aspectos da linguagem das histórias em quadrinhos e adaptando-os para o cinema de um modo muito interessante artisticamente. Como filme, o único ponto negativo daquela primeira versão foi a ênfase exagerada – ingênua e superficial – no plot do “daddy issues” entre Bruce Banner e o seu papai (apesar do talento de Nick Nolte). Com isso, também acabou-se desviando um pouco (ou talvez muito) do foco original do tema “Hulk”.

Agora, este novo Incrível Hulk ("The Incredible Hulk", EUA, 2008, dir.: Louis Leterrier) transpira por todos os seus poros a paixão do fã. A essência do personagem e do seu universo estão aqui, e apenas a essência. Para que mais? Tal essência vem, obviamente, dos gibis, mas também – talvez a maior parte dela – da série de TV (1978-1982). Os fãs remexer-se-ão na cadeira com as múltiplas referências: um Bruce Banner eternamente nômade, sem lenço nem documento nem dinheiro, a pedir carona vestido com sua indefectível jaqueta (e calça) jeans, carregando nada mais do que a trouxa; aquela mesma musiquinha triste no piano; os avisos do tipo “não me deixe com raiva”; a ponta de Lou Ferrigno – na qual o subtexto intertextual é mais do que evidente (coisa bem nerd isso).

A mistura de Frankenstein com Mr. Hide, que dá a graça ao (anti)-herói, também está aqui muito bem trabalhada, a psicologia de porta de bar também – e da maneira como deve acontecer na cultura pop, ou seja, sem excessos de pedantismo mas também sem banalização, sem que fique nada muito explícito (foi o erro de Ang Lee): quem quiser, que vá estudar o assunto e procurar as associações. Cinematograficamente, o filme de Leterrier é cinema de fato, no sentido tradicional. Talvez tenhamos de dizer que a ousadia estética de Ang Lee tenha sido uma ingenuidade sem tamanho. Adaptar a linguagem dos quadrinhos para o cinema nada mais é, de fato, do que usar com muito gosto a linguagem própria do cinema – já que a “nona” arte nada mais faz do que levar a gramática da “sétima” para o papel: vejam-se os storyboards.

Agora, “transformar” a tela do cinema numa folha de “pulp paper” é tão absurdo como, por exemplo, querendo-se adaptar “com propriedade” o Crime e Castigo de Dostoievski, decidir filmar a própria folha de papel impresso do livro. Ang Lee não adaptou tanto a linguagem estética dos quadrinhos, quanto a sua forma material. Para colocar em termos lingüísticos, o diretor não construiu um discurso apegado à função metalingüística (que discute o código), mas meramente à função fática (ou seja, ao canal de comunicação). Talvez por isso as platéias tenham rejeitado tanto. Quem lê quadrinhos, gostará de O Incrível Hulk; e quem vê este filme haverá de se sentir tentado a ler as histórias. Como em qualquer filme da Marvel (é incrível que seja possível hoje falar nisto como se fosse um gênero), a dimensão auto-irônica se faz presente: no caso, “resolve-se” a questão de somente as calças de Bruce Banner nunca serem feitas em pedaços durante a transformação.

Para encerrar, fazendo uma daquelas associações de que falei, reproduzo abaixo um trecho de Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, de Carl Gustav Jung:

“No que diz respeito à concentração e tensão das forças psíquicas, há sempre algo que se nos afigura como magia; o fato é que elas desenvolvem uma força inesperada de penetração, a qual freqüentemente supera o esforço consciente da vontade. Pode-se observar tal efeito experimentalmente no estado de concentração artificial induzido pela hipnose: em meus cursos eu costumava hipnotizar uma histérica de frágil compleição, que mergulhava num sono profundo, e a deixava deitada quase um minuto com a cabeça apoiada numa cadeira e os calcanhares em outra, rígida como uma tábua. Seu pulso subia pouco a pouco até 90. Entre os estudantes havia um atleta que tentou em vão imitar esse experimento mediante um esforço voluntário e consciente. Logo ele fraquejou e não conseguia manter a posição. Seu pulso subira a 120.” (pg. 216)

Se o inconsciente de uma pessoa “normal” possui esse poder, imagine o de uma pessoa afetada por raios gama...

sábado, junho 14, 2008

Antes Que O Diabo Saiba Que Você Está Morto


Bem... vai ser complicado falar desse filme. O IMDB diz que, apesar de não ser tão consistente quanto Martin Scorsese ou Stanley Kubrick, Sidney Lumet é mesmo assim um mestre do cinema. Com certeza, se pensarmos em obras-primas como Serpico (1973) ou Um Dia de Cão (1975). Mas não dá para afastar a sensação de que Antes Que O Diabo Saiba que Você Está Morto (“Before The Devil Knows You’re Dead”, EUA, 2007) é uma obra menor na carreira do cineasta. É claro que, se formos comparar este filme com a produção contemporânea vinda dos EUA, no gênero dos filmes “de crime”, teremos que admitir com a maior felicidade que Antes Que O Diabo... é uma película clássica, com um estilo que sabe equilibrar sobriedade e dinamismo narrativos, coisa que diretores mais jovens dificilmente conseguem (ou querem) fazer.

Entretanto, há um desequilíbrio notável entre este filme e grandes filmes de personagem como os citados acima, realizados pelo diretor (que sabem, aliás, unir muito bem uma narrativa centrada no personagem a uma narrativa com altas doses de ação complexa e trágica). Em Antes Que O Diabo... o que acaba sobressaindo mesmo é a interpretação intensa de Philip Seymour-Hoffman (grande ator). Mas o seu personagem, assim como os outros, não convencem. Quero dizer, eles não são trabalhados da maneira suficiente para criar uma real identificação entre eles e o espectador. Não têm densidade, não têm uma história além da que fica implícita em alguns momentos (o que é ótimo como técnica de sutileza narrativa, mas não contribui muito para o drama, para o efeito de tragédia que o filme parece buscar).

O filme é totalmente centrado na ação, na imagem-movimento, que começa em media res e vai sendo conduzida de modo não-linear. Mas o enredo e os personagens pediriam um pouco mais de imagem-tempo, ou seja, o filme poderia ser um pouco mais lento e focado na pessoa. Chega um momento em que até cansa, pois é muita filmagem em cima de acontecimentos e de suas repercussões factuais, e pouca para as repercussões subjetivas, humanas (embora haja algumas cenas de grande intensidade dramática). No fim das contas, quando o filme termina ficamos com vontade de dizer: “Então tá!...” Os acontecimentos tratados são muito graves para serem mostrados nesse tom quase banal. Sem querer questionar o aspecto moral do final, é apenas mais um dos acontecimentos de graves implicações que são mostrados sem maiores implicações.

Neste aspecto, a estrutura narrativa de Antes Que O Diabo lembra um pouco a da sarabanda do romance picaresco (que narra as aventuras e desventuras de pobres-diabos), mas trocando o matiz cômico, irônico, pelo dramático e trágico. Eis o que parece esquisito. Nesse sentido – para que talvez possa ser dado algum crédito ao filme –, a sua “banalidade” poderia ser interpretada como uma sisuda ironia; mas tão sisuda que seria quase forçar a barra chamar isso de ironia. De qualquer maneira, uma mente maliciosa poderia enxergar um humor muito negro na cena final, que trata do crime (o mais grave do filme inteiro) cometido pelo único personagem (que em princípio seria a vítima) com competência suficiente para cometer um crime com eficácia inquestionável e escapar ileso – ou seja, o crime perfeito. Quantos aos outros, só lhes resta pagar pela tragicomédia dos seus estúpidos erros.

terça-feira, junho 10, 2008

This is Spinal Tap


“Mockumentary” é um gênero bem legal! Formado pelas palavras “mock” (zombar) e “documentary”, trata-se de um pseudo-documentário satírico. É uma grande expressão do burlesco no cinema: apresentar uma ficção ridícula como se fosse o real dotado de toda a gravidade. No cinema, são famosos o Zelig (1983) de Woody Allen, e o recente Borat: O Segundo Maior Repórter do Glorioso País Cazaquistão Viaja à América (2006) de Larry Charles, com Sacha Baron-Cohen. Na TV norte-americana, destaca-se a série The Office (2005...), inspirada por uma homônima britânica.

No entanto, acredita-se que o termo “mockumentary” tenha sido cunhado pelo diretor Rob Reiner, para falar de seu filme This is Spinal Tap (1984). Esta fita é incrível. Trata-se de um documentário feito pelo cineasta (fictício, é claro) Marti DeBergi, que acompanha as idas e vindas de uma típica banda de rock: o Spinal Tap. Todas as idiossincrasias do roqueiro “poser” estão lá. O engraçado é justamente o mostrar e levar a sério (como real) algo que no fundo é extremamente risível (e “fake”), o que nos ajuda a enxergar o aspecto ridículo e artificial da própria realidade, da sua estrutura social e das máscaras psicológicas que as pessoas usam.

Obviamente, o Spinal Tap não existe nem nunca existiu, a não ser dentro e por causa do filme. Quer dizer, a banda foi realmente formada por pessoas que tocavam os instrumentos e compuseram as canções que aparecem na tela. Assim, uma experiência complementar ao filme e dentro do seu espírito é ouvir a “trilha sonora”. Como banda de rock and roll, o Spinal Tap é a carnavalização (o exagero típico) do hard-rock “farofa”, que fez muito sucesso nos anos 80 (ouça-se e veja-se Twisted Sister, Whitesnake e similares). As letras das músicas são propositalmente estúpidas, pseudo-poéticas, non-sense.

Tudo isso nos leva a crer que o Spinal Tap esteja na gênese de uma outra banda de “mock and roll”, que ganhou sua fama entre adolescentes brasileiros dos últimos anos, em relação aos quais eu tenho lá minhas dúvidas se percebem o caráter de “tiração de sarro” do grupo – alguns fãs parecem levar a sério, adorar e encarnar para si mesmos o papel ridículo que a banda exerce como sátira. Trata-se do incrível Massacration, inventado pelos comediantes do “Hermes e Renato”, da MTV. Enquanto o Spinal Tap possui em sua discografia álbuns com nomes, capas e conceitos hilários como “Smell the Glove” e “IntraVenus deMilo”, o Massacration atingiu a glória com “Gates of Metal Fried Chicken of Hell”.

domingo, junho 08, 2008

The Twilight Zone: Nightmare at 20,000 feet


Acabo de ver no TCM um dos grandes episódios da clássica Além da Imaginação (1959-1964). Trata-se de “Nightmare at 20,000 feet” (“Pesadelo a 20.000 pés de altitude”), 3º episódio da 5ª temporada, exibido originalmente em 11 de outubro de 1963. A história é a de um homem de 37 anos, Mr. Robert Wilson (interpretado por um William Shatner que ainda nem sonhava em encarnar o eterno Cap. Kirk, de Star Trek – 1966-1969), recém-saído de um sanatório onde se recuperara de um colapso nervoso, que toma um avião comercial com a sua esposa. Então, em pleno vôo que atravessa uma forte tempestade, Mr. Wilson começa a ver um “gremlin” (criatura da mitologia moderna, “responsável” pela sabotagem de aviões) a tentar mexer nos motores da hélice da asa esquerda da aeronave. O problema é que ninguém mais vê o que causa tamanha ansiedade em Mr. Wilson.

Sem se conseguir fazer acreditar, o protagonista mergulha em um novo “colapso nervoso” e tenta salvar o vôo por conta própria. Copio abaixo o prefácio e o posfácio do episódio, recitados – como é tradição – por Rod Serling, criador da série.

“Portrait of a frightened man: Mr. Robert Wilson, thirty-seven, husband, father, and salesman on sick leave. Mr. Wilson has just been discharged from a sanitarium where he spent the last six months recovering from a nervous breakdown, the onset of which took place on an evening not dissimilar to this one, on an airliner very much like the one in which Mr. Wilson is about to be flown home - the difference being that, on that evening half a year ago, Mr. Wilson's flight was terminated by the onslaught of his mental breakdown. Tonight, he's travelling all the way to his appointed destination, which, contrary to Mr. Wilson's plan, happens to be in the darkest corner of the Twilight Zone.”

(Retrato de um homem aterrorizado: Sr. Robert Wilson, trinta e sete, marido, pai, e vendedor em licença de saúde. O Sr. Wilson acaba de receber alta de um sanatório onde passara os últimos seis meses recuperando-se de um colapso nervoso, o qual tomara lugar numa noite não diferente desta, durante um vôo muito parecido com o que o Sr. Wilson está para tomar agora, indo para casa. A diferença é que, naquela noite há meio ano atrás, o vôo do Sr. Wilson foi interrompido pelo ataque do seu colapso mental. Hoje, ele está viajando todo o caminho rumo ao seu destino, o qual, contrariando os planos do Sr. Wilson, acontece de estar no canto mais escuro da Zona do Lusco-Fusco.)

“The flight of Mr. Robert Wilson has ended now, a flight not only from point A to point B, but also from the fear of recurring mental breakdown. Mr. Wilson has that fear no longer... though, for the moment, he is, as he has said, alone in this assurance. Happily, his conviction will not remain isolated too much longer, for happily, tangible manifestation is very often left as evidence of trespass, even from so intangible a quarter as the Twilight Zone.”

(O vôo do Sr. Robert Wilson terminou agora, um vôo que foi não só do ponto A até o ponto B, mas que também partiu do medo de recorrer em colapso mental. O Sr. Wilson não tem mais esse medo... apesar de, no momento presente, ele estar, como ele mesmo disse, sozinho em sua certeza. Felizmente, sua convicção não ficará isolada por muito tempo mais, pois felizmente, uma manifestação tangível é muito freqüentemente deixada como evidência de invasão, mesmo que seja a invasão de um terreno tão intangível quanto o da Zona do Lusco-Fusco.)

Ouvir o narrador recitar tais linhas, enquanto se vê a última cena do episódio, que termina com um plano muito expressivamente fotografado, revela a nós o como que “Twilight Zone” revolucionou as séries dramáticas da TV norte-americana, inspirando-se na arte do filme de cinema. O episódio em questão foi dirigido por Richard Donner (aquele mesmo de Super-Homem – 1978, e da série Máquina Mortífera) e escrito por Richard Matheson (autor do romance “I Am Legend”, filmado recentemente – mais uma vez – como Eu Sou A Lenda – 2007). O mesmo episódio ganhou um ótimo remake no longa – para o cinema – Twilight Zone: The Movie (1983), segmento 4, dirigido por George Miller (de Mad Max) e estrelado por John Lithgow. Os outros segmentos ficaram a cargo de Joe Dante, John Landis e Steven Spielberg.

sábado, junho 07, 2008

Fazendo o possível...


Nestes últimos tempos sombrios, não tenho conseguido assistir a filmes o tanto quanto gostaria, muito menos escrever sobre eles. Trabalho, faculdade e outros projetos de vida acabam desequilibrando a balança. Mesmo assim, manter-me-ei vivo no Sombras, com textos às vezes curtos ou “pirateados” (como o que vai aí abaixo) e, quando chegarem os períodos de calmaria, as vacas gordas voltarão a ocupar os pastos.

O texto abaixo, do filósofo alemão Walter Benjamin, fax parte do famoso e fundamental ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, publicado pela primeira vez em 1935/1936. É uma pérola do pensamento sobre cinema. Algo em que se meditar com muito carinho.

Uma das funções sociais mais importantes do cinema é criar um equilíbrio entre o homem e o aparelho. O cinema não realiza essa tarefa apenas pelo modo com que o homem se representa diante do aparelho, mas pelo modo com que ele representa o mundo, graças a esse aparelho. Através dos seus grandes planos, de sua ênfase sobre pormenores ocultos dos objetos que nos são familiares, e de sua investigação dos ambientes mais vulgares sob a direção genial da objetiva, o cinema faz-nos vislumbrar, por um lado, os mil condicionamentos que condicionam nossa existência, e por outro assegura-nos um grande e insuspeitado espaço de liberdade. Nossos cafés e nossas ruas, nossos escritórios e nossos quartos alugados, nossas estações e nossas fábricas pareciam aprisionar-nos inapelavelmente. Veio então o cinema, que fez explodir esse universo carcerário com a dinamite dos seus décimos de segundo, permitindo-nos empreender viagens aventurosas entre as ruínas arremessadas à distância. O espaço se amplia com o grande plano, o movimento se torna mais vagaroso com a câmara lenta. É evidente, pois, que a natureza que se dirige à câmara não é a mesma que a que se dirige ao olhar. A diferença está principalmente no fato de que o espaço em que o homem age conscientemente é substituído por outro em que sua ação é inconsciente. Se podemos perceber o caminhar de uma pessoa, por exemplo, ainda que em grandes traços, nada sabemos, em compensação, sobre sua atitude precisa na fração de segundo em que ela dá um passo. O gesto de pegar um isqueiro ou uma colher nos é aproximadamente familiar, mas nada sabemos sobre o que se passa verdadeiramente entre a mão e o metal, e muito menos sobre as alterações provocadas nesse gesto pelos nossos vários estados de espírito. Aqui intervém a câmara com seus inúmeros recursos auxiliares, suas imersões e emersões, suas interrupções e seus isolamentos, suas extensões e suas acelerações, suas ampliações e suas miniaturizações. Ela nos abre, pela primeira vez, a experiência do inconsciente ótico, do mesmo modo que a psicanálise nos abre a experiência do inconsciente pulsional.

quarta-feira, junho 04, 2008

O Animador



Curta de animação muito bonito!

Agradecimentos à Debora Hegedus, do Cinematologia Humana:

http://cinematologiahumana.blogspot.com/

terça-feira, junho 03, 2008

Praga "Neoclássica"


Reproduzo na íntegra o artigo abaixo, publicado na edição especial da Revista da Folha, chamada Morar, nesta última sexta-feira, dia 31 de maio, parte do jornal Folha de S. Paulo.

PASSADO PRESENTE
Compradores adoram, arquitetos odeiam, e o estilo neoclássico vai povoando a paisagem paulistana


por Heloísa Helvécia

O Parthenon é aqui. Da Freguesia do Ó ao Alto de Pinheiros, não há região de São Paulo, hoje, que escape de um edifício neoclássico. Como os churros da Mooca e os terraços com churrasqueira, os “neos” são sucesso de público e se alastram para outras classes de imóveis que não as do alto padrão, a despeito da gritaria de arquitetos locais.

Gritaria que não é nova, como nada é, nesta história. A polêmica já começa pelo termo, marqueteiro. “Neoclássico é um tremendo elogio para o que está sendo feito”, diz Mário Biselli, 45, professor de projeto no Mackenzie e na Belas Artes.

De fato, há distância entre esses imóveis novos com verniz velho e o neoclassicismo, que apareceu no fim do século XVIII, na Europa, em resposta à overdose de barroco e rococó. O estilo retomava o equilíbrio das linhas da estética greco-romana. Em São Paulo, Ramos de Azevedo (1851-1928) foi seu representante, atrasado e isolado.

Em termos de construção vertical, o que mais ou menos se aceita como neoclássico é o estilo que tem como emblema o francês Jacques Pilon (1905-1962). Seu edifício São Luiz, um projeto dos anos 1940, foi tombado, apesar de ser considerado sem valor cultural por muitos arquitetos.

Nos 1970, Adolfo Lindemberg espalhou a visão do que é morar com classe, com seus “neos” cor de creme e balaustradas. Se ontem seus prédios eram execrados por profissionais comprometidos com a reflexão, hoje são até poupados, distinguidos à frente de pastiches piores, que surgiram nas décadas seguintes. “Agora o que há são edifícios neogóticos-chineses-mongolóides”, batiza Sérgio Teperman, mestre pela FAU-USP. Um dos argumentos contra essa estética é o seu caráter literalmente de fachada: embalagem nobre, formulada para dar “a sensação de algo histórico e eterno, quando os revestimentos são os piores possíveis e os edifícios se deterioram rapidamente”, nas palavras de Teperman.

Associado ao luxo, o neoclássico envolve construção mais barata, com a vantagem de esconder defeitos com enfeites, segundo Mário Biselli. “Incorporadores e construtores acham fácil construir, porque é só pregar na fachada essas cornijas, essas colunas, tudo pré-moldado. Ficou feio? Põe coluna. Não deu o acabamento? Põe moldura. Já a arquitetura moderna, como é nua, trabalha com materiais bons”, contrapõe.

Um dos princiapais problemas da adoção do estilo, “além do estilo em si”, é o uso medíocre que se faz da linguagem passadista, ataca Biselli. “Ninguém sabe copiar direito uma composição neoclássica. É como tentar reproduzir a receita de um bolo, pegar um glacê e decorar. Não tem criação. Por isso, nenhum arquiteto contemporâneo vai dizer que isso é digno.”

Verdade: criticar prédio neoclássico é fácil. Difícil é achar arquiteto que o defenda. Mesmo tendo projetado vários, Gil Carvalho, da D’Ávila Carvalho Arquitetura, diz que não gosta da reprodução em série que toma conta da cidade. “Mas a gente vive de briefing, não tem como não fazer.”

Se a encomenda vem do cliente, por que o constrangimento? Qual o problema, se a elite quer morar entre colunas e arcos, emoldurada como uma deusa?

O problema é que imóvel privado também é coletivo, tem custos e reverberações públicos, dizem adversários do “neo”. Se gosto não se discute, eles querem que a paisagem urbana seja discutida, antes que termine em ruínas.

“Esse fenômeno acabou com a arquitetura paulista nos últimos 20 anos”, diz Arthur Casas. “Quando eram só prédios do Lindemberg, tudo bem, era uma bobagem, mas pontual. Depois a coisa saiu do controle, virou um bolo de noiva. É um produto arquitetônico induzido.” Casas, autor do projeto do hotel Emiliano, em São Paulo, não pretende discutir gosto. Ele questiona a falta de relação entre prédios e entornos, a desconexão entre os neoclássicos, seu tempo e seu espaço.

“Quem mora em um neoclássico deve ter carruagem na garagem. Não combina com Audi A3”, brinca o arquiteto Biselli.

“Vai além da questão de gosto”, diz Ciro Pirondi, diretor da Escola da Cidade. “Quando alguém diz que gosta do neoclássico, está dizendo que gosta de colonialismo e autoritarismo.”

O triunfo desse gosto, segundo Pirondi, mostra que ninguém sabe para que serve a arquitetura: “Cultura arquitetônica virou luxo pedante, e não forma de construção da civilização. Minha revolta com a volta ao passado é que já fizemos outra cidade, contemporânea. É como cuspir na história.”

O que há é ideologia e preconceito, na visão do argentino Pablo Slemenson, 54. nome que melhor representa o “neo” em São Paulo. “Sou arquiteto, não arquiteto neoclássico”, ele corrige, contando que, nos 80, também se alinhava contra “a arquitetura residencial burguesa”, como era moda.

Quando seu escritório foi escolhido, nos 90, para projetar a conversão do edifício da Eletropaulo em shopping, ele passou a estudar aquele prédio, de 1929. “Nasceu um profundo interesse de minha parte por Ramos de Azevedo. Fiquei maravilhado com a proporção, a volumetria, o ritmo, a ornamentação”, diz ele, que afirma ter descoberto uma tradição classicista na arquitetura paulistana.

Depois, como na faculdade ninguém estuda o Parthenon do ponto de vista de quem vai construir, Slemenson, que é formado pelo Mackenzie, foi pesquisar o estilo. “Peguei minha trouxa e fui a Paris, a Londres, a Madri. Voltei com 20 livros que ensinavam o que era arquitetura clássica e o que eram os estilos, e 2.500 fotos.” Ele é um dos responsáveis pela recuperação das fábricas de ornamentos, quando o isopor ainda não tinha entrado na indústria de fachadas. “Existiam as fábricas de pré-moldados, que faziam uma produção seriada de colunas, balaústres, para residências. A gente pegou esses caras e desenvolvemos modelos de ornamentos para edifício.”

Para Slemenson, que já projetou 15 neoclássicos, esse repertório tem tudo a ver com São Paulo. “É o oposto de uma arquitetura descontextualizada. Mas há uma polarização ideológica que distorce a discussão. Há várias confusões. Pintar um prédio de creme e falar que é neoclássico é plágio, deformação. Aí uno meu clamor contra essa arquitetura falsificada, de mau marketing.”

Falsificada ou “de referência”, como diferencia Slemenson, a arquitetura neoclássica agrada, e ninguém sabe explicar muito bem o motivo desse fenômeno tipicamente paulistano.

“Enfeite vende”, acha o arquiteto Marcio Mazza, diretor do site Arq!Bacana, lembrando que o que ontem era mármore e granito hoje é gesso e isopor. À frente do escritório MM, com um currículo de projetos premiados, Mazza se diz inconformado com a praga “neo”, que verticaliza o classicismo – uma estética horizontal na essência –, e com o desperdício de recursos. “Usam alta tecnologia não para explorar novas soluções, mas para moldar ornamentos da Grécia Antiga.”

Mazza arrisca uma tese para a gênese desse caminho de volta: poderia ser reação de cansaço em relação à arquitetura limpa. “Sim, porque menos é mais quando é bem-feito, e tivemos exemplos de arquitetura moderna malfeita, quando o menos foi menos mesmo e empobreceu a cidade.”

O neoclássico representa, na arquitetura paulistana, o que a grife americana Ralph Lauren representa na moda, quando vende camisa pólo para quem nunca teve cavalos. A comparação é de Arthur Casas, que explica: “É a tentativa de traduzir o desejo de uma classe média com dinheiro novo, que quer comprar passado heráldico.” Casas vê sinais de exaustão dessa fórmula: “Não dou quatro anos para o mercado parar de lançar isso. Os interiores estão mais contemporâneos, não casam mais com neoclássico. As pessoas estão buscando coisas naturais, sem ostentação burra.”

É a mesma aposta de Mário Biselli, segundo quem uma boa parte da sociedade já percebeu esse “golpe de venda”. Esperança idêntica à de Ciro Pirondi: “Estamos condenados a ser modernos”, diz.

Gil Carvalho também crê na decadência do modelo, em função da repetição exagerada: “Isso leva à perda da exclusividade, conceito evocado pelo neoclássico e valorizado pelo comprador.”

É por estar atrelado ao padrão de exclusividade que o estilo vem sendo estendido a outras classes de imóveis, segundo Cyro Naufel Filho, diretor da imobiliária Lopes. “Oferecemos à classe média a mesma fachada dos empreendimentos de luxo. Optamos por estilos que agradem à maioria.”

O comprador ainda associa essas linhas aos primeiros “neo”, plantados nos bairros mais valorizados, conforme Rogério Santos, diretor da Abyara. Para ele, o estilo é “atemporal” e sua aceitação tem mais a ver com os valores do morador do que com o que ele tem no banco: “Um perfil conservador sempre prefere o neoclássico”, diz.

Era inevitável que o “neo” chegasse a imóveis de classe média, diz André Cauduro D’Angelo, mestre em marketing pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de “Precisar, Não Precisa, Um Olhar Sobre o Consumo de Luxo no Brasil” (Lazuli / Cia. Editora Nacional).

“A fachada neoclássica tornou-se um artifício tão manjado que deixou de constituir um diferencial”, fala D’Angelo. Ele diz compreender a manifestação de arquitetos contrários ao fenômeno, mas não a endossa, mesmo reconhecendo o exagero da repetição e a inadequação desse modelo estético aos dias atuais: “No entanto, essa preferência pelo neo constitui um depoimento cultural.”

Para o acadêmico, se a reprodução maciça dessa linguagem reflete também, ou principalmente, conveniências econômicas, não se pode fazer muito. “A paisagem urbana tende a ser um mosaico. É inútil tentar domesticar algo que, por natureza, é desigual. A regra é a alteridade de aparências. Só assim é possível refletir a diversidade sociocultural.” Para D’Angelo, se essa é uma estética considerada de mau gosto, ou inculta, isso não a torna menos digna de registro ou menos representativa destes últimos – e tristes – anos.

Fim do artigo.

Bem, por que estou copiando o texto acima aqui no Sombras Elétricas? A arquitetura, enquanto forma de arte e expressão cultural, obedece a textos e contextos que também permeiam o debate a respeito das outras artes – ou entretenimento – e das outras manifestações da cultura – ou da indústria cultural. Arte e sociedade, cultura e sociedade. O escopo da discussão é amplo, e muitas ligações podem – e devem – ser estabelecidas.

O texto da Folha é muito claro na discussão das características estéticas da arquitetura “neoclássica” dos edifícios residenciais paulistanos, na relação (e na pertinência desta relação) entre essa estética específica e a história do estilo denominado neoclássico, assim como na relação entre o modelo em questão e a sociedade contemporânea de São Paulo – e também na pertinência desta última relação.

Uma real e profunda reflexão sobre as “estéticas” do cinema pode ser feita utilizando-se as mesmas bases. Quantos filmes – ou filmografias, ou cinematografias – não são arquitetados sob a mesma lógica dos prédios “neoclássicos”, e ainda por cima utilizando recursos bastante similares ou equivalentes? Pense nisso.

Mas o caso da sétima arte não é tão ruim. Pois, se um filme de mau gosto nos incomoda, basta sair da sala de cinema ou desligar a TV. Agora, como não cair com os olhos, ainda que de relance, na selva “neoclássica” que infesta – para citar só um dos muitos exemplos – a marginal do Rio Pinheiros?...

domingo, junho 01, 2008

Desejo e Reparação


Um biscoito fino. Feito para parecer caseiro, para parecer que foi feito com o amor, o carinho e a sabedoria inqualificável de uma vovó diligente. No entanto, é industrial. Feito com toda a competência fria, técnica e profissional de um fabricante de produtos. É um chocolate com aroma artificial de baunilha. Jamais natural. Eis o filme Desejo e Reparação (“Atonement”, Reino Unido / França, 2007, dir.: Joe Wright). Um filme feito para abocanhar prêmios, o que até poderia ter acontecido neste último Oscar, caso o páreo não fosse, graças a Deus, muito mais duro (esta fita está aquém de qualquer um dos outros concorrentes a melhor filme). “Atonement” lembra, em alguns aspectos, a velhíssima tradição do filme de arte, os pioneiros a unirem elaboração artística (literária e teatral) com apelo comercial, na primeira década do século XX.

“Atonement” é um filme todo rococó. É de uma estética impecável – o que, neste caso, está longe de ser uma qualidade. É feito para impressionar espectadores sensíveis e com senso estético não mais do que elementar. Em todo caso, o filme é cansativo. Torna-se irritante a sua maravilhosa iluminação, com a luz natural estourada por todos os lados, com um aspecto de ofuscado e de sffumato para dar um clima de sonho, de memória, de passado, de um filme culto e chique. A trilha sonora pontuando as cenas e as emoções sem mão pesada, mas com um dinamismo artificial, muito discursivo, parecendo um comercial de TV. Os riquíssimos e mínimos detalhes dos figurinos, dos cenários – tanto os construídos quanto os naturais: a ambientação é realmente impressionante (!).

Mas não há nada, nisso tudo, que pareça ter nascido e sido elaborado pelo espírito natural e espontâneo de um artista (ou de uma equipe de artistas). Parece um filme feito à risca em cima de uma certa cartilha, em cima do manual do “filme-de-arte-mas-com-apelo-comercial-para-públicos-um-pouco-mais-refinados”. É toda uma sofisticação de boutique, de fachada, com pretensa profundidade, como a arquitetura “neoclássica” que infesta edifícios residenciais de luxo aqui em São Paulo. Não convence. O mais irritante neste filme é a “virtuosa” cena – conscienciosamente elaborada – dos soldados britânicos numa praia francesa à espera de resgate. É o plágio descarado de uma – essa sim – impressionante cena de Apocalipse Now (que eu discuti neste blog no dia 3 de abril deste ano).

Quer dizer, isso apenas nos mostra o quanto a arte se empobrece quando perde a autenticidade. Autenticidade não quer dizer, necessariamente, criatividade e originalidade. Algo autêntico é algo feito de coração, e não com um cérebro que simula um coração. A mera cópia de fórmulas ou padrões estéticos, ou ainda padrões temáticos, ainda que sejam padrões de grande prestígio e legitimidade artística e intelectual, não produzirá nada de realmente substancial, caso não venha acompanhada de uma presença de espírito. Não parece que o diretor, o roteirista, o produtor e outros envolvidos acreditam neste filme, tenham fé nele. O filme causa a impressão de ser feito a toque não mais do que profissional. É um filme marketeiro.

A história, os personagens e os temas discutidos são até que bem interessantes; mas, se for só por eles, é preferível ler o livro (o filme baseia-se num romance). Torcendo, é claro, para que o livro trate esses conteúdos dentro de escolhas literárias interessantes e pertinentes; caso contrário, cair-se-á na desgraça total (tanto literária quanto cinematográfica) que foi O Caçador de Pipas. “Atonement” é um filme tão interesseiro quanto, mas um pouco menos pior – digamos assim. Creio que alguns profissionais e estudantes do Audiovisual – assim como alguns cinéfilos – acharão este filme “perfeito”, “lindo”, “muito competente”. Não discordo de nada disso. Apenas acho que lhe falta algo a mais, uma coisa da qual nenhuma obra de arte, ou produção cultural alguma, deveria prescindir: uma alma. Este filme pretende ter muito coração, mas não parece ter sido feito de coração.