sábado, dezembro 23, 2006

007 - Cassino Royale


O fato de “Tróia” (EUA, 2004, dir.: Wolfgang Petersen), pretensa adaptação da clássica epopéia “A Ilíada”, não apresentar qualquer dos elementos fantásticos da mitologia grega revela bastante sobre a nossa cultura contemporânea. Vivemos um tempo de profunda (e cada vez maior) desilusão, que disfarçamos sob uma máscara de obsessão pelo “realismo”. Parece que não nos permitimos mais dar asas livres à fantasia... como se isso fosse coisa de criança ou de tolos. Assim, nossos novos mitos – e também as releituras que fazemos de velhos mitos – são cada vez mais permeáveis (e até vítimas, assim como todos nós) de todas as vicissitudes que caracterizam a vida no mundo material.

Neste ano de 2006 que passou, tivemos no cinema dois grandes exemplos que ilustram deliciosamente tal situação:
1. O Super-Homem vaidoso, ciumento e falível, em “Super-Homem, o Retorno” (EUA, 2006, dir.: Bryan Synger);
2. O James Bond inexperiente, indeciso, sensível (até apaixonado) e – é lógico – falível, em “007 – Cassino Royale” (EUA, 2006, dir.: Martin Campbell).

Reclamou-se da “feiúra” de Daniel Craig para encarnar o agente 007, mas seus traços mais “rudes” condizem bem com o personagem: esse novo 007 (na verdade, em início de sua carreira como agente “00”) não tem qualquer sutileza, sabedoria ou aquele charme cínico / dândi / niilista que caracterizam os outros 007. Ele vai aprender tudo isso – a muito custo – ao longo de suas aventuras e desventuras neste filme. E o filme mostra esse processo muito bem. “Cassino Royale” é como que um “romance de formação” (bildungsroman) de James Bond, o qual já foi um mito “cavaleiresco-cavalheiresco” para o homem-masculino ocidental na segunda metade do século XX, mas que aqui recebe carne e espírito humanos como qualquer outro pobre-diabo.

Com o perdão do termo, neste filme James Bond praticamente só se “fode”... Seus fracassos e sofrimentos são levados muito a sério pelo filme (em comparação, é claro, com todos os outros filmes da franquia). A cena da tortura é magnífica, atinge de maneira muito significativa a exata masculinidade do Sr. Bond. Depois dos mais de vinte filmes da série, uma cena dessas num filme desses joga uma luz surpreendentemente nova no mito e no homem 007. Eu nunca imaginaria que um dia veria o Sr. Bond chorar...

Mas o mais interessante é ver que tudo o que faz de James Bond um mito nasceu de muito sofrimento e frustração. De uma maneira muito romântica, só mesmo um homem que perdeu a sua humanidade pode transformar-se nessa figura que tanto conhecemos. Neste filme, a polaridade se inverte completamente e o agente 007 vira um verdadeiro e profundo anti-herói. Em princípio, são valores positivos para o crescimento do indivíduo a superação dos traumas, a adaptação às condições adversas e a manutenção da objetividade para se fazer “o que é preciso”; mas, em se tratando de um agente do MI-6 com permissão para matar, a coisa fica mais complicada...

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Sympathy for Godard


Os jovens de hoje que gostam de ver os filmes de Godard para se sentirem mais inteligentes devem tomar cuidado com esta produção. A inspiração apaixonada com que o mestre francês filma os seus assuntos e idéias pode levar o impetuoso e pouco experiente público jovem a fazer uma leitura apenas média do filme, ou seja, a se envolver de uma maneira muito entusiasmada e pouco crítica com o universo da contra-cultura, foco deste documentário poético. Assim, só aumentará o grupinho dos enfants terribles de vinte e poucos anos cuja maior fantasia é ter vinte e poucos anos em 1968.

Jean-Luc Godard pode ser um cineasta militante, mas está anos-luz à frente de um cinema dito “politizado” (que voltou à moda nesta década) que não passa de demagogia, ou reacionarismo, ou pregação para convertidos, ou “chuva no molhado”, chame do que quiser. Isso porque o cinema documentário de Godard é socrático. Expliquemos.

“Sympathy for the Devil” (1968) é um filme que alterna cenas dos Rolling Stones em estúdio, ensaiando a famosa canção homônima, com entrevistas fictícias de personagens simbólicos (como a moça “Eve Democracy”), leituras de obras subversivas, discursos e encenações chocantes envolvendo os Panteras Negras, pichações de muros com neologismos de efeito (“cinemarx”, “sovietcong”), enfim, tudo envolvendo a chamada contra-cultura. O diretor de “Acossado” faz tudo isso de maneira poética e inspirada, onde o cinema fala mais alto do que as idéias, temas ou mensagens que ele carrega, ainda que tudo seja da mais alta importância. É uma lição para filmes que pretendem lidar com ideologia.

Godard faz isso com o devido distanciamento analítico e crítico. Como bem disse um crítico dos anos 70, para falar mal do filme, “Sympathy for the Devil” mais contempla a revolução do que a propõe (Roger Greenpun, New York Times, 27 de abril de 1970). Ora, eu acredito que esse seja o melhor elogio que se possa fazer à produção, pois destaca exatamente sua preocupação fundamental. Eu disse que Godard é socrático justamente porque tudo o que ele faz é nos colocar em contato direto (e até violento) com os fatos urgentes, estimulando a reflexão e o debate. Apenas isso. O próprio realizador não “fala” através de sua câmera. Ele deixa os outros falarem e se mostrarem; o espectador que tome uma posição a respeito do que é mostrado e dito na tela. Os filmes documentários de Godard são diálogos que ele propõe ao espectador. O cineasta aplicará o método socrático do diálogo principalmente em seus documentários e programas de entrevistas para a TV, já no final dos anos 70, como “6x2” e “France / Tour / Détour / Deux / Enfants”. O mesmo crítico acima citado também reclama do excesso de didatismo em “Sympathy for the Devil”. Mas esse “didatismo” faz parte do modelo socrático e é essencial para se estimular a reflexão do público, mais do que simplesmente fazê-lo engolir idéias e conclusões pré-concebidas.

Por isso eu disse que esse filme é um perigo para certos jovens pedantes de hoje. Eles podem não enxergar e não compreender essa proposta de reflexão distanciada sobre a contra-cultura. É surpreendente ver o diretor de “Acossado” filmar os Rolling Stones e a contra-cultura com uma câmera pra lá de clássica, em planos de muito longa duração (principalmente mostrando os Stones em estúdio) e quase sempre de conjunto, ou seja, distanciado mesmo! Sendo quase todo feito em planos de conjunto rigorosamente enquadrados, o filme realiza bem a proposta de mostrar tudo em seu contexto e assim ajudar melhor na reflexão e na conclusão a serem empreendidas pelo espectador. As cenas com os Panteras Negras no ferro-velho de automóveis são belíssimas.

Eu não consigo deixar de pensar (e me divertir) em como seria um “remake” desse filme feito por algum jovem cineasta virtuose da geração (pós-)MTV: câmera na mão e tremida, ritmo de videoclipe, diversos filtros chocantes na iluminação e nas cores, primeiros-planos emocionados... (Que horror!)
O diabo é uma figura simpática e está em todos os lugares.

Sympathy for the Devil


“Please allow me to introduce myself
I'm a man of wealth and taste
I've been around for a long, long years
Stole many a man's soul and faith

And I was 'round when Jesus Christ
Had his moment of doubt and pain
Made damn sure that Pilate
Washed his hands and sealed his fate

Pleased to meet you
Hope you guess my name
But what's puzzling you
Is the nature of my game

I stuck around St. Petersburg
When I saw it was a time for a change
Killed the czar and his ministers
Anastasia screamed in vain

I rode a tank
Held a general's rank
When the blitzkrieg raged
And the bodies stank

Pleased to meet you
Hope you guess my name, oh yeah
Ah, what's puzzling you
Is the nature of my game, oh yeah

I watched with glee
While your kings and queens
Fought for ten decades
For the gods they made

I shouted out,
"Who killed the Kennedys?"
When after all
It was you and me

Let me please introduce myself
I'm a man of wealth and taste
And I laid traps for troubadours
Who get killed before they reached Bombay

Pleased to meet you
Hope you guessed my name, oh yeah
But what's confusing you
Is just the nature of my game

Just as every cop is a criminal
And all the sinners saints
As heads is tails
Just call me Lucifer
'Cause I'm in need of some restraint

So if you meet me
Have some courtesy
Have some sympathy, and some taste
Use all your well-learned politesse
Or I'll lay your soul to waste, um yeah" Sympathy for the Devil - Jagger / Richard, 1968

quinta-feira, novembro 30, 2006

Sobre o Sr. Cláudio Assis e o seu cinema


E eis que “Baixio das Bestas”, a mais nova pérola do realizador de “Amarelo Manga” (2003), leva o prêmio de melhor filme no 39º Festival de Brasília. O filme anterior – debute do Sr. Assis – foi, a seu tempo, unanimidade no mesmo festival, levando os prêmios do público, do júri oficial e da crítica.

Sabe, às vezes me dá a impressão de que, no Brasil, estamos vivendo um cenário de literatura fantástica, algo extraído de Lewis Carroll, Jorge Luís Borges ou Gabriel Garcia Marques. Não que o fato me seja inconcebível, mas vem-me com a violência de um tapa o absurdo (no sentido surreal da palavra) de que tal “artista” e suas obras sejam assim tão ovacionados. Tenho em mente “Amarelo Manga”, que eu vi – embora, pelo que se comenta, “Baixio das Bestas” vai também no mesmo caminho estilístico e ideológico.

Eu gostaria de fazer muitos comentários sobre a figura do Sr. Cláudio Assis e sobre os seus filmes, mas não o farei. Tenho medo. Assim, não falarei do absurdo que é um “artista” ideologicamente preso como se fosse a uma camisa-de-força a filosofias e estéticas que já estão datadas em 150 anos e ultrapassadas há, pelo menos, 80 anos. O cinema do Sr. Cláudio Assis lembra-me muito claramente os piores vícios dos piores imitadores e epígonos de Émile Zola e do nosso conterrâneo Aluísio Azevedo. Toda a pequenez de pensamento, a esterilidade gratuita e o inevitável preconceito no qual acabaram caindo muitos autores do chamado Naturalismo literário, cegos por sua fé intransigente nas formas mais torpes do Determinismo, do Darwinismo Social e do Niilismo também se aplicam de maneira exemplar ao cinema do Sr. Cláudio Assis.

Como se pode levar tão a sério um “artista” assim tão apegado a ideologias altamente questionáveis em seu excesso radical e, mais do que isso, sectário? O Sr. Cláudio Assis não é radical; ele é sectário. Percebe-se nitidamente isso no seu cinema e em sua postura e atitudes pessoais. A inteligentsia do Cinema Nacional, a crítica e o júri dos grandes festivais (se não também o público) precisam ter, pelo amor de Deus, esse discernimento! Mas acho que é besteira eu apelar para Deus, pois o Sr. Cláudio Assis, com certeza, deve achar a mera idéia de Deus uma besteira de gente ignorante e alienada; assim, eu corro o sério risco de ele e (ou) os seus fãs me acusarem de intolerante religioso conservador e moralista. Oh, céus! Por isso, eu não falarei nada.

Também não falarei do absurdo que é nossa inteligentsia estar aparentemente tão perdida numa espécie de limbo ético e moral (sinal dos tempos modernos e pós-modernos?) a ponto de chamar carinhosamente de “enfant terrible” um homem que é simplesmente mal-educado, mal-criado, intolerante, vestindo com orgulho um pensamento ideológico datado, superficial e preconceituoso, e, repito, sectário. Desde quando essas coisas todas viraram “chiques”? Temos aqui um homem extremamente auto-indulgente, ego-maníaco, intolerante e risivelmente pueril a ponto de exercer o “modelo maduro de conduta” que é simplesmente desqualificar a pessoa de qualquer um que ouse se opor a suas obras e idéias (às vezes com profundas e explícitas ofensas, como no caso do cineasta Hector Babenco, que foi chamado simplesmente de “imbecil”). Aos que vaiaram sua mais nova preciosidade no Festival de Brasília ele chamou de “culpados”. Quer dizer: ou somos todos condescendentes para com o Sr. Cláudio Assis, ou somos os seus inimigos declarados e desonrados. Será que é assim a coisa? Essa atitude me lembra daqueles políticos mais viciosos, gente da estirpe de Paulo Maluf. Desde quando passamos a confundir um homem assim com um artista que “não faz concessões”? (apenas cito expressões usadas na imprensa para elogiar o Sr. Cláudio Assis).

Um parêntesis: isso muito me lembra, na época da universidade, aqueles “estudantes profissionais” (na verdade agentes de partidos políticos ultra-radicais infiltrados nos centros acadêmicos para promover a “revolução”) que imediatamente taxavam de “pequeno-burguês” qualquer um que se opusesse ao fato de eles freqüentemente interromperem as aulas para anunciar e promover “manifestações” e greves estudantis.

O pior é que chamam o Sr. Cláudio Assis de “corajoso”. Meu Deus do céu! Será que não se entende de maneira alguma que uma postura realmente corajosa, crítica e prolífica, daquelas que sacodem o “estabilishment”, ajudam-nos a tomar consciência e revolucionar para rumos melhores, envolve muito, mas muito mais do que ficar berrando palavrões à vontade, xingar quem não concorda com as suas próprias idéias, mostrar na tela de cinema um boi sendo morto a golpes e dizer por aí que o ser humano é apenas sexo e funções fisiológicas? (saiu da própria boca do Sr. Assis esse grande aforismo da sabedoria do Naturalismo literário do século XIX e de suas ideologias de base; esse homem é inacreditável!)

A atitude pessoal, ideológica e artística do Sr. Assis seria também preocupante, porém, mais compreensível, se fosse oriunda de um adolescente de 15 ou 16 anos. Mas em um homem maduro...

continuação de Cláudio Assis...


Concordo plenamente que para “revolucionar”, para mostrar de maneira livre e crítica certas coisas que as pessoas precisam ver, é necessário ou minimamente interessante, às vezes, procurar chocar. O artista responsável deve fazer o seu público sair da posição por demais cômoda do cotidiano e refletir sobre outros aspectos e fatos da vida e do mundo. Grandes obras de arte chocam de maneira radical e exemplar. Contudo, há que se ter um discernimento. O choque nunca, jamais deve ser gratuito; muito menos em favor de idéias e mensagens altamente questionáveis no sentido ético e (ou) moral. Pois bem, não me parece ser exatamente este o caso do cinema do Sr. Cláudio Assis.

“Amarelo Manga”, sob o (justo e até louvável) pretexto de mostrar de modo contundente o pior aspecto do ser humano, da vida e do mundo – especialmente o brasileiro – , e assim conscientizar e libertar a mente do seu espectador, acaba, no fundo do seu decorrer, servindo apenas de veículo ideológico e panfletário à visão mais abjeta da existência, fruto bem pessoal da mente de seu diretor. O filme comete o mesmíssimo engano dos romances naturalistas: ao invés de utilizar filosofias como instrumento para se compreender uma determinada realidade, acaba-se manipulando e deturpando a realidade para se encaixar melhor àquelas filosofias, crendo-se que com isso elas serão provadas empiricamente. Não passa de propaganda ideológica do tipo mais pobre (e, repito, referente a ideologias altamente questionáveis, o que é ainda pior). A diferença entre o Sr. Cláudio Assis e um artista de verdade é que este último constrói uma “piscina” realmente profunda, que faz o seu público ficar assombrado com a escuridão misteriosa de suas águas e ansioso (ainda que com medo) por mergulhar nelas e desvendar o seu fundo; já o realizador de “Baixio das Bestas” (parece o título de algum romance da sub-literatura folhetinesca da “bèlle epòque”) constrói uma “piscina” extremamente rasa, mas turva as suas águas com tintas escuras para fazê-las parecerem profundas. Quem tentar mergulhar nelas vai quebrar a cara...

A parte do meu pensamento que se apega à filosofia, à sociologia e à psicanálise, sentiu-se bastante ofendida em ver “Amarelo Manga”. Minha inteligência fica tão ofendida quanto ao acompanhar certas campanhas do marketing político ou do religioso. A estupidez é a mesma na esquerda e na direita; isso é o que poucos parecem perceber. Repito: é natural se os filmes de Cláudio Assis agradarem a adolescentes revoltados, mas esse cinema não resiste a um pensamento e gosto mais maduros.

Outro parêntesis: não quero incorrer no mesmo erro do Sr. Assis, por minha parte desqualificando as pessoas que apreciam os filmes desse diretor. Peço desculpas se meus argumentos parecerem ofensivos, mas o fato é que: podemos apreciar a estética desses filmes e alguma parcela de seu conteúdo; mas certas idéias ali presentes e propagandeadas são intolerantes, desrespeitosas e anti-éticas. Essas coisas não podem ser apreciadas sem uma dose questionável de condescendência.

Também fico ofendido como contribuinte, ao saber que filmes assim são feitos com a ajuda de verbas públicas. Mas não vou falar aqui de critérios para a concessão de dinheiro público ao cinema, pois com certeza alguém resmungará: “censura!”, chamando-me de repressor, autoritário, etc.

Chama muito a atenção o atual estado da nossa inteligentsia. Ela cai de amores por um filme como “Amarelo Manga”, que não passa de um proselitismo descarado da forma mais superficial, intolerante, desrespeitosa e absolutista de um materialismo niilista (a cena em que o próprio diretor, como figurante, diz uma frase “de efeito” ao ouvido de uma moça evangélica – que obviamente encarna ali TODOS os evangélicos –, numa cena totalmente solta e gratuita no conjunto do filme, é de um desrespeito gritante para com esse grupo social e religioso). Por outro lado, a inteligentsia promove um verdadeiro levante com todas as suas armas contra um filme como “A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson, chamando-o precisamente de excessiva e gratuitamente violento, intolerante, desrespeitoso, absolutista, proselitista, etc, ou seja, exatamente as mesmas características que apresenta o cinema de Cláudio Assis. Realmente, não dá pra entender. Na verdade, até dá, mas eu prefiro me calar, pois eu já sei exatamente quais serão as críticas que receberei por isso, e quero evitá-las. Não darei trela a nenhum espírito malicioso. Como eu já disse, não falarei nada sobre o Sr. Cláudio Assis e sobre os seus filmes, pois eu tenho medo dele. Tenho medo de que ele também chame a mim de “imbecil”, “culpado”, ou coisa pior.

quinta-feira, novembro 02, 2006

"Cabiria"


Filme exibido na 30ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Existe algo de especial em se ver uma obra clássica do cinema no cinema, principalmente se for uma das obras-primas fundadoras da arte cinematográfica. Na literatura, por comparação, esse algo de especial se perde. Ler Homero é fascinar-se pelo retrato de uma época, situações e personagens que estendem o seu eco até nós, é reconhecer a estética que forjou os padrões para toda a literatura subseqüente. Mas, para ter o poder específico do cinema, nós teríamos que ler a “Ilíada” no original em grego e no mesmo pergaminho em que tal obra primeiro foi talhada; também ajudaria se nos colocássemos debaixo das arcadas do Parthenon ao fazer essa leitura.

Talvez assim passássemos, com a literatura, por uma experiência um tanto quanto equivalente a ver Cabiria na sala escura de um cinema, com o devido acompanhamento da trilha musical ao piano, executada ao vivo.

Cabiria (Itália, 1914) está no vértice de todo cinema grandiloqüente, hoje chamado de “blockbuster”. Tudo, nessa obra do engenheiro italiano Giovanni Pastrone (que adotara na época o pseudônimo de Piero Fosco), é construído hiperbolicamente para transportar os sentidos e as emoções do espectador. Se é possível falar em Cultismo e Rococó barrocos no cinema, temos que citar “Cabiria”. Em mais de um aspecto, os mestres de Hollywood D. W. Griffith e Cecil B. de Mile são devedores de Pastrone e seu épico. Vamos, então, enumerar os marcos que esse filme estabeleceu na história do cinema.

O roteiro é assinado pelo famoso poeta Gabriele D’Annunzio, embora seu autor real tenha sido o próprio Pastrone, sob o pseudônimo de Piero Fosco. Os cenários já não são simples telas pintadas, como nos filmes de Meliès; são construídos em três dimensões e com proporções às vezes gigantescas. Para as filmagens no cenário natural (e gelado) dos Alpes, Pastrone fez uso de centenas de figurantes em cavalaria, incluindo autênticos elefantes. O realismo é bem mantido tanto nas cenas naturais quanto nas de estúdio, que não se contradizem. “Cabiria” foi o primeiro filme a atingir três horas de duração e o primeiro a promover uma ostensiva campanha de marketing. Toda essa estratégia cabiriana em cima do “filme espetáculo” teve como objetivo levar o cinema a alçadas mais elitistas, dissociando-o do espetáculo circense-popular que caracterizou o seu nascimento. “Cabiria” pode ser incluído dentro dos “filmes de arte”, gênero famoso nos primórdios do cinema, que se caracterizou por seus aspectos literários (enredo e diálogos, que eram muitas vezes assinados por escritores famosos) e teatrais (a encenação dos atores, figurino e cenário) e teve como meta tornar o cinema um entretenimento mais culto, sério e elitista.

Não obstante, o filme de Pastrone também se destaca como pioneiro na construção da “linguagem (especificamente) cinematográfica”. A complexidade da narração e da decupagem, a maneira como o filme conduz o espectador com muita liberdade e catarse são influências evidentes para Griffith. Em alguns momentos de “Cabiria”, a câmera move-se paralelamente ao cenário, ou aproximando-se e afastando-se dos personagens, destacando sua ligação com o ambiente e conferindo relevo à cena. Esse processo foi realizado pelo cinegrafista espanhol Segundo Chomon, que montou a câmera num carro, chamando-o de “carrello”. Assim, podemos conceder a “Cabiria” a precedência no uso do “travelling” (importante técnica na construção da estética cinematográfica), antes mesmo de Griffith.

A expressividade da iluminação também é uma conquista de “Cabiria”. Pastrone foi o primeiro a utilizar a luz elétrica artificial para fins estéticos, e não apenas para reforçar a luz solar em contraluzes ou claros-escuros – como se fazia até então. Isso aparece principalmente na cena em que Arquimedes incendeia com espelhos a frota naval romana: seu rosto é modelado magnificamente em primeiro plano por uma luz que vem de baixo, sobre o fundo esfumaçado da guerra. A montagem alternada (ou paralela) antecipa em dois anos àquela presente em “Nascimento de uma Nação” (1916), de Griffith. Trata-se de duas seqüências de acontecimentos distintos – em lugares diferentes – que são mostrados na tela ao mesmo tempo, alternando-se uma a uma cenas de um e de outro; normalmente, esses acontecimentos são convergentes: eles se encontrarão em um determinado tempo, numa única cena. É uma técnica que contribui muito para o suspense e o clímax da ação do filme (além de ser um componente-chave na composição da linguagem fílmica), na qual Griffith é considerado o criador e primeiro mestre, mas na verdade o tributo da originalidade deve ser prestado a Pastrone.

A história do filme (resumindo a grosso modo, fazendo pouco jus às preocupações literário-narrativas da película) trata da menina Cabiria, filha de patrícios romanos, que, após uma erupção do vulcão Etna, é raptada e vendida como escrava em Cartago, na época das guerras púnicas. O também patrício Fulvio Axilla, acompanhado por seu fiel servo Maciste, parte para o resgate. Aqui temos que abrir um parêntesis: a figura simpática do corajoso, perseverante e sobretudo fiel guerreiro Maciste exerce muito poder sobre a platéia; tanto que foi reutilizada com muito sucesso em filmes italianos subseqüentes.

A forte cena do sacrifício de crianças para o deus Moloch, do qual Cabiria também foi escolhida para ser vítima, teve uma “Sinfonia do Fogo” especialmente composta pelo autor que assina a trilha sonora, Ildebrando Pizzetti.

Como acontece em muitos filmes ambiciosos do período mudo, a afetação dos atores, do drama e da linguagem dos letreiros mais provoca risos nas platéias contemporâneas do que lágrimas. Entretanto, concedamos o crédito ao filme como documento de uma época gloriosa do cinema, muito próxima do seu nascimento, quando sua identidade ainda não estava nem um pouco formada. Imagine o entusiasmo de se envolver com uma nova forma de linguagem e de arte em processo de origem, ou seja, onde tudo – absolutamente tudo – ainda está para ser descoberto, experimentado, inventado e elaborado. E é graças a gênios desbravadores como Meliès, Pastrone e Griffith que hoje temos e amamos a arte do cinema.

“Cabiria” é de uma época em que a magia das “imagens em movimento” ainda fascinava e assombrava. É preciso tentar ver esse filme como o viam as primeiras platéias em 1914. Por isso, foi fantástica a exibição nesta Mostra de uma cópia restaurada, com o acompanhamento, ao vivo no piano, da trilha sonora original executada pelo maestro italiano Stefano Maccagno. É a experiência do Cinema, em todo o seu poder.

quarta-feira, outubro 25, 2006

"Meus Quinze Anos"


Filme exibido na 30ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

É um filme simpático, agradável de se assistir, porém, não podemos evitar a sensação – momentos após sair da sala escura e lutando com as luzes do mundo “real” – de que faltou algo. Eu quero mais desse filme. Mas, infelizmente, ele acabou – um tanto repentinamente.

No caso, essa sensação de “quero mais” é a qualidade e o defeito da obra. Meus Quinze Anos (“Quinceañera” EUA, 2006, 90 min.), dirigido por Richard Glatzer e Wash Westmoreland ganhou os prêmios de filme dramático e do júri popular no mais recente festival de Sundance (famoso festival norte-americano de filmes independentes). A história mostra com simpatia uma família de ascendência mexicana no bairro latino de Echo Park, em Los Angeles. Sorrimos e confortamo-nos com o seu calor e alegria latinos, especialmente nas festas de debutantes. Contudo, o foco está na figura de Magdalena (Emily Rios), que engravida virgem (é isso mesmo) nas vésperas de completar seus quinze anos (sua “quinceañera”). Sem acreditar no argumento da “virgindade”, exposto pela filha, o seu pai a expulsa de casa e ela vai morar com o tio-avô Tomás Alvarez (o ótimo ator Chalo González) – o pioneiro do clã a emigrar para a América – e seu sobrinho gangsta-gay (é isso mesmo) Carlos (Jessé Garcia), também expulso de casa pelo pai.

A figura do tio Tomás é o ponto alto do filme. Ele acolhe com carinho os dois desajustados e ensina a todos a conviver com as diferenças e as vicissitudes da vida. Sua simpatia conquista o espectador de imediato. Contudo, seu fim é trágico (não falarei como) e o discurso de Carlos – em determinada cena no final – é fortemente significativo e comovente.

É aqui que podemos começar a falar dos problemas do filme. Não faria mal ele tratar um pouco mais e de maneira um pouco mais contundente dos fatos que levaram à tragédia do tio Tomás – esse assunto, de grande pertinência e gravidade, ficou muito “jogado” no filme, assim como a questão da gravidez virgem e adolescente de Magdalena. O filme não entra a fundo nessas questões e em outras (como a homossexualidade e a bandidagem de Carlos). É claro que não precisaria ser um “filme de tese” (o que certamente agradaria muito melhor o gosto intelectual dos críticos e do público culto), mas, do modo como está, acaba sendo uma narrativa por demais pitoresca e picaresca – o que, em si, não é de jeito algum mal, mas, ao tratar de temas tão graves, o filme poderia deixar-se imiscuir de pelo menos um pouco mais de seriedade, que não faria muito mal à sua proposta de simpatia.

A narrativa adota soluções por demais fáceis e rápidas para os problemas tratados. Soluções positivas e edificantes, o que não é ruim nem inverossímil, porém, superficiais. Podemos até enxergar essas soluções como mostras da simplicidade, da humildade e do caráter positivo daqueles personagens, contudo, isso pode não ser o suficiente...

Pode-se talvez reconhecer, em Meus Quinze Anos, um parcela daquela visão demasiadamente exótica, pitoresca e picaresca (engraçadinha), paternalista e um tanto quanto preconceituosa (o chamado “preconceito positivo” presente nos elogios) que a classe dominante artística e intelectualizada tem do povo e da cultura popular. Essa visão está por demais presente (quem sabe predominante) no cinema brasileiro e também na nossa literatura, particularmente nos romances do Romantismo do século XIX e de autores mais modernos como Jorge Amado. Essa visão chama muito a atenção pela banalidade e pelo deslocamento, pelo desencaixe que faz de questões fundamentais.
Assim, uma imagem que representa perfeitamente essa visão (e o próprio filme, em seus personagens, temas e situações) está no começo de Meus Quinze Anos – é a primeira imagem que aparece na tela: vemos uma paisagem de natureza paradisíaca que imediatamente tomamos como real, exceto por uma linha do lado direito que a deixa descontínua – o que é bastante chamativo e nos faz por um momento pensar que o projetor da sala de exibição está desregulado; então, aparece em primeiro plano (o que nos faz pular para trás na cadeira) o busto do pai de Magdalena, e vemos, posteriormente, que aquela paisagem é um cartaz (muito mal colado, por causa daquela linha) na parede do altar da igreja na qual ele é pastor e que toda a família freqüenta. O “kitch”, o desencaixe e a ilusão daquele cartaz define maravilhosamente o filme, seu ponto de vista, seus personagens e enredo.

domingo, outubro 22, 2006

A Sensação de Ver


Filme exibido na 30ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Eu não deveria falar nada sobre este filme. É difícil explicar o seu valor sem incorrer em vários “spoilers” – isso se eu pretender fazer uma crítica nos moldes jornalísticos, ou seja, uma orientação que ajudará o espectador a decidir se verá ou não o filme. Agora, se for o caso de escrever aqui uma análise, então eu me armarei de todo o instrumental dissecatório próprio à tarefa. Não obstante, uma “análise” também destruiria sensivelmente a experiência do filme.

Assim sendo, a melhor recomendação que eu faço é: assista ao filme! Deixe-se envolver por seus ambientes – que o diretor, apresentando de corpo presente a sua exibição ontem (22/10) no Cine Bombril, chamou de “quiet places” –; seus personagens e suas histórias – o realizador disse que o filme é bem pessoal. Enfim, viva o filme, pois isso é o que ele tem de melhor a oferecer. Mais do que reflexões (compostas, por exemplo, por intertítulos – à maneira dos filmes mudos – com citações filosóficas recitadas pela voz do protagonista) ou emoções (em algumas cenas-chave, especialmente no final), o filme traz e propõe uma vivência, uma experiência – tal qual a dos personagens – íntima, forte, reveladora e transformadora.

O peso da experiência singular (no caso, um trauma, uma tragédia) pode nos paralisar, mas finalmente acabará por nos transformar. É o que acontece com os personagens do filme, especialmente com o protagonista. E o aspecto sensível da experiência já está destacado no título: “A Sensação de Ver”, que será explicado no final da exibição. A situação imperativa que se coloca aos personagens não é a do “aprender a ver” (tema já banal em narrativas psicológicas e filosóficas), mas sim a do lidar com o impacto causado pela imagem vista; processar na mente e no coração todo o peso de uma determinada visão chocante é um trabalho dos mais árduos, porém, não é ingrato – o aprendizado e a transformação que decorrerão daí são incalculáveis para o indivíduo. O filme se pauta pelo “Why?” (“Por que?”) e conclui que, para certas coisas, não devemos “bitolar” nos porquês, o melhor é simplesmente vivenciá-las de maneira bem estóica e deixá-las passar.

A tragédia testemunhada visualmente pelo protagonista é o estopim e o centro da discussão, que se estende a outras pessoas com quem ele e a vítima da tal tragédia têm contato.

Bem, já estou falando muito sobre o filme. Agora já era! Falarei ainda mais, mas sempre tomando o cuidado para não estragar a experiência do filme (apesar de que, se você ler este texto inteiro, uma parcela dessa experiência já vai “pro saco” de qualquer jeito; o ideal é assistir ao filme sem nunca ter lido ou ouvido falar coisa alguma sobre ele, ignorando completamente a sua existência, tal como eu fiz ontem).

A Sensação de Ver (“The Sensation of Sight”, EUA, 2006) está na mostra competitiva de novos diretores, dentro da 30ª Mostra de São Paulo. É o longa-metragem de estréia de Aaron J. Wiederspahn (autor também do roteiro), que já cantou em bandas de rock obscuras. O elenco é encabeçado pelo veterano David Strathairn (indicado ao “Oscar” de melhor ator por Boa Noite, e Boa Sorte, de George Clooney), Ian Somerhalder (o “Boone”, do famoso seriado de TV Lost), Daniel Gillies (Spiderman 2) e Scott Wilson (C.S.I.).

A produtora deste filme – Either / Or’s, fundada pelo próprio Aaron J. Wiederspahn e por Buzz McLaughlin (produtor de “A Sensação de Ver”) – tem como missão “criar filmes que desafiem, provoquem, e alimentem a audiência oferecendo histórias de esperança, redenção e cura”, conforme consta na página da “Either / Or’s” na Internet. Buzz McLaughlin explica: “Nós procuramos produzir filmes que coloquem as pessoas no mundo real, pessoas que estão lutando ou em problemas: essas histórias centradas em personagens tomarão um protagonista em uma jornada para um lugar de cura e esperança definitivas. Nós não buscamos necessariamente produzir filmes que façam as pessoas se sentirem bem, queremos antes contar histórias que lidam com as duras realidades da vida”. A Sensação de Ver encaixa-se bem dentro dessas propostas. É muito comum, nas mostras e festivais de cinema, tornarem-se mais queridinhos os filmes mais sócio-políticos, ou politizados (caso de O Crocodilo, de Nanni Moretti; de The Wind that Shakes the Barley, de Ken Loach; de Babel, de Alejandro González Iñarritu; de Caminho para Guantánamo, de Michael Winterbottom e Mat Whitecross; etc). Só pra ser do contra: meu voto vai para filmes “pequeniloqüentes” como A Sensação de Ver.
(continua no post abaixo)

continuação de "A Sensação de Ver"



A história mostra um professor de Inglês de meia-idade, o Sr. Finn (Strathairn), que, traumatizado por uma tragédia recente, abandona família e profissão para vender enciclopédias de porta em porta numa cidadezinha do nordeste norte-americano (Peterborough, em New Hampshire). Suas andanças são acompanhadas por reflexões existenciais; ele claramente perdeu o rumo na vida. Ao longo do caminho, o Sr. Finn vai encontrando e se relacionando (arduamente) com pessoas ligadas (de algum modo) ao seu passado e à citada tragédia.

Até aqui, não há nada que chame muito a atenção. Não é um filme ruim, mas também não ultrapassa os lugares-comuns do cinema “independente”. Mais do que “independente”, este é um filme “indie”. Os personagens todos têm aquele charme dos desajustados, suas vidas têm aquela insignificância típica, seus segredos não-revelados deixam o espectador com a pulga atrás da orelha... Enfim, um ótimo candidato a filme “cult”, habitante natural das mostras do cinema de arte (São Paulo, San Sebastian, etc).

Pra falar a verdade, eu cochilei no meio do filme, que é longo (134 min.): ficava apagando e acordando intermitentemente, perdia alguns diálogos, mas sabia que nada de muito importante estava acontecendo. Então, aconteceu! No último terço, a narrativa ganha uma força incrível, os mistérios começam a ser revelados, peças começam a encaixar (pois tudo estava muito solto antes, o filme apenas acompanhava como uma testemunha o cotidiano banal dos personagens), o drama começa a crescer imensamente e se aprofundar. Os personagens passam de “figurinhas indies” a pessoas singulares e graves. A revelação da “tragédia” em questão (que, como eu disse, é o centro de tudo), dota o filme e os seus personagens de uma especificidade e profundidade que levam o espectador a realmente se comover... de modo como ele nunca havia se comovido antes (com esta narrativa) e nem esperava que pudesse ser comovido assim. O filme surpreende. Se até então tudo estava muito genérico, no final a particularização cai com o peso de um piano nos olhos e na cabeça do espectador. Isso também ajuda a explicar o título: “A Sensação de Ver”, pois o final é de uma densidade poética admirável.

As reações da platéia mostram bem os efeitos dessa singular progressão narrativa. A reação do espectador, na última parte do filme, é: “Ah! então é por isso que...” e então vêm as lágrimas: quero dizer, se antes estávamos muito indiferentes em relação a tudo, a partir de certo momento passamos a nos envolver incrivelmente com os personagens (especialmente com o Sr. Finn e com Drifter (Ian Somerhalder). A revelação visual da tragédia ao espectador traz todo o impacto da “sensação de ver” (conforme eu disse no começo); assim, nós passamos a compreender porque é tão difícil para o Sr. Finn lidar com ela.

A forte oposição entre o filme “pré-revelação” e o filme “pós-revelação” é também evidente na câmera: na maior parte do tempo, ela é absolutamente fixa e sóbria; na última terça parte, ela ganha (muito) mais movimento e agilidade, especialmente em determinada cena entre o Sr. Finn e Drifter, de um nervosismo dramático extremamente intenso.

Todo filme tem um momento em que se revela: como bom filme (às vezes, grande filme, uma obra-prima) ou como mau filme (às vezes, uma porcaria inacreditável, caso de “O Grande Sertão”, que discuti num post anterior). É aquilo que, nos bons filmes, Henri Agel chama de “alma” – no magnífico livro O cinema tem alma? Em muitos grandes filmes, essa alma aparece com toda a sua força logo nos dez primeiros minutos de exibição (caso de “O Pianista”, de Roman Polanski). Contudo, é mais surpreendente quando ela aparece depois de uma ou uma hora e meia de relativa indiferença do espectador. É chocante, porque temos que dar o braço a torcer: um filme que, em sua maior parte, parecia que não daria nenhum vôo um pouco mais alto, de repente dispara como um foguete. Isso não é contraditório, pois essa “disparada” faz com que, revendo o filme como um todo, todas as partes se encaixem com lógica, tudo se explica, inclusive os “vôos baixos” do começo, que, após vermos o final, entendemos que não são tão “baixos” assim.

A Sensação de Ver – “The Sensation of Sight” – EUA, 2006 – 134 min
Produção: Buzz McLaughlin (Either / Or’s)
Direção: Aaron J. Wiederspahn
Roteiro: Aaron J. Wiederspahn
Fotografia: Christophe Lanzenberg
Montagem: Mario Ontal
Música: Rupert A. Thompson
Elenco: David Strathairn, Ian Somerhalder, Daniel Gillies, Scott Wilson, Jane Adams, Ann Cusack, Joseph Mazzello, Elisabeth Waterston.
Data de estréia: por enquanto, o filme está sendo exibido apenas em mostras e festivais ao redor do mundo; não há data de estréia comercial nos EUA, muito menos no Brasil.

sábado, outubro 21, 2006

O Diabo Veste Prada


Por Cris
Devo confessar uma coisa a respeito de O Diabo Veste Prada, de David Frankel: fui ao cinema esperando que fosse um bom filme. Muitos (certamente menos ingênuos) ririam dessa minha esperança, mas eu estava bastante curiosa em relação ao desenrolar do tema: o título já me pareceu intrigante... Não li (e nem conhecia) o livro, portanto não posso comentar o filme como adaptação – e talvez seja essa a causa das minhas frustradas expectativas. Ouvi alguns dizerem que é uma obra para os amantes de moda... É, deve ser, mesmo. Aliás, se a moda aqui é tratada de maneira digna, não quero nem pensar o que seria dela se fosse vulgarizada!

É bem verdade que nem tudo é uma porcaria: a atuação de Meryl Streep é, como sempre, impecável: ela está excelente tanto como vilã quanto, posteriormente, como anti-heroína – sim, porque há no desenrolar da narrativa uma mudança gradativa em relação à visão que se transmite dessa personagem, humanização essa que me incomodou um tanto e para esse assunto voltarei em breve. A trilha sonora e os figurinos (também, era só o que faltava, o filme tem o mundo da moda como cenário...) não são de se jogar fora. O problema é: um filme que se prende apenas por atuações, figurinos e trilha sonora não pode ser levado muito a sério. Que ele não seja inovador, tudo bem (essa fixação por originalidade também me irrita), mas daí a ser "clichezão" tem uma enorme diferença. Um roteiro básico e previsível, uma direção medíocre e uma fotografia comum marcam essa comédia tipicamente hollywoodiana.

Anne Hathaway faz o papel de Andrea, uma jovem inteligente e talentosa que, recém-formada em jornalismo, muda-se para Nova York na tentativa de lutar por sua tão sonhada carreira. Em vez de um grande jornal, no entanto, a única coisa que ela consegue é trabalhar como segunda assistente da editora-chefe de uma das maiores revistas de moda dos Estados Unidos: a Runaway. O emprego que seria o dos sonhos de muitas garotas, inicialmente desprezado por ela – esse seria o motivo, a propósito, dela tê-lo conseguido – vai, ao longo dos meses, transformando a nossa protagonista. Andrea é apresentada de maneira óbvia, porém interessante: enquanto suas concorrentes escolhem a dedo a roupa, a maquiagem e os acessórios que vão utilizar para serem entrevistadas pela rainha da moda e pegam táxis para chegar à revista, a nossa excepcional moça veste a primeira roupa que encontra no armário e, como se não bastasse, ainda come com gosto e sem culpa um pão com recheio de cebola numa padaria próxima à saída do metrô – um verdadeiro insulto para as modelos: muito carboidrato! Pronto: a única diferente, a única capaz. Sua idéia é agüentar o emprego (com todas as suas futilidades e, o pior, as grosserias da chefe) como se fosse um trampolim para algo realmente importante e digno durante apenas um ano no intuito de conseguir um bom QI (“quem indique”). É até engraçado (e, devo dizer, um tanto inverossímil) o quanto Andrea é ridicularizada por todos por ser gorda (manequim 40): a atriz que a interpreta é magérrima!!! Entendo o sarcasmo na escolha de Hathaway para o papel, mas para isso funcionar, as outras garotas deveriam ser mais magras do que ela... A primeira assistente, por exemplo. Enfim, deixa isso pra lá; a minha grande questão aqui nem é essa.

A virada do filme vem com o drama moral que surgirá quando Andrea começa a gostar do mundo de aparências e glamour que a rodeia. Desculpem-me aqueles que ainda não assistiram ao filme e nem imaginam o final, terei de surpreendê-los: Andrea não se deixa seduzir por completo pelas futilidades, oh, que grande mocinha! Quando percebe que o seu futuro é tornar-se uma canalha solitária porém glamurosa e famosa como a editora, quando se dá conta de que as duas possuíam tanto em comum, abandona a sua “diabólica” chefe – que, nessas alturas, já ganhou a simpatia do espectador e, de tão humanizada, já não é mais tão diabólica assim... – Miranda Priesley. Nenhum problema com o moralismo em si, mas, para funcionar de forma eficaz, ele deveria ser coerente. A vilã, de tão humanizada – como já comentei anteriormente – acaba se tornando uma anti-heroína e, para que esse efeito seja alcançado, o filme acaba banalizando algo que para tantos é realmente normal: viver para trabalhar, viver com o único intuito de manter o sistema. Que problema, porém, há nisso, não é mesmo? O trabalho dignifica o homem...

Um questionamento, porém, é bastante verdadeiro: no momento em que Andrea começa a vender a alma para o diabo, defende a chefe durante um diálogo com o seu futuro amante ao comentar que, se Miranda fosse um homem, todos admirariam o seu trabalho. O pior é que é verdade! Mas isso não isenta a personagem de Streep de sua falta de moral, muito pelo contrário, somente mostra o quanto determinados valores não importam nesse nosso mundinho etnocêntrico ocidental. A humanização de Miranda, particularmente, incomodou-me, porque em vez de transformá-la numa personagem complexa, serviu apenas para demonstrar o quanto a visão das pessoas no geral sobre o trabalho é a mesma de Miranda. Na realidade, a grande maioria não apenas se identifica com ela, também a admira e a inveja...

Lembrei-me, ao assistir a essa comédia de Frankel, de um drama chamado O preço da ambição ("Swimming with sharks", George Huang, 1994), já que os dois filmes trabalham com o mesmo tema. No último, o protagonista é um profissional recém-formado em cinema que deseja conseguir uma grande oportunidade de emprego e, em nome disso, se sujeita a ser assistente de uma grande “celebridade”: um famosíssimo produtor hollywoodiano que humilha a todos por considerar-se superior. Semelhantes, não? No caso deste último filme, porém, Kevin Spacey interpreta brilhantemente o produtor que, ao contrário de Miranda, consegue se tornar uma personagem complexa no desenvolver da trama. Parece-me o mesmo tema, no entanto, aqui é tratado de maneira séria (não porque é um drama em vez de comédia, e sim por ser bem feito) e respeitável.

É... Chego à conclusão de que O Diabo Veste Prada é um bom entretenimento para aqueles que se deixam seduzir pelo mundo da moda e das aparências, com direito até (que beleza!!!) a um happy end daqueles e, por mais incrível que possa parecer, um final moralizante.

sexta-feira, outubro 20, 2006

O Intelectual e o Culto

"O Garoto" de Charles Chaplin
Continuando com o texto de Jorge Coli:

Há uma outra possível separação. Ela ocorre não entre o erudito e o homem culto, mas entre o homem culto e o intelectual. É bem possível que o traço diferenciador mais forte seja, de um lado, o prazer, de outro, o dever.

O homem da cultura é um hedonista. Ele, primeiro, aprendeu a saborear, a degustar numa espessura concreta, aquilo que cada obra, com a intensidade que pode, lhe oferece. Seus critérios, por isso mesmo, são mais intuitivos que objetivos, e suas categorias têm fronteiras permeáveis.

O intelectual instaura processos de compreensão, desenvolve raciocínios, necessita menos sentir que articular e explicitar. Sua embriaguez chega ao apogeu quando vence as etapas de uma argumentação e constrói um arcabouço de relações nítidas.

No primeiro caso, há algo de empírico e de sensual; no segundo, muito de abstrato e de rarefeito. As meias de Hitler, para um, têm concretude, textura, cor. Elas completam uma cena dramática. O outro pode tomá-las como exemplo, ao construir uma análise socioeconômica sobre a moda masculina na Alemanha daqueles tempos.

Sem dúvida nenhuma, eu me assumo muito mais como “culto” do que como “intelectual”, quando me relaciono com as artes e com os bens culturais (especialmente o cinema). O prazer ou a dor da experiência de vida proporcionada por um filme é algo incomparável e dificilmente discutível; um filme vivido – como qualquer outra coisa vivida – torna-se vigorosamente arredio quando se tenta processá-lo racionalmente, explicá-lo em termos lingüísticos buscando um entendimento lógico.

É por isso que eu tenho severas críticas à semiologia (ou semiótica) fílmica, ideologia teórica e método de análise muito em voga no meio acadêmico há pelo menos trinta anos. Reconheço a contribuição única dessa ciência, mas dói-me no coração ler uma análise semiótica de Intolerância (obra prima de D. W. Griffith), no importante livro A Estética do Filme, organizado por Jacques Aumont. Será que a Arte é tão reduzível assim à Ciência? É natural que muito do poder de um filme pode ser explicado “cientificamente”, mas radicalizar, exagerar e generalizar esse pensamento destrói qualquer coisa de mágica e humana que pode haver na obra artística, que acaba por virar uma máquina, cujo processo de funcionamento é destrinchado pelos semióticos.

Podem me achar ingênuo, mas acredito que a Arte transcende essas coisas todas. Não que ela não possa ser uma máquina, mas a verdade é que há sempre um fantasma na máquina. A expressão deus ex machina é necessária e pertinente para compreendermos aquilo que na arte escapa às garras da semiologia e de outras análises formalistas e racionais.

Nenhum “caça-fantasma” pode aprisionar, esconder ou destruir a magia do cinema como arte.

É por isso que, em teoria e análise cinematográfica, prefiro muito mais a fenomenologia de André Bazin e outros. Melhor ainda, fico com Jean Mitry, que une sabiamente o pensamento fenomenológico ao semiótico-estruturalista – destacando suas contribuições específicas e podando os exageros presentes em ambos.

Para encerrarmos com Jorge Coli:

O híbrido culto-intelectual, se existe, é raríssimo. Há casos em que o homem culto quer se tornar intelectual: os resultados nem sempre são convincentes. O intelectual, por sua vez, é mais seguro em seu modo de ser; para ele a cultura é apenas um meio, não um universo, que não lhe passa pela cabeça habitar, porque ele não saberia como. Seu conhecimento é cerebral (grifo meu): quantas teses universitárias sobre objetos da cultura, mesmo inteligentes, iluminadoras, se completam sem a experiência pessoal da cultura.

São estudos que mergulham num tema, ignorando o que está à volta dele ou explorando os outros setores de maneira “instrumental”, para algum infeliz capítulo introdutório de “contextualização”, como se diz.

A cultura é uma prática, no sentido de um hábito, de um costume, de uma freqüentação; o trabalho intelectual é um exercício. Há um clima bem aventurado de divãs e almofadas no Oriente, num caso; há o rigor exato do trapézio, no outro. Um pressupõe o ócio; o outro pressupõe o trabalho.

Assumo-me, já que é assim, como um vagabundo, no que se refere ao contato com as artes (incluindo de maneira especial, nem preciso dizer, o cinema). Jorge Coli destaca, nesses três últimos parágrafos, a cultura como experiência de vida, necessária e enriquecedora. Por isso sou fenomenológico de carteirinha.

O trabalho intelectual, abstrato, científico e racional também exerce sua sedução em mim. É preciso, no fundo e a bem da verdade, não esquecermos o valor e a contribuição particulares do “intelectual”. Mas, quando este exagera, sai de baixo... Essa é a chatice do meio acadêmico, infestado dessa atmosfera intelectualóide. Por mais que o lado científico também me agrade, tenho a certeza de que seria terrível se eu começasse a trabalhar com cinema (como professor, pesquisador ou crítico), apesar da minha vontade. Chegaria um ponto em que eu ficaria extremamente “empapuçado” de qualquer coisa que estivesse ainda que indiretamente relacionada ao cinema. Talvez algumas férias resolvessem, talvez não. Talvez o encanto se perderia para sempre, assim como o poder da ingenuidade inicial.

É por isso que a criança é a criatura mais sábia e artística, uma vez que ela vê todas as coisas com o frescor da primeira vez, e tem uma disposição invejável para vivenciá-las e compreendê-las, em sua infinita curiosidade.

quinta-feira, outubro 19, 2006

O Erudito e o Culto

Another Brick in the Wall
Reproduzo o texto da coluna “Ponto de Fuga” – de Jorge Coli – publicado domingo passado na Folha de S. Paulo, que me levou a algumas reflexões.

De que cor eram as meias de Hitler?

Umberto Eco fala sobre diferenças entre cultura e erudição numa entrevista recente à revista francesa “Le Nouvel Observateur”. Diz assim: “Erudição não é cultura, mas uma sua forma particular e secundária. Cultura não é saber a data de nascimento de Francisco 1º. Ser culto significa antes de tudo saber que ele foi um rei da França no Renascimento e qual era o papel da França no contexto europeu da época. Quanto à sua data de nascimento, a cultura permite encontrar essa informação, se temos necessidade dela”.

Ainda: “Borges nos contou, em “Ficções”, a história de ‘Funes, el Memorioso’, esse homem que se lembrava de tudo, de cada folha que ele vira sobre cada árvore, de cada palavra que ele ouvira ao longo de sua vida e que, por causa de sua memória total, era um perfeito idiota. A cultura é igualmente um processo de conservação e de filtragem, pelos quais nós sabemos quem era Hitler, mas não qual era a cor de suas meias no dia em que ele se suicidou em seu bunker”.

Memória e filtragem, dois instrumentos essenciais nessa distinção. A memória é instrumento da cultura e o objetivo da erudição; o filtro é uma rede de relações que pesca aquilo de que precisa. A oposição entre cultura e erudição é clássica.

Insisto no aspecto da filtragem. É lamentável ver, por exemplo, o quanto a educação escolar (ainda) está muito mais apegada à “erudição” do que à “cultura”. A maioria de nós fomos traumatizados pela “decoreba” de conteúdos absolutamente inúteis. Obriga-se o aluno a conhecer muita coisa, mas ninguém o faz desenvolver o senso crítico, o raciocínio livre que nos leva a realmente saber as coisas. Em um curso universitário, ou qualquer outro de caráter profissionalizante, é lógico que se busque a erudição (sem deixar de lado, evidentemente, o senso crítico), pois o especialista deve ter um conhecimento específico, detalhado e profundo do seu objeto de trabalho. Mas levar essa mentalidade para o ensino básico é condená-lo ao fracasso. Essa situação é ainda mais triste no campo do ensino das artes e da literatura. Em muitas escolas, o aluno decora nomes de escritores e de suas obras, datas de início e de término de movimentos literários, mas fica sem fazer a menor idéia do que seja a arte da Literatura, de fato. Conseqüentemente, esse aluno acaba desenvolvendo aversão à disciplina. Triste.

O sistema de vestibular também está muito ligado a essa situação, embora mudanças já venham tomando espaço (lentamente). A oposição clássica entre cultura e erudição é trabalhada por Kant quando ele estabelece as diferenças entre “apreender” e “compreender” (na Crítica da Faculdade de Juízo): apreender é a tarefa do erudito, enquanto compreender é o objetivo e preocupação do culto. A compreensão é um trabalho mais profundo e complexo: é o verdadeiro entendimento, pois pressupõe um raciocínio analítico, analógico e crítico. Não se trata apenas do “input” de dados (o que se aproximaria da apreensão). Um computador, atualmente, jamais poderia compreender a filosofia de Kant, por exemplo. Mas poderia apreendê-la facilmente. É possível condicionar um cão ou um aluno do ensino médio a aprender a filosofia de Kant, mas será que eles realmente a saberiam, desse modo? Montagne, no ensaio Sobre a educação das crianças, também defende o verdadeiro e produtivo aprendizado (próximo da “compreensão” de Kant e da “cultura” de Eco), em detrimento de um aprendizado estéril (ligado à “apreensão” e à “erudição”).

Mas enfim, alguém já pode estar se perguntando: o que tudo isso tem a ver com cinema? – já que este é um blog sobre cinema. A relação é simples, talvez evidente. Há pessoas que buscam nos filmes mais erudição do que cultura. Por que motivo? Talvez a velha vaidade. Excluo os profissionais (é claro), visto que o seu caso, como já disse, é compreensível. Mas quando um cinéfilo recita muita coisa de cor e salteado a respeito de filmes e cineastas, eu fico na dúvida se tamanha erudição se faz acompanhar por uma cultura adequada ou não. Será que o cara entende mesmo (e aprecia) todos esses filmes, idéias e pessoas de que fala, ou esse discurso todo é apenas uma questão de soberba e vaidade? Ambos os casos acontecem e variam de pessoa para pessoa. Cultura e erudição dificilmente têm o mesmo peso na balança do indivíduo, mas também esse peso não é absolutamente desigual todas as vezes. Enfim, acredito que isso aconteça com todas as artes, pelo menos na literatura eu sei que também é assim.

Poderíamos acrescentar aos textos de Jorge Coli e de Umberto Eco que a erudição muitas vezes está ligada a imperativos de moda e padrões socialmente aceitos e sobrevalorizados (o que se relaciona à questão supra citada da vaidade). Por exemplo: um cinéfilo pode ser “erudito” no cinema de Jean-Luc Godard e Ingmar Bergman não apenas por “gostar” deles, mas porque são cineastas muito valorizados (às vezes até demais) no meio “cinéfilo”; e esse indivíduo sabe que, se ele quiser ser “cinéfilo de verdade” (ou seja, ser bem considerado como cinéfilo pelos outros cinéfilos), ele tem que conhecer bem e idolatrar Godard, Bergman e outros que compõem o “panteão”. Casos assim podem nos parecer ridículos, absurdos, pueris ou raros, mas são reais.

A questão difícil de responder é: em que medida realmente apreciamos um artista e sua obra por valores intrínsecos e em que medida só damos atenção a eles por estarem na “ordem do dia”? Na longa história da literatura, encontramos escritores que eram considerados gênios imortais em suas épocas, mas que hoje estão quase absolutamente esquecidos. E esquecidos porque a rigorosa peneira do tempo provou que não eram “imortais” de fato. Não resistem ao envelhecimento. Na curta história do cinema, já aparecem alguns filmes que não envelheceram bem. Mas o tempo futuro pode muito bem mostrar que não só filmes, como também cineastas e talvez até movimentos cinematográficos que adoramos não são tão ricos assim. Eventualmente, são bastante pobres.

Acredito que o homem de cultura (em oposição ao erudito), que exerce um pensamento mais livre, abrangente, profundo e crítico, não se deixa deslumbrar pela purpurina nos olhos das modas contemporâneas, ele resiste àquilo que na música rock-pop chama-se “hype”. Quantos cineastas e filmes não são também alvo de “hype”?

Enfim, esse tema rendeu mais do que eu imaginava. Amanhã colocarei o resto do texto de Jorge Coli e refletirei sobre outras coisas, como o papel do profissional dentro da erudição.

quarta-feira, outubro 18, 2006

Sobre Mostra e Mostradores

A mesma praça, o mesmo banco...
De José Simão:

PIPOCA-CABEÇA! Mostra Internacional de Cinema! Maratona de filme-cabeça! E filme-cabeça geralmente é assim: um monte de gente pelada discutindo. E todo ano eu estréio a Mostra com as mesmas definições: Mostra é um filme estranho, falado numa língua esquisita, com uma história desconexa, visto por uma gente escalafobética.

A Mostra é assim: você passa duas horas em pé, esperando o filme começar, e duas horas sentado, esperando o filme terminar. E tudo em língua de país que não tem água potável! Rarará!

E eu adoro a Mostra porque você não encontra ninguém da Blockbuster. Aliás, duas pessoas que você não encontra nunca na Mostra: atendente da Blockbuster e cliente da Blockbuster. E uma amiga minha odeia a Mostra: “Se você me vir entrando na Mostra, pode chamar a polícia que é seqüestro”.

Em tempo: a 30ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (ufa! que nome comprido) estréia nesta sexta-feira, 20 de outubro, e vai até o dia 10 de novembro.

Certamente estarei lá para ver alguns filmes que me chamarem a atenção – isso se a exibição deles bater com os meus horários disponíveis (pois eu também tenho que ganhar o meu pão). O que eu não entendo são aquelas pessoas que procuram ver TODOS os filmes da Mostra (que são mais de 300), ou quase todos, ou uma quantidade muito grande que seja. Todos os anos circulam histórias de pessoas que fazem isso, eu mesmo conheço gente que vê cinco ou seis filmes por dia, nos finais de semana pelo menos.

Isso com certeza não funcionaria para mim. Não tenho a capacidade de assimilar e processar tantas obras cinematográficas em tão pouco tempo. E, sinceramente, acho que pouquíssimas pessoas têm – se é que isso é possível, afinal. Acredito no poeta José Paulo Paes, quem disse uma vez que a poesia é como uma “droga”: se você ingeri-la em quantidade pequena e controlada, ela lhe fará um grande bem; porém, se você exagerar a dose, ela se torna um veneno. Acho que essa analogia se aplica a todas as formas de arte e de entretenimento, sem deixar de lado o cinema.

Cada obra artística, especialmente as mais valiosas, requer um tempo e uma disposição de trabalho mental para ser apreciada adequadamente. Esse tempo, logicamente, extrapola aquele que levamos para ter o primeiro contato com ela (que é o tempo que nos toma ao ver um filme ou ler um livro). É o tempo da “pós-apreciação”, onde você vai “mastigar” e “digerir” aquela obra em seu íntimo, processá-la lentamente, talvez até sonhar com ela (uma amiga minha chegou a ter um pesadelo com o filme “A Cidade dos Sonhos”, na noite logo após assisti-lo pela primeira vez). Se a arte é um alimento para a alma, devemos logicamente conceder o tempo e o repouso necessário para digeri-lo; caso contrário, a indigestão será inevitável e aterradora.

Desse modo, acredito que, ao se assistir cinco ou seis filmes em um só dia, não se faz bem algum a si próprio nem à arte do cinema. Talvez se faça até um mal. Mas a raiz do problema está na “sociedade da informação” em que vivemos: uma quantidade impressionante de conhecimento se nos apresenta (de maneira às vezes impositiva: “decifra-me ou devoro-te”) numa velocidade muito veloz, e nós não temos tempo de assimilar adequadamente; tudo fica muito superficial e efêmero: “vi vários filmes na Mostra, mas, após algum tempo, já não me lembro exatamente de nenhum deles”. É a informação em detrimento da formação. Tem-se muito conhecimento e pouca sabedoria. Enfim, dá pra ir longe nesse assunto.

Para mim, seria preferível ter uma erudição bastante limitada – porém, sabendo bem e a fundo aquilo que eu conheço – do que ser um “homem-enciclopédia” que não vai além do “verbete”. Mas a escolha nem sempre se faz assim tão radical. Em certa medida, dá para unir a quantidade grande da informação à qualidade alta da apreensão dessa mesma informação. Devemos apenas saber que medida é essa, conhecendo os limites e evitando exageros – o que talvez já seja muito difícil, mas, enfim, deixa pra lá...

sexta-feira, outubro 06, 2006

Absolutamente Certo

Reproduzo aqui um trabalho que escrevi há três anos atrás para uma matéria que fiz (“História do Audiovisual II”) na ECA-USP. O tema escolhido foi o filme Absolutamente Certo (1957), estréia na direção de Anselmo Duarte, cuja obra mais famosa e importante é O Pagador de Promessas (1962).

As relações entre cinema e TV dão muito assunto para discussão. É comum dizer que a televisão no Brasil, a partir dos anos 50, arrancou à sétima arte uma parte considerável do seu público. Apesar disso (ou por isso mesmo) o diálogo entre os dois meios é intenso: em alguns lugares, formaram-se parcerias produtivas que fazem bastante sucesso; na estética, a linguagem da TV assimilou a do cinema e, posteriormente, o foi o cinema que assumiu o estilo televisivo. Mas e quanto às relações temáticas? Não conheço, no cinema brasileiro, uma fita que trate do universo da televisão, do modo como faz Anselmo Duarte em Absolutamente Certo.

Nesse filme de estréia (1957), o diretor se faz pioneiro em mostrar o que é a TV, invenção maravilhosa que acabara de surgir, e qual o seu impacto na sociedade, numa chave de crônica humorística. Tudo bem colocado, pesa um elogio ao novo meio audiovisual, mas sem deixar de lado aspectos negativos, tratados com o humanismo característico de O Pagador de Promessas.

A TV está no filme, e o filme está na TV: Absolutamente Certo abre e fecha com as luzes de um estúdio de televisão, manipuladas pelos técnicos. Mas a identificação entre o filme e a atração televisiva não pára por aí. Em seguida, vemos uma câmera de TV se aproximar até quase tocar na do próprio filme, enquanto aparecem na tela os créditos. Coloquemo-nos numa posição imaginária onde possamos ver as duas câmeras, uma diante da outra, perscrutando-se mutuamente, como duas espécies de animais que desconhecem uma à outra mas que se sentem familiares; perceberemos o impacto significativo dessa imagem e do filme que ela anuncia.

Em vários momentos, podemos ver como era a TV brasileira nos anos 50. A começar pelos “quiz show”, do tipo do programa justamente intitulado “Absolutamente Certo”, que premia o chamado “conhecimento inútil” e fazem muito sucesso até hoje – veja-se, por exemplo, o Show do Milhão. O filme também mostra de importante:
1. O dilema (bastante atual) dos programadores de TV entre o “apelativo” – que aumenta a audiência e agrada aos anunciantes e patrocinadores (dos quais a emissora depende) – e a preocupação por uma cultura e educação mais elevadas. Esse tema aparece na cena (apesar de curta) em que se discute a importância e o interesse de se levar ao ar um homem que tem toda a lista telefônica decorada na cabeça;
2. A vaidade das primeiras estrelas dos programas, o nascimento do “star system” da TV nacional, na cena da cantora que dá “chiliques” por causa de seu vestido excessivamente apertado. O personagem simples (Zé do Lino) interpretado pelo próprio Anselmo Duarte considera louca essa mulher.
3. As imensas e pesadas câmeras de TV, que não tinham “zoom”, e precisavam se deslocar no espaço para fazer tomadas mais aproximadas; o aparelho receptor nos domicílios familiares, que custava a ter uma imagem de qualidade satisfatória na recepção, merecendo por isso a reclamação da personagem engraçada de Dercy Gonçalves.

Quanto às relações entre TV e sociedade, tem-se representado no filme o fenômeno dos “televizinhos”, assim como a dificuldade de se comprar um aparelho – na cena em que o marido da personagem de Dercy se refere à compra em prestações do televisor (na época, havia uma política de crédito ao consumidor na compra de aparelhos de televisão, tudo para estimular a expansão da TV no Brasil). Um momento significativo é quando a esposa do italiano Rinaldi vê, no programa “Absolutamente Certo”, Zé do Lino recitar de cor o endereço e o número do telefone de seu marido. Quando ela comunica ao último esse fato, a reação assustada do pobre homem, que até então apenas lia o seu jornal, é bem engraçada para nós; mas coloquemo-nos no lugar daquele homem, naquela época, aos se achar “descoberto” pela TV em sua própria casa. Rinaldi, ao telefone com o apresentador do programa (ao vivo, pois ainda não existia VT) para corrigir o número do seu telefone – indevidamente anotado pela produção –, fala alto e gesticula para o televisor, interagindo com o aparelho como se fosse ele o seu interlocutor.

Contudo, o melhor deste filme está no protagonista Zé do Lino (Anselmo Duarte). Já é absurdo o fato de ele decorar a lista telefônica mas não possuir um aparelho de telefone. Interrogado com surpresa pela secretária da emissora de TV (onde ele participará do programa de perguntas e respostas “Absolutamente Certo”), ele responde com aquela calma...: “Arrumar lista é fácil, mas telefone nesta terra...” É a visão social de Anselmo Duarte (tanto do personagem vivido por ele quanto dele como cineasta).

Zé do Lino é o homem simples, comum, repentinamente jogado no distante mundo do “showbusiness”: a timidez e o embaraço dele são características. Porém, mesmo imerso no universo da vaidade e manipulado pelos “maus” (os apostadores do programa), ele se mantém file aos bons e tradicionais valores, recusa propostas indecentes, não se acostuma com riqueza e fama, é espiritualista – veja-se a opinião que tem sobre a beleza interior da namorada – e ainda por cima sofre com a intolerância dos sogros. Enfim, ele é o autêntico “bom rapaz” da canção de Wanderley Cardoso, à maneira antiga.

A apresentação dele, no começo do filme, é bem significativa, tal como a dos grandes personagens narrativos: enquanto a família toda se espreme ao redor do televisor, com a atenção inabalavelmente fixa, a câmera abre caminho por entre eles e vai descobrir Zé do Lino e sua namorada lá no fundo da sala, num abraço apaixonado e completamente alheios a tudo o que se passa ao redor. Ou seja, Zé do Lino é o homem simples e sábio que não se deixa dominar pelo “canto de sereia” da TV, novidade na vida daquelas pessoas. No entanto, esse momento também vai ser maculado pela TV-destruidora-das-relações-familiares, quando – na mesma cena – a família interrompe o namoro dos dois para sugerir a Zé que use a sua inteligência para enriquecer no programa “Absolutamente Certo”.

O lado “bom rapaz” de Anselmo Duarte (desta vez como diretor) fica evidente na ligação entre as cenas da festinha “rock and roll” (novidade “subversiva” da época) dos bandidos e o “jura” (famosa canção popular brasileira antiga) cantado por Dercy Gonçalves na festa em casa da namorada de Zé. É definitivamente um filme familiar. A família inteira é levada para a frente das câmeras de TV, na sarabanda do final, e a frase de Dercy para a câmera (de TV, que neste momento se mistura à do próprio filme) ressalta a defesa da família que Anselmo propõe.

A crítica social humanista de Anselmo Duarte adquire beleza estética fenomenal na cena em que um cantor negro interpreta o número “Onde estou?”, promovido pela emissora durante um jantar, com direito a todo um cenário teatral. “Onde estou?” é o que parece perguntar a si mesmo Zé do Lino no mundo louco da TV, já que, por natureza, ele não pertence àquele meio (ele declara ao apresentador que só participa do programa para ajudar a família); “Onde estou?” é o que parece perguntar o negro que até hoje luta para conquistar um lugar digno no Audiovisual – vale lembrar que o cenário onde aquele artista negro canta, durante o jantar de gala, é decorado com elementos da natureza selvagem. Após um movimento para trás, a câmera revela que a “selva” onde o cantor negro se apresenta está instalada num salão de jantar luxuoso; eis o espetáculo nacional. São essas antíteses que revelam as contradições sociais brasileiras, a “inclusão excludente”, as desigualdades e os preconceitos.

Absolutamente Certo é um grande filme de entretenimento com interessantes e importantes coisas “a mais”.

Absolutamente Certo (1957)
Gênero: Comédia
Duração: 95 min
Origem: Brasil
Estúdio: Cinedistri
Direção: Anselmo Duarte
Produção: Oswaldo Massaini
Elenco:
Anselmo Duarte (Zé do Lino), Dercy Gonçalves (Bela), Odete Lara (Odete), Aurélio Teixeira (Raul), Maria Dilnah (Gina), Murilo Amorim Correia (Guilherme), Suzy Arruda (Mulher do Luciano), Jaime Barcellos (Capanga)

quarta-feira, outubro 04, 2006

Guimarães Rosa e Cinema

Bruna Lombardi como "Diadorim", na minissérie televisiva Grande Sertão: Veredas (1985).
Adaptar para o cinema a obra literária de João Guimarães Rosa é uma das coisas mais difíceis que existem. Não apenas por causa de toda a inventividade lingüística do grande escritor mineiro, intraduzível para a linguagem audiovisual, mas, principalmente, por causa da alta temática mítica, mística e filosófica do autor de Sagarana.

O sertão de Rosa não é apenas aquele que todos conhecemos, dissecado geográfica e sociologicamente por Euclides da Cunha (Os Sertões) e Graciliano Ramos (Vidas Secas). Guimarães Rosa trata muito bem do “particular” do sertão: a paisagem, os tipos, as relações políticas, a vida e a cultura específicas do sertanejo – a obra de Rosa tem esse grande valor, essa contribuição para o registro e o estudo da brasilidade do sertão; contudo, o escritor vai muito além de tais questões “específicas”: em João Guimarães Rosa, o sertão também é palco de tragédias shakespearianas, de uma profunda reflexão filosófica e até mesmo mística sobre o homem e suas grandes questões – a “morte”, o “destino”, o “as contradições do amor”, o “diabo”, o “livre-arbítrio”, a “amizade”, a “paz” e a “guerra”, a “loucura”, a “iluminação interior”, a “memória”, a “busca” pela “verdade divina”, e muitos outros pontos que fazem a literatura roseana transcender para o “universal”. O próprio escritor confessa que tinha o objetivo de criar histórias que fossem “eternas”, que pudessem ser lidas no futuro distante sem perder o interesse geral.

As narrativas de Rosa tratam de todos esses grandes temas abstratos fazendo-os encarnarem em personagens e situações dotados de forte caráter mítico (o mito é a representação concreta de valores abstratos). Assim, a sua literatura não é apenas um documento sócio-histórico, ela é um “cosmo de mitos” (na acepção do crítico e historiador literário Alfredo Bosi). Suas histórias são estruturadas como fábulas e parábolas que sempre trazem alguma profunda mensagem de ordem filosófica.

Essa dimensão, que poderíamos chamar – a grosso modo – de “idealista”, é, obviamente, pouquíssimo estudada e valorizada no meio acadêmico, naturalmente preso ao “espírito” científico-intelectual de nossa época: essencialmente materialista. As inteligências desiludidas da modernidade e da pós-modernidade acham no mínimo “ingênua” a mera idéia de transcendência.

Os filmes que já se fizeram (pelo menos, os que eu conheço) sobre os livros de Guimarães Rosa também deixam-se contaminar por essa visão. A Terceira Margem do Rio (1994) – adaptação de alguns contos de Primeiras Estórias, do grande Nelson Pereira dos Santos, faz o ridículo desserviço de dar ares pitorescos ao conto A Menina de Lá, originalmente de uma profunda e comovente seriedade místico-filosófica. O diretor de Rio 40 Graus e Vidas Secas pode ser muito bom no estudo do “particular” que explicamos anteriormente; mas revelou tato e sensibilidade zero para representar o conteúdo “universal” de Rosa.

Ainda não tive, infelizmente, a oportunidade de ver A Hora e Vez de Augusto Matraga (1965), de Roberto Santos, baseado no famoso conto homônimo, presente em Sagarana. Mantenho a esperança de que ele “entenda” melhor a obra original. Também não pude assistir a Outras Estórias (1999), de Pedro Bial – sim, ele mesmo, do “Fantástico” e do “Big Brother” –, outra fita inspirada por contos de Primeiras Estórias; coloco aqui também a mesma esperança.

Sagarana: O Duelo (1973), de Paulo Thiago, não é um filme ruim como o de Nelson Pereira dos Santos. A partir do conto de mesmo nome, o diretor não alça vôo tão alto como o de Guimarães Rosa, mas representa de maneira séria e respeitosa o drama dos personagens e a tragédia dos acontecimentos; o filme é veste-se de um tom poético que não faz feio perto do original.
(continua no post abaixo)

continuação de Guimarães Rosa e Cinema

(continuação do post acima)

Agora, o caso à parte é O Grande Sertão (1965), dirigido pelos gêmeos Geraldo e Renato Santos Pereira – o primeiro dirigiu, recentemente, Aleijadinho, Paixão e Glória (2003), escrito pelo segundo. O filme veio vinte anos antes da famosa minissérie da TV Globo, Grande Sertão: Veredas (que não vi). Ambos tentam traduzir e adaptar o volumoso romance de Rosa, um dos maiores de nossa literatura, e de qualidade internacional. Grande Sertão: Veredas é a narrativa mais ambiciosa de Guimarães Rosa, no aspecto formal (a experimentação e as misturas lingüísticas do escritor estão todas lá, nas cerca de 600 páginas em um único bloco, sem a divisão de capítulos) e no de conteúdo: as reflexões filosóficas generalizantes são representadas em uma história grandiosa, ao mesmo tempo fortemente lírica (as memórias do ex-jagunço Riobaldo), épica (as guerras dos grupos de Jagunços no sertão mineiro) e dramática (a peculiar relação entre Riobaldo e o seu companheiro Diadorim). É uma novela de cavalaria sertaneja.

Assim, foi com grande entusiasmo que peguei para ver esse filme. Mas que desastre! Talvez eu nem devesse falar dele; bastaria representar o diálogo de uma tirinha da série Níquel Náusea, de Fernando Gonsales (se eu tivesse um scaner, colocaria a tira inteira):

“O famoso rato azul está lendo um livro de histórias para os seus filhotes. Ele diz:
- Essa de chapéu vermelho é entregadora de pizza! Ela perguntou pro lobo o endereço da velha. Êpa! A velha se transformou num lobo!
Um dos seus filhotes diz para outro:
- Pra mim, ele não sabe ler!”

Esse trecho nos ajuda a entender de uma maneira toda especial o filme Grande Sertão e a sua relação com a obra original de João Guimarães Rosa. Não me lembro de ter visto uma adaptação literária pior. Um dos objetivos deste post é documentar algo sobre esse filme na Internet, pois é bem pouco o que eu encontrei sobre ele na rede. Em princípio, eu achava que a escassez de informações devia-se ao velho problema de divulgação e distribuição de filmes nacionais, principalmente dos mais antigos; acreditava eu que era um filme “cult” que precisava ser redescoberto. Agora, penso eu que não se fala muito sobre ele simplesmente porque é muito ruim, não deve ter despertado atenção nem sobrevivido à peneira da história.

O começo é até bom, com os jagunços saindo do meio da névoa – como anjos do apocalipse, numa cena de aura mítica e mística bem de acordo com a literatura de Rosa. Essa cena precede a da abertura de Táxi Driver (1976), de Martin Scorsese, com o táxi também saindo do meio da névoa escura, como um anjo (ou demônio) vingador. A apresentação dos personagens, os diálogos na linguagem sertaneja, as cenas paisagísticas do sertão mineiro com a voz em “off” de Riobaldo interpretando o belíssimo texto original de Guimarães Rosa, tudo isso é muito bonito e bom como cinema. Mas...

Quando, antes da metade do filme, descobrimos (assim como Riobaldo) o segredo sagrado de Diadorim, todo meu encantamento caiu por terra, foi substituído por uma raiva que é difícil eu sentir em relação a um filme. Falo de maneira tão contundente, pois considero essa película um gritante desrespeito artístico para com a narrativa original de João Guimarães Rosa. Toda a estrutura narrativa do longo romance é construída em torno do segredo de Diadorim, das dúvidas e medos de Riobaldo em relação ao seu sentimento pelo amigo e à ambigüidade sutil da relação entre os dois. Pois o filme dos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira, que já é muito curto (92 minutos), destrói tudo isso antes da metade de sua duração. A partir daí, essa “obra-prima” cinematográfica transforma o relacionamento Riobaldo-Diadorim num dramalhão folhetinesco inacreditável. Eu fiquei estupefato. O roteirista é Roberto Farias, que dirigira pouco antes o magnífico Assalto ao Trem Pagador (1962)...

Não vou dizer como termina o livro, pois isso seria um “spoiler” grande demais (apesar de já ser um fato folclórico no meio literário). Digo apenas que a narrativa do romance só veio a existir como processamento que Riobaldo faz de suas memórias e sentimentos com relação a fatos passados que ele não pôde controlar – pois não sabia do que se tratava – e, assim que soube, tarde demais, não pôde fazer nada para mudar. O filme, ao jogar tudo isso no lixo, acaba criando petulantemente uma outra história, com outros personagens. Não se deixe enganar por essa “adaptação”. A quem quiser fazer-se a si mesmo um grande bem, leia o romance Grande Sertão: Veredas, deixe-se conduzir por sua maravilhosa narrativa e surpreenda-se no final.

Obras de João Guimarães Rosa adaptadas para o Cinema e TV:

“O Grande Sertão”: 1965, dirigido por Geraldo e Renato Santos Pereira. Baseado em Grande Sertão: Veredas, romance originalmente publicado em 1956. Existe em DVD.

“A Hora e Vez de Augusto Matraga”: 1965, dirigido por Roberto Santos. Baseado no conto homônimo, do livro Sagarana, originalmente publicado em 1946. Não existe em DVD.

“Sagarana: O Duelo”: 1973, dirigido por Paulo Thiago. Baseado majoritariamente no conto O Duelo, do livro Sagarana, originalmente publicado em 1946. Existe em DVD.

“Grande Sertão: Veredas”: 1985, dirigido por Walter Avancini. Minissérie originalmente exibida na Rede Globo de televisão, baseada no romance homônimo originalmente publicado em 1956. Não existe em DVD.

“A Terceira Margem do Rio”: 1994, dirigido por Nelson Pereira dos Santos. Baseado em cinco contos do livro Primeiras Estórias, originalmente publicado em 1962: o que dá título ao filme, A Menina de Lá, Os Irmãos Dagobé, Seqüência e Fatalidade. Não existe em DVD.

“Outras Estórias”: 1999, dirigido por Pedro Bial. Baseado em alguns contos do livro Primeiras Estórias, publicado originalmente em 1962, dentre os quais: Famigerado, Nada e a nossa condição, e Substância. Não existe em DVD.

terça-feira, outubro 03, 2006

As Torres Gêmeas

É muito fácil falar mal do novo filme de Oliver Stone. Tão fácil que se corre o sério risco de cair nos mesmos e velhos lugares-comuns. Podemos dizer – e de fato se diz muitas dessas coisas – que o diretor absteve-se da dimensão política dos trágicos acontecimentos de 11 de setembro de 2001, ou que seu novo filme é mais um subproduto do reacionarismo da era Bush pós 11 de setembro, ou ainda que ele é muito (no termo magnificamente cunhado pelo poeta José Paulo Paes) “patriotário”.

No entanto, ao fazer afirmações nessa linha, deve-se ter muito claro o seguinte discernimento: que medida desse raciocínio nasce de uma visão aberta do filme em questão e que medida dele pode ser atribuída às nossas ideologias ou mesmo nossos preconceitos. Sim, porque uma coisa seja dita: temos preconceitos bem fortes, às vezes somos tão intolerantes quanto aqueles nos quais gostamos de apontar tais defeitos. Quando digo “nós”, refiro-me aos (alguns) brasileiros, ou, em uma acepção mais pertinente, aos não-norte-americanos. Reconheçamos a nossa fascinação mórbida pelo atentado ao World Trade Center e reconheçamos, principalmente, a alegria que alguns de nós sentimos (eu, particularmente, vi essa reação em algumas pessoas), expressa em sentenças do tipo: “Bem feito! Agora esses americanos estão pagando!”; “Quem semeia tempestade colhe furacão!”; etc. Essa alegria, na maior parte das vezes, é contida; mas já vi manifestações fervorosas. Certa foto do rosto de Osama Bin Laden já quase um ícone, tanto quanto a famosa imagem facial de Che Guevara.

Tamanho anti-americanismo – assim como qualquer outro “anti” carregado de uma dose mínima de intolerância e preconceito – deve ser deixado de lado quando virmos (se virmos) As Torres Gêmeas (“World Trade Center”, EUA, 2006). Muitas coisas do que se diz a respeito desse filme só revelam o velho problema de se acompanhar uma produção cultural com o olhar turvo sob a grossa camada de ideologias, certas disposições emocionais, preconceitos e expectativas que ostentamos pesada e soberbamente como óculos cerebrais que mais nos deixam míopes do que melhoram nossa visão. Ao contrário disso, deve-se ter a visão natural e limpa para reconhecer o que uma obra cultural se propõe a nos oferecer e se ela logra tal intento, de fato.

Por um lado, são naturais e pertinentes as críticas que se fazem da mais recente produção de Oliver Stone, baseadas em nossas expectativas: é estranho que o realizador de Platoon (1986), Nascido em 4 de Julho (1989), JFK (1991) e Assassinos por Natureza (1994), notabilizado por uma análise social polemizante e combativa, apresente este filme inspirado pelo 11/09, um acontecimento de forte conteúdo histórico, polêmico e – o que é mais interessante, recentíssimo, com uma visão apolítica dos fatos. Não há muita coerência com o resto de sua obra. Mas, a não ser por esse ponto, o filme não merecerá ser tão detratado. E, além disso, certas críticas que se fazem são incompreensíveis ; eu não sei que filme a pessoa assistiu, mas não foi, certamente, As Torres Gêmeas.

Enfim, chega de procurar neste filme o que ele não tem; que tal, para variar, observar o que ele é, intrinsecamente? As Torres Gêmeas é um filme de terror. Sim, na medida em que o terror é um sentimento / sensação despertado e conduzido por elementos e situações ambientais que cutucam e ferem o mais fundo de nosso íntimo – Oliver Stone estreou como diretor de longas no gênero dos sustos e do horror, com Seizure (1974) e o interessantíssimo A Mão (1978). O início do filme é como o de muitas obras de terror: os personagens são apresentados em diversas cenas de sua vida cotidiana e, na medida em que é rotineira, tranqüila. Mas nós não nos iludimos nem nos deixamos levar, pois já sabemos a reviravolta trágica que está logo por vir e, como se não bastasse, a trilha sonora pontua um tom de melancolia que aumenta a tensão.

Filmes-catástrofe também começam assim, mas a maneira como Oliver Stone filmará a tragédia subseqüente, alternando entre o não-mostrar (apenas sugerir) e o mostrar somente o que se pode ver da perspectiva do indivíduo (o que é bem pouco), arremessa o seu filme a léguas de distância dos de “catástrofe” tradicionais, que, ao mostrar tudo explicitamente, numa perspectiva abrangente e épica, mais faz por massagear a nossa fascinação mórbida e apocalíptica do que fazer-nos sentir e refletir (sobre) a experiência humana dos fatos.

De acordo com isso, podemos afirmar que As Torres Gêmeas é um ótimo filme. A sombra baixa do avião que estava para atingir a torre, vista apenas de relance pelo personagem na rua (ele nem soube o que viu), os sons terríveis do impacto e da destruição subseqüente, a força policial sem quase idéia alguma do que acontecera e ainda estava acontecendo, tudo isso é cinema de grande qualidade, e ajuda o espectador a compartilhar a ansiedade, o medo, a angústia e o terror com os personagens na tela. Stone mantém-se fiel a sua proposta de focalizar a dimensão humana / individual; o filme não mostra quase nada do atentado, concentrando-se nas reações das pessoas à sombra antevista da História. As únicas imagens diretas das duas torres após os impactos são mostradas nos monitores de televisão constantemente ligados nos noticiários que todos assistem. Assim, Oliver Stone faz a sua documentação, sem atiçar o fascínio apocalíptico no espectador – o que poderia acontecer, caso ele mostrasse a destruição das duas torres diretamente (filmadas com a própria câmera da película), seja reconstruindo a cena com efeitos especiais, seja mostrando as próprias imagens do acontecimento real (que, a bem da fascinação mórbida e apocalíptica, dispensam qualquer reconstituição com efeitos visuais).

O terror aumenta quando os dois policiais protagonistas, John McLoughlin (Nicholas Cage) e William Jimeno (Michael Pena), são soterrados pelo edifício desabado. A sensação de claustrofobia é imensa e os sustos provocados pelos outros pequenos desabamentos e explosões enquanto os dois estão ali, enterrados vivos, deixam o espectador quase tão desesperado quanto os dois personagens. Os policiais portuários têm, então, que buscar quaisquer maneiras e razões para sobreviver. Conseguem, a muito custo, apoiados psiquicamente um no outro e em suas famílias. São momentos bem dramáticos. Tirando algumas (poucas) cenas – as quais só aparecerão tardiamente no filme – que mostram uma visão e repercussão mais abrangentes da tragédia, como a reação de George Bush e de algumas pessoas indignadas com os ataques, poderíamos defender a idéia de que o atentado foi só um pretexto para Oliver Stone filmar o drama de dois homens acidentados.

Do lado de fora, algumas cenas dos escombros do World Trade Center, na mistura de concreto e ferros retorcidos ainda de pé no que restou dos edifícios, lembram bastante o famoso quadro “Europe After the Rain”, de Max Ernst, que retrata as ruínas européias da 2ª Guerra Mundial.

É importante que alguém, algum dia, faça uma obra cinematográfica de ficção discutindo a fundo a dimensão política dos atentados de 11 de setembro de 2001, numa chave analítica e crítica, algo para servir de filme definitivo sobre esse grande tema. Se não foi Oliver Stone, contrariando o que poderíamos esperar, haverá de ser alguém – pelo menos, confiamos que seja assim. Apesar disso, As Torres Gêmeas tem o seu valor como drama (que também deve ser mostrado em um filme) de pessoas inocentes, vítimas repentinas de uma ação covarde que só o adjetivo – “terrorista” – já basta para dar idéia de sua natureza e caráter. Será que deixar-nos comover com isso, sentir aquela compaixão e indignação humanas perante o sofrimento, especialmente o provocado por atos de violência, significa que estejamos sendo apolíticos, “patriotas americanizados”, reacionários, alienados, ou qualquer outra coisa de que só um espírito malicioso poderia nos acusar?