Filme exibido na 30ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Existe algo de especial em se ver uma obra clássica do cinema no cinema, principalmente se for uma das obras-primas fundadoras da arte cinematográfica. Na literatura, por comparação, esse algo de especial se perde. Ler Homero é fascinar-se pelo retrato de uma época, situações e personagens que estendem o seu eco até nós, é reconhecer a estética que forjou os padrões para toda a literatura subseqüente. Mas, para ter o poder específico do cinema, nós teríamos que ler a “Ilíada” no original em grego e no mesmo pergaminho em que tal obra primeiro foi talhada; também ajudaria se nos colocássemos debaixo das arcadas do Parthenon ao fazer essa leitura.
Talvez assim passássemos, com a literatura, por uma experiência um tanto quanto equivalente a ver Cabiria na sala escura de um cinema, com o devido acompanhamento da trilha musical ao piano, executada ao vivo.
Cabiria (Itália, 1914) está no vértice de todo cinema grandiloqüente, hoje chamado de “blockbuster”. Tudo, nessa obra do engenheiro italiano Giovanni Pastrone (que adotara na época o pseudônimo de Piero Fosco), é construído hiperbolicamente para transportar os sentidos e as emoções do espectador. Se é possível falar em Cultismo e Rococó barrocos no cinema, temos que citar “Cabiria”. Em mais de um aspecto, os mestres de Hollywood D. W. Griffith e Cecil B. de Mile são devedores de Pastrone e seu épico. Vamos, então, enumerar os marcos que esse filme estabeleceu na história do cinema.
O roteiro é assinado pelo famoso poeta Gabriele D’Annunzio, embora seu autor real tenha sido o próprio Pastrone, sob o pseudônimo de Piero Fosco. Os cenários já não são simples telas pintadas, como nos filmes de Meliès; são construídos em três dimensões e com proporções às vezes gigantescas. Para as filmagens no cenário natural (e gelado) dos Alpes, Pastrone fez uso de centenas de figurantes em cavalaria, incluindo autênticos elefantes. O realismo é bem mantido tanto nas cenas naturais quanto nas de estúdio, que não se contradizem. “Cabiria” foi o primeiro filme a atingir três horas de duração e o primeiro a promover uma ostensiva campanha de marketing. Toda essa estratégia cabiriana em cima do “filme espetáculo” teve como objetivo levar o cinema a alçadas mais elitistas, dissociando-o do espetáculo circense-popular que caracterizou o seu nascimento. “Cabiria” pode ser incluído dentro dos “filmes de arte”, gênero famoso nos primórdios do cinema, que se caracterizou por seus aspectos literários (enredo e diálogos, que eram muitas vezes assinados por escritores famosos) e teatrais (a encenação dos atores, figurino e cenário) e teve como meta tornar o cinema um entretenimento mais culto, sério e elitista.
Não obstante, o filme de Pastrone também se destaca como pioneiro na construção da “linguagem (especificamente) cinematográfica”. A complexidade da narração e da decupagem, a maneira como o filme conduz o espectador com muita liberdade e catarse são influências evidentes para Griffith. Em alguns momentos de “Cabiria”, a câmera move-se paralelamente ao cenário, ou aproximando-se e afastando-se dos personagens, destacando sua ligação com o ambiente e conferindo relevo à cena. Esse processo foi realizado pelo cinegrafista espanhol Segundo Chomon, que montou a câmera num carro, chamando-o de “carrello”. Assim, podemos conceder a “Cabiria” a precedência no uso do “travelling” (importante técnica na construção da estética cinematográfica), antes mesmo de Griffith.
A expressividade da iluminação também é uma conquista de “Cabiria”. Pastrone foi o primeiro a utilizar a luz elétrica artificial para fins estéticos, e não apenas para reforçar a luz solar em contraluzes ou claros-escuros – como se fazia até então. Isso aparece principalmente na cena em que Arquimedes incendeia com espelhos a frota naval romana: seu rosto é modelado magnificamente em primeiro plano por uma luz que vem de baixo, sobre o fundo esfumaçado da guerra. A montagem alternada (ou paralela) antecipa em dois anos àquela presente em “Nascimento de uma Nação” (1916), de Griffith. Trata-se de duas seqüências de acontecimentos distintos – em lugares diferentes – que são mostrados na tela ao mesmo tempo, alternando-se uma a uma cenas de um e de outro; normalmente, esses acontecimentos são convergentes: eles se encontrarão em um determinado tempo, numa única cena. É uma técnica que contribui muito para o suspense e o clímax da ação do filme (além de ser um componente-chave na composição da linguagem fílmica), na qual Griffith é considerado o criador e primeiro mestre, mas na verdade o tributo da originalidade deve ser prestado a Pastrone.
A história do filme (resumindo a grosso modo, fazendo pouco jus às preocupações literário-narrativas da película) trata da menina Cabiria, filha de patrícios romanos, que, após uma erupção do vulcão Etna, é raptada e vendida como escrava em Cartago, na época das guerras púnicas. O também patrício Fulvio Axilla, acompanhado por seu fiel servo Maciste, parte para o resgate. Aqui temos que abrir um parêntesis: a figura simpática do corajoso, perseverante e sobretudo fiel guerreiro Maciste exerce muito poder sobre a platéia; tanto que foi reutilizada com muito sucesso em filmes italianos subseqüentes.
A forte cena do sacrifício de crianças para o deus Moloch, do qual Cabiria também foi escolhida para ser vítima, teve uma “Sinfonia do Fogo” especialmente composta pelo autor que assina a trilha sonora, Ildebrando Pizzetti.
Como acontece em muitos filmes ambiciosos do período mudo, a afetação dos atores, do drama e da linguagem dos letreiros mais provoca risos nas platéias contemporâneas do que lágrimas. Entretanto, concedamos o crédito ao filme como documento de uma época gloriosa do cinema, muito próxima do seu nascimento, quando sua identidade ainda não estava nem um pouco formada. Imagine o entusiasmo de se envolver com uma nova forma de linguagem e de arte em processo de origem, ou seja, onde tudo – absolutamente tudo – ainda está para ser descoberto, experimentado, inventado e elaborado. E é graças a gênios desbravadores como Meliès, Pastrone e Griffith que hoje temos e amamos a arte do cinema.
“Cabiria” é de uma época em que a magia das “imagens em movimento” ainda fascinava e assombrava. É preciso tentar ver esse filme como o viam as primeiras platéias em 1914. Por isso, foi fantástica a exibição nesta Mostra de uma cópia restaurada, com o acompanhamento, ao vivo no piano, da trilha sonora original executada pelo maestro italiano Stefano Maccagno. É a experiência do Cinema, em todo o seu poder.
Existe algo de especial em se ver uma obra clássica do cinema no cinema, principalmente se for uma das obras-primas fundadoras da arte cinematográfica. Na literatura, por comparação, esse algo de especial se perde. Ler Homero é fascinar-se pelo retrato de uma época, situações e personagens que estendem o seu eco até nós, é reconhecer a estética que forjou os padrões para toda a literatura subseqüente. Mas, para ter o poder específico do cinema, nós teríamos que ler a “Ilíada” no original em grego e no mesmo pergaminho em que tal obra primeiro foi talhada; também ajudaria se nos colocássemos debaixo das arcadas do Parthenon ao fazer essa leitura.
Talvez assim passássemos, com a literatura, por uma experiência um tanto quanto equivalente a ver Cabiria na sala escura de um cinema, com o devido acompanhamento da trilha musical ao piano, executada ao vivo.
Cabiria (Itália, 1914) está no vértice de todo cinema grandiloqüente, hoje chamado de “blockbuster”. Tudo, nessa obra do engenheiro italiano Giovanni Pastrone (que adotara na época o pseudônimo de Piero Fosco), é construído hiperbolicamente para transportar os sentidos e as emoções do espectador. Se é possível falar em Cultismo e Rococó barrocos no cinema, temos que citar “Cabiria”. Em mais de um aspecto, os mestres de Hollywood D. W. Griffith e Cecil B. de Mile são devedores de Pastrone e seu épico. Vamos, então, enumerar os marcos que esse filme estabeleceu na história do cinema.
O roteiro é assinado pelo famoso poeta Gabriele D’Annunzio, embora seu autor real tenha sido o próprio Pastrone, sob o pseudônimo de Piero Fosco. Os cenários já não são simples telas pintadas, como nos filmes de Meliès; são construídos em três dimensões e com proporções às vezes gigantescas. Para as filmagens no cenário natural (e gelado) dos Alpes, Pastrone fez uso de centenas de figurantes em cavalaria, incluindo autênticos elefantes. O realismo é bem mantido tanto nas cenas naturais quanto nas de estúdio, que não se contradizem. “Cabiria” foi o primeiro filme a atingir três horas de duração e o primeiro a promover uma ostensiva campanha de marketing. Toda essa estratégia cabiriana em cima do “filme espetáculo” teve como objetivo levar o cinema a alçadas mais elitistas, dissociando-o do espetáculo circense-popular que caracterizou o seu nascimento. “Cabiria” pode ser incluído dentro dos “filmes de arte”, gênero famoso nos primórdios do cinema, que se caracterizou por seus aspectos literários (enredo e diálogos, que eram muitas vezes assinados por escritores famosos) e teatrais (a encenação dos atores, figurino e cenário) e teve como meta tornar o cinema um entretenimento mais culto, sério e elitista.
Não obstante, o filme de Pastrone também se destaca como pioneiro na construção da “linguagem (especificamente) cinematográfica”. A complexidade da narração e da decupagem, a maneira como o filme conduz o espectador com muita liberdade e catarse são influências evidentes para Griffith. Em alguns momentos de “Cabiria”, a câmera move-se paralelamente ao cenário, ou aproximando-se e afastando-se dos personagens, destacando sua ligação com o ambiente e conferindo relevo à cena. Esse processo foi realizado pelo cinegrafista espanhol Segundo Chomon, que montou a câmera num carro, chamando-o de “carrello”. Assim, podemos conceder a “Cabiria” a precedência no uso do “travelling” (importante técnica na construção da estética cinematográfica), antes mesmo de Griffith.
A expressividade da iluminação também é uma conquista de “Cabiria”. Pastrone foi o primeiro a utilizar a luz elétrica artificial para fins estéticos, e não apenas para reforçar a luz solar em contraluzes ou claros-escuros – como se fazia até então. Isso aparece principalmente na cena em que Arquimedes incendeia com espelhos a frota naval romana: seu rosto é modelado magnificamente em primeiro plano por uma luz que vem de baixo, sobre o fundo esfumaçado da guerra. A montagem alternada (ou paralela) antecipa em dois anos àquela presente em “Nascimento de uma Nação” (1916), de Griffith. Trata-se de duas seqüências de acontecimentos distintos – em lugares diferentes – que são mostrados na tela ao mesmo tempo, alternando-se uma a uma cenas de um e de outro; normalmente, esses acontecimentos são convergentes: eles se encontrarão em um determinado tempo, numa única cena. É uma técnica que contribui muito para o suspense e o clímax da ação do filme (além de ser um componente-chave na composição da linguagem fílmica), na qual Griffith é considerado o criador e primeiro mestre, mas na verdade o tributo da originalidade deve ser prestado a Pastrone.
A história do filme (resumindo a grosso modo, fazendo pouco jus às preocupações literário-narrativas da película) trata da menina Cabiria, filha de patrícios romanos, que, após uma erupção do vulcão Etna, é raptada e vendida como escrava em Cartago, na época das guerras púnicas. O também patrício Fulvio Axilla, acompanhado por seu fiel servo Maciste, parte para o resgate. Aqui temos que abrir um parêntesis: a figura simpática do corajoso, perseverante e sobretudo fiel guerreiro Maciste exerce muito poder sobre a platéia; tanto que foi reutilizada com muito sucesso em filmes italianos subseqüentes.
A forte cena do sacrifício de crianças para o deus Moloch, do qual Cabiria também foi escolhida para ser vítima, teve uma “Sinfonia do Fogo” especialmente composta pelo autor que assina a trilha sonora, Ildebrando Pizzetti.
Como acontece em muitos filmes ambiciosos do período mudo, a afetação dos atores, do drama e da linguagem dos letreiros mais provoca risos nas platéias contemporâneas do que lágrimas. Entretanto, concedamos o crédito ao filme como documento de uma época gloriosa do cinema, muito próxima do seu nascimento, quando sua identidade ainda não estava nem um pouco formada. Imagine o entusiasmo de se envolver com uma nova forma de linguagem e de arte em processo de origem, ou seja, onde tudo – absolutamente tudo – ainda está para ser descoberto, experimentado, inventado e elaborado. E é graças a gênios desbravadores como Meliès, Pastrone e Griffith que hoje temos e amamos a arte do cinema.
“Cabiria” é de uma época em que a magia das “imagens em movimento” ainda fascinava e assombrava. É preciso tentar ver esse filme como o viam as primeiras platéias em 1914. Por isso, foi fantástica a exibição nesta Mostra de uma cópia restaurada, com o acompanhamento, ao vivo no piano, da trilha sonora original executada pelo maestro italiano Stefano Maccagno. É a experiência do Cinema, em todo o seu poder.
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