segunda-feira, setembro 24, 2007

Possuídos


Possuídos (EUA, 2006, dir.: William Friedkin) assusta. E muito. Mas esse susto não é aquele pular fácil do espectador na cadeira que infesta os filmes “de susto”. Possuídos não é um filme de susto. É um filme de horror, no sentido mais pleno da palavra. William Friedkin vai semeando e cultivando a semente do horror na alma do espectador com a paciência com que se cuida de um bonsai. Um horror sufocante que, no entanto, temos de encarar de frente. Melhor dizendo: temos de vivenciá-lo. Assim, o incômodo do filme não é físico, ninguém vai ficar se agitando ou pulando na cadeira. É a nossa alma que vai ferver, até chegar num estado de pasmo quase catatônico. Possuídos nos envolve na claustrofobia de uma atmosfera tão absurda que chega a flertar com o surreal; porém, essas são as tintas que colorem um retrato absolutamente realista ao extremo, humildemente mimético.

Pensando nessas características, não podemos deixar de nos lembrar do realismo mágico na Literatura, particularmente na obra de Júlio Cortázar. Dando lenha à sanha de enquadrar (ou aproximar) tudo dentro de gêneros, vamos ter que dizer que Possuídos não é um filme de horror; é um filme realista-mágico / fantástico. Esse gênero, que guarda proximidades com o surrealismo, é para mim muito mais assustador do que aquele terror propriamente sobrenatural de um Romantismo pueril, ou aquele terror psicopata / sádico que (não é de se surpreender) agrada tanto a nossa época pós-moderninha. Dizer que películas do tipo Jogos Mortais são de terror psicológico é uma besteira própria de quem não sabe (ainda) a real e profunda dimensão do “psicológico”. É aí que filmes como Possuídos ganham peso.

A obra de Friedkin – assim como as do realismo mágico ou as do surrealismo – mergulha fundo na psicologia do indivíduo e da sociedade, cutucando com vara curta as feridas sempre abertas do inconsciente (seja individual seja coletivo) ainda não integrado de maneira saudável ao consciente iluminista. Essa dissociação consciente-inconsciente se manifesta na vida e na cultura de formas variadas. Possuídos é uma delas. Este filme naturalmente mexe com temas sócio-políticos muito contemporâneos e muito pertinentes – o realismo mágico e o surrealismo também têm um engajamento social, já que o inconsciente também é coletivo – mas o buraco é muito mais embaixo (ou mais em cima, quer dizer, o problema está na cabeça das pessoas). Isso nos faz especular o quanto de problemas sociais e políticos são, no fundo, problemas psicológicos.

É nisso que Possuídos assusta, e assusta mais do que muitas coisas aparentemente mais assustadoras por aí. O filme nos coloca em contato com questões muito interiores que estão longe de serem resolvidas, por exemplo: a difícil integração – inclusive psicológica – do indivíduo na coletividade; a obsessão para com o corpo, a conquista e a manutenção dos relacionamentos afetivos e amorosos; o medo paranóico que o “eu” tem de um “outro” diferente, desconhecido e incompreendido. Essas coisas todas não despertam em nós um mero susto; elas provocam uma sensação de horror ao mesmo tempo depressivo e ansioso, que nos envolve e sufoca até os limites do pânico. Repito: a sensação é similar à de quando entramos em contato com certas obras do realismo mágico e do surrealismo, ou quando vemos filmes do tipo Apocalipse Now (de Francis Ford Coppola) ou Cidade dos Sonhos (de David Lynch). O mal-estar psíquico é muito grande.

A estética com que todo esse conteúdo é apresentado é digna de admiração, porque contribui muito para o efeito provocado no espectador. Como eu disse no começo, William Friedkin filma com o cuidado, com a paciência e a simplicidade de um lavrador. A fotografia não tem aquelas descolorações, aquelas granulações ou outros artifícios “fáceis” do tratamento de imagem que não passam de purpurina nos olhos de muitos filmes “de horror”. É claro que alguns chicotes (movimentos de câmera rápidos) e trepidações no enquadramento incomodam um pouco (para mim, que sou classicizante, eu admito), mas são mínimos esses elementos dinâmicos de vídeo-clipe. O ritmo do filme é lento e despretensioso: durante a primeira metade a gente se pergunta se é realmente um filme de terror. Mas essa demora só contribui para aumentar o choque violentíssimo que a segunda metade (e especialmente o final) provocará no espectador. O diretor vai mesmo plantando, quase que imperceptivelmente, as sementes do horror; e elas vão crescendo lentamente, de uma maneira que nós não calculamos o resultado absurdo de tudo, mas uma hora nós nos descobrimos envolvidos incondicionalmente numa loucura irremediável e irreversível.

O ótimo trabalho do casal de atores centrais: Ashley Judd (vivendo Agnes White) e Michael Shannon (como Peter Evans), e dos poucos coadjuvantes: Harry Connick Jr. (Jerry Goss), Lynn Collins (R. C.) e Brian F. O’Byrne (Dr. Sweet) e o cenário (a maior parte da narrativa se passa num quarto de motel de estrada no meio do deserto do meio-oeste americano) contribuem poeticamente para a criação da atmosfera psiquicamente hermética da história. Todo esse fechamento excludente (em torno de poucos atores, num cenário único, pequeno e fechado – o filme foi baseado numa peça teatral), o cerceamento, o sufoco claustrofóbico de um meio (psíquico ou social, interior ou exterior), compõem o clima, o assunto e a mensagem de cunho psicológico do filme.

continuação de Possuídos


William Friedkin parece escarnecer da paranóia tradicional das teorias da conspiração: veja-se o diálogo, que mais está para dois monólogos encadeados (a dimensão teatral do filme é magnífica), entre Agnes e Peter em que ambos vão tecendo os fatos, as causas, as conseqüências e todas as relações “lógicas” que compõem a fabulosa trama “de espionagem” em que o casal “vive”. Essa cena é, fascinantemente, ao mesmo tempo muito risível e patética. Os personagens vão tricotando a “rede” ao seu redor de maneira admiravelmente criativa e de modo tão espontâneo quanto no processo da imaginação ativa (Jung explica). Apesar disso, Friedkin dá a entender nas entrelinhas do filme que tudo aquilo pode ter um fundo de verdade, mas lá no fundo mesmo. Porém, essa verdade é diferente do que se pensa. Os insetos não existem. Mas “experiências” militares altamente secretas com cobaias humanas (particularmente experiências psicológicas) podem existir.

Quando aproximamos Possuídos do realismo mágico, do surrealismo ou mesmo da ficção científica, é preciso lembrar sempre de guardar as devidas proporções. A aproximação que eu faço está focada no tom, na atmosfera e no clima do desenvolvimento narrativo, e também nos temas mais profundos que são discutidos usando tais traços estilísticos (questões psicológicas e sociais). Agora, no aspecto propriamente dito da fabulação, William Friedkin é bem claro em deixar de lado qualquer elemento fantástico. O diretor não mantém sequer uma ambigüidade em relação aos “insetos”; é óbvio que eles são fruto da mente doentia ou adoecida do personagem. Ao contrário de filmes como Alien, O Oitavo Passageiro (de Ridley Scott) ou as fitas de zumbis de George Romero, ou muito da ficção científica ao mesmo tempo realista e mágica, em que o elemento fantástico possui uma carga metafórica que lhe dá significado amplo e é a razão da sua “existência”, Possuídos renega o fato dos insetos misteriosos per si. Sua imagem não tem qualquer validade factual (apenas os vê os personagens contaminados pela paranóia alucinante), o próprio filme admite que eles são apenas “desculpa” para tratar de outros assuntos, propriamente psicológicos e sociais. Essa é a diferença entre o realismo de Possuídos e o realismo fantástico.

Mas eis que outras ambigüidades permanecem: será que a mente de Peter Evans é doentia ou está apenas adoecida? Quem garante que a sua paranóia delirante não é fruto de “experiências” que o soldado “deserdado” sofreu nas mãos das forças armadas? Os insetos são com certeza irreais; mas e se essa obsessão tiver alguma coisa a ver, de fato, com a vida militar do personagem? E os telefonemas misteriosos que Agnes White recebia ANTES de ser “contagiada” pela loucura de Peter, e que continuou recebendo após? Enfim, a abertura semântica do filme reside entre o que NÓS espectadores vemos e o que nós não vemos. O Cinema, como arte que mais se aproxima da realidade objetiva, apega-se muito à verdade do ícone, que é a imagem denotada, que “fala” de si e por si mesma (citando as idéias do lingüista Charles Sanders Peirce, pioneiro no pragmatismo e na semiótica). Assim, normalmente, o que vemos na tela é real. E ponto. Eu disse “normalmente” porque muitos filmes representam iconograficamente a visão de algo subjetivo da personagem (o visionário), até mesmo um delírio ou alucinação propriamente dita. O exemplo mais claro é a transformação de Carlitos em um frango de proporções humanas (Em Busca do Ouro, 1925, de Charles Chaplin); nós nos divertimos em ver um enorme frango perseguido por um homem esfomeado, mas sabemos que esse “frango” não passa do delírio provocado pela fome.

Agora, o que temos em Possuídos? William Friedkin decidiu por não mostrar objetivamente para o espectador os insetos fantásticos, nem com o significado de serem apenas imagem icônica da alucinação de certas personagens (pois outras também não os enxergam). Ou seja: os insetos são indiscutivelmente elementos do delírio de pessoas com doenças psiquiátricas. Entretanto, o espectador vê o telefone tocando naquelas ligações misteriosas. E mais importante ainda: o espectador vê as fortes luzes e ouve o som próximo e ensurdecedor do que parecem ser helicópteros cercando o quarto em que Agnes e Peter se escondem. Acreditando no ícone, será que poderíamos dizer que o casal está de fato sendo perseguido pelos militares e que pelo menos parte da paranóia se comprova de fato? Ou será que a perseguição é da polícia a um fugitivo do hospício, e apenas isso? (A figura do Dr. Sweet mantém e contribui mais ainda para a ambigüidade, quando ele assimila e mergulha no delírio paranóico de Agnes, dialogando com ela usando o mesmo discurso; seria isso apenas uma técnica psiquiátrica?).

Mas e se esses elementos fizerem apenas parte também da alucinação? (Há indícios que argumentam em favor dessa tese: no cerco dos “helicópteros” o quarto inteiro treme e chacoalha absurdamente, como a casinha levada pelo tornado em O Mágico de Oz; o próprio som das hélices nasce quando as personagens voltam o rosto para o teto e fixam o olhar no ventilador em funcionamento – a câmera o mostra em primeiro plano – lembrando o começo de Apocalipse Now). Se os telefonemas misteriosos e os helicópteros também são alucinações, por que o diretor escolheu mostrá-los ao espectador, e não aos insetos? Enfim, Possuídos envolve MESMO o espectador no universo da dúvida insolúvel, do medo irremediável e da paranóia irreversível. Preciso dizer que o fim é trágico?

quarta-feira, setembro 19, 2007

Last Days


Gus Van Sant é um cineasta estiloso. Não digo estilístico, apenas “estiloso” mesmo. A fotografia milimetricamente calculada, aproveitando bastante a profundidade de campo, e a montagem em planos muito, muito longos, imprimindo um ritmo pra lá de lento, são os principais cacoetes da técnica do diretor que ousou fazer um “remake” (parecido demais com o original) de Psicose (1998). Vendo os filmes de Van Sant, particularmente este mais recente Last Days (EUA, 2005), entendemos que essas marcas de estilo – que por si só, em princípio, já chamam muito a atenção – são usadas para mostrar e imprimir (quase que literalmente) em nossos olhos e na memória aquilo que foi captado pela câmera. Para Van Sant, o conteúdo da imagem é colocado no mais alto pedestal. O estilo do cineasta chama a atenção porque mostra o que ele quer mostrar de maneira excessiva, até o esgotamento, cansando o espectador.

Porém, antes que alguém já pense em aproximar o diretor de Elephant (2003) do Neo-Realismo italiano, ou da estética minimalista e meditativa de Andrei Tarkovski ou do cinema iraniano, façamos uma ressalva: falta a Gus Van Sant o olhar humanista, condescendente, subjetivamente próximo do objeto focalizado. Gênio Indomável (“Good Will Hunting”, 1997)) pode até ser um filme mais meigo, mas com certeza não é o caso de Last Days. A pseudo / quase-biografia de Kurt Cobain é uma visão excessivamente distanciada (a própria fotografia atesta isso em muitas cenas focadas no decadente Blake, o astro “clichê” do rock, particularmente na seqüência inicial). O olhar de Van Sant sobre um ídolo do rock está nos antípodas do olhar de Oliver Stone em The Doors (1991), sobre Jim Morrison. É claro que Morrison e Cobain são figuras absolutamente diferentes, pertencentes a contextos muito diferentes; e é claro também que Van Sant não precisaria ser tão elegíaco quanto Stone, mas a frieza aqui chega perigosamente perto de uma reificação do indivíduo humano. Tal reificação, usada para quem sabe criticar o star system do Rock And Roll, acaba equivalendo-se a esse mesmo “sistema”. É impressão minha ou eu senti até mesmo um tom escarnecedor na cena em que as autoridades retiram o corpo de Blake? (especialmente no uso da trilha sonora). Outro momento escarninho: a câmera fixa na TV que mostra um vídeo-clipe de R&B enquanto Blake fica “fritando”...

O distanciamento do olhar de Van Sant, por um lado, traz liberdade ao nosso próprio olhar e julgamento, mas, numa perspectiva tão ampla, numa profundidade de campo tão larga, a figura humana reduz-se a apenas mais um elemento do cenário. Não concordo com isso. Last Days teria muito a ganhar se fosse apenas um pouco mais próximo (inclusive no uso de primeiros planos) e subjetivo. Num plano médio, o elemento humano mantém a sua importância e ainda somos capazes de perceber a sua relação com o meio. De qualquer maneira, Last Days está graças a Deus longe daquela elegia descarada e condescendente demais que infesta os filmes-biografias de astros e estrelas da indústria cultural.

Apesar de tudo, a solução estética de Van Sant não é desprovida de pertinência. É significativo o contraste entre a câmera sóbria e serena que acompanha Blake e o caráter insólito e errático dos seus últimos dias. Percebemos com outros olhos o absurdo daquele personagem e da sua vida. Sem apresentar qualquer elemento de fantástico, o filme nos envolve na atmosfera do irremediavelmente insano, do incondicionalmente irracional, numa claustrofobia psíquica asfixiante e sem saída, quase como nos filmes “surreais” de David Lynch. Torna-se esteticamente bela uma existência vazia, bagunçada e destruída das piores maneiras possíveis, totalmente em ruínas, captada e transmitida melancolicamente por um filme monótono e lento.


segunda-feira, setembro 17, 2007

A Hora e Vez de Clint Eastwood


Clint Eastwood é o artista mais clássico do cinema contemporâneo. O rigor e a sobriedade formais com que ele nos apresenta os seus filmes remetem à disciplina de um quadro do Renascimento; junto disso, os temas e mensagens veiculadas são tão antigos e universais quanto a própria cultura humana. Clint Eastwood sempre toma as circunstâncias mais particulares (a Segunda Guerra Mundial, o universo do boxe, o “far-west”) para arrancar delas o máximo de pertinência humana, que transcende qualquer tempo e lugar. Os filmes de Eastwood podem muito bem ser estudados como documentos, mas o cineasta vai bem além do documental. Tomemos aqui o caso particular de Os Imperdoáveis (“Unforgiven”, EUA, 1992). Os maiores westerns já produzidos pelo cinema não ficam apenas na discussão das questões particulares da ocupação do oeste americano. Eles ascendem à esfera do mito (personagens e situações míticas), carregado de significado arquetípico. Os grandes “faroestes” são parábolas em que o vazio e a amplidão do espaço diegético (o lugar em que se passa a narrativa fílmica) sugerem a abrangência universal dos conteúdos (o Monumental Valley, imortalizado nos filmes de John Ford, possui uma força poética e sugestiva que vai além de qualquer descrição em palavras); as estórias poderiam acontecer em qualquer lugar ou época, com quaisquer pessoas (já citei o aforismo do nosso Guimarães Rosa: “O sertão é do tamanho do mundo”). Essa dimensão é o melhor dos filmes de “bangue-bangue”. Basta lembrarmos de No Tempo das Diligências, Rastros de Ódio, Sete Homens e um Destino, Duelo de Titãs, Matar ou Morrer, Era Uma Vez no Oeste... Façamos a conexão entre essas obras e as velhas novelas de cavalaria medievais, a literatura sertaneja de Guimarães Rosa (particularmente o romance Grande Sertão: Veredas), os filmes de samurai de Akira Kurosawa, e teremos uma idéia do verdadeiro cosmo de mitos universais que povoam culturas das mais diferentes. As maiores fitas de “bangue-bangue” são carregadas de épico e de lírico misturados e elevados a uma potência que só encontramos nos maiores clássicos da Literatura.

Em Os Imperdoáveis, Clint Eastwood, mais do que com o épico e com o lírico, vai trabalhar com o terceiro gênero fundamental da Literatura Clássica: o dramático. Este filme – assim como outros do diretor: Sobre Meninos e Lobos (“Mystic River, EUA, 2003), por exemplo – constrói-se como uma tragédia grega clássica: temos aí o indivíduo que se vê preso em uma teia cada vez mais elaborada de acontecimentos cruéis, de uma tal forma que parece (é o que queremos acreditar) ser ação de forças superiores (o destino ou os deuses caprichosos); não obstante, trata-se apenas das conseqüências de suas próprias atitudes. Assim sendo, esse sujeito deve superar o próprio karma para consolidar a mudança de vida e a redenção por pecados passados (ainda que tal redenção seja apenas psicológica, pois o que mais importa às vezes é o indivíduo perdoar-se a si mesmo). Eis o caso do personagem de Clint Eastwood em Os Imperdoáveis – e também em Menina de Ouro (“Million Dollar Baby”, EUA, 2004). Além disso, o filme apresenta de interessante o fato paradoxal de que, para se reabilitar perante si próprio, o ex-pistoleiro tem que voltar a pecar. Alguém aí se lembra de A Hora e Vez de Augusto Matraga, magnífico conto de Guimarães Rosa? Frankie Dunn aceita pegar em armas mais uma (última) vez, com a meta de fazer justiça a outro (vingar a prostituta) e a si mesmo (ganhar a recompensa financeira). Entretanto, o desenrolar dos acontecimentos (eis o aspecto trágico) leva-o a perder a objetividade de suas ações, assim como o equilíbrio tão duramente conquistado ao abandonar a vida do crime; Frankie acaba cometendo atos realmente cruéis; em seu âmago, ele volta a ser e a sentir coisas que acreditava superadas, mas cuja lembrança ainda o atormentava.

Com isso, chegamos à mistura entre Classicismo e Romantismo que a fita (e outras do cineasta) promove. É do Romantismo essa demanda subjetiva e os tormentos psíquicos que explicamos, são românticas as questões de honra (a dignidade das prostitutas), amor (lembre-se que era a falecida esposa de Eastwood que o tinha salvado da vida bandida) e lealdade (o amigo Morgan Freeman) que também definem outros grandes westerns. No plano formal, temos a decupagem clássica – simples e objetiva – junto de um tom melancólico trazido pelos rostos e pela trilha sonora; porém, tudo com muita sobriedade. Um Romantismo sóbrio. Ou um Classicismo ébrio.

Eis a hora e vez de Clint Eastwood.


sexta-feira, setembro 14, 2007

Cinema, Aspirinas e Urubus


Cinema, Aspirinas e Urubus é um filme que chama a atenção. Chama a atenção porque é diferente de muita coisa que se vê na produção nacional da atualidade. E o melhor é que a película de Marcelo Gomes chama a atenção não pela simples e pueril razão de “chamar a atenção” – que é justamente o que ocorre com muito do cinema tupiniquim, particularmente com o do seu conterrâneo Cláudio Assis. Cinema, Aspirinas e Urubus é verdadeiramente dotado de uma densidade poética, que carrega muito o que dizer e mostrar. Tal densidade nunca se desloca do foco essencialmente humano. O homem é o elemento mais importante, muito mais do que o ambiente físico ou o meio social. O filme exala uma paixão e um respeito reverentes pela humanidade. Um olhar abrangente e livre em cima dos personagens, um olhar que não julga, que não “analisa”, que não busca compreender ou explicar dentro de categorias muitas vezes questionáveis, um olhar que simplesmente vê. E ponto. Não é isso o que deveria ser o Cinema? No entanto, já é muito mais do que se pode pedir da moda “naturalista” que assola a nossa sétima arte e os seus filmes “de tese”.

É claro que Cinema, Aspirinas e Urubus mostra muitas coisas sobre as quais o espectador pode – e deve – exercer um julgamento discernente. Mas isso caberá ao espectador. O filme em si, em seu próprio discurso, não se encaminha para qualquer linha argumentativa, não defende nenhuma “tese”. É uma obra aberta. Como a vida é aberta. Como o homem é aberto. Repito: Cinema, Aspirinas e Urubus é uma obra notável porque não apresenta os vícios e as afetações que infestam o cinema brasileiro contemporâneo. É um filme sóbrio e sereno: na fotografia, na montagem e na direção dos atores (isso é o melhor, pois os atores aqui passam longe daquela afetação teatral-televisiva que polui muitos filmes com pretensão a serem “grande arte”). A fita de Marcelo Gomes deixa-se levar natural e espontaneamente, como um rio, pelo embalo de suas próprias forças simples – particularmente o enredo (minimalista e fluente, bem amarrado e centrado no cotidiano, quase “neo-realista”) e os personagens. Se o problema tão falado do nosso cinema é o roteiro, este filme é a solução.

Cinema, Aspirinas e Urubus passa longe de virtuosismos barrocos / parnasianos. É claro que a estética do filme é muito bem trabalhada, mas sempre e exclusivamente a serviço do conteúdo humano, trabalhado de maneira sadia. É o que fazem as grandes obras de arte. Só o fato de chamá-lo de “road movie” já seria uma pretensão, um excesso de análise e de categorização racionalizante a que o filme não se propõe de maneira alguma. O máximo de análise a que nos permitimos aqui é dizer que Cinema, Aspirinas e Urubus trata de grandes temas (a seca no sertão nordestino, a Segunda Guerra Mundial) sem descair para a pretensão, a prepotência ou a auto-indulgência. Repito: a humanidade simples dos fatos e questões humanas essenciais é o que prevalece. O filme une o particular e o universal, o micro e o macro de maneira admiravelmente equilibrada e pertinente. Isso é raro de se atingir. A tensão entre esses elementos opostos – que não obstante se unem e se igualam – é o que faz a força e a beleza da película.

Deixo para que o leitor reflita sobre o significado desses elementos: um imigrante alemão vendendo aspirinas no sertão nordestino em 1942; a sua amizade com um retirante da seca; o fato de o próprio alemão acabar se tornando um retirante (spoiler: tendo o Brasil declarado guerra à Alemanha nazista); as bombas que caem na Europa fria e escura e a quietude faminta do sertão ensolarado vigiado pelos urubus; uma cena altamente poética: as imagens cinematográficas do Rio de Janeiro projetadas na mão do retirante cujo sonho é ir para lá. Por mais remoto que pareça, o sertão não é tão isolado assim. A confluência dessas oposições que o filme trabalha tão sabiamente, a confluência do sertão e do mundo, faz-nos pensar nas antológicas frase de João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas:

O sertão é do tamanho do mundo.

O sertão está em toda parte.

Cinema, Aspirinas e Urubus desnuda-se completamente daquela pretensão messiânica que o nosso cinema, cronicamente carente de auto-afirmação, possui. Cinema, Aspirinas e Urubus não pretende vir para ficar. Por isso é que acaba ficando. O filme não pretende ser coisa alguma além de um filme. Por isso acaba sendo um grande e notável filme. É muito difícil encontrar paralelos em nossa produção audiovisual atual, por isso apelamos (mais uma vez) para a Literatura: a poesia de Marcelo Gomes tem aquela simplicidade e espontaneidade (que, no entanto, são frutos de uma elaboração estética conscienciosa), aquele olhar generoso, humilde e apaixonado pelo gênero humano e pelas coisas que encontramos na poesia de Manuel Bandeira.

Maçã

Por um lado te vejo como um seio murcho
Pelo outro como um ventre de cujo umbigo pende ainda o cordão placentário

És vermelha como o amor divino

Dentro de ti em pequenas pevides
Palpita a vida prodigiosa
Infinitamente

E quedas tão simples
Ao lado de um talher
Num quarto pobre de hotel.

sábado, setembro 01, 2007

Simpsons, O Filme


Finalmente os Simpsons foram parar no cinema! Pena que o filme dos Simpsons não surpreenda... Quero dizer, nos episódios da TV, Homer já foi para o espaço, Montgomery Burns já roubou a luz do sol sobre Springfield, a família Simpson já aprontou no Japão, na Austrália e no Brasil, o casamento entre Homer e Marge já esteve ameaçado diversas vezes, Moad Flanders já morreu – e por culpa de Homer Simpson –, já vimos o futuro e o passado da família residente à Alameda Evergreen, a tia Selma já “saiu do armário”, enfim... Por isso, era de se esperar que a primeira incursão cinematográfica da série mais longeva da TV norte-americana e já um patrimônio da cultura pop mundial inventasse algo ainda mais (e muito mais) bombástico do que tudo o que já acontecera na telinha, para mostrar para todo mundo que os Simpsons “chegaram chegando” na tela grande.

Eu não vou aqui pensar no que seria esse algo “bombástico”, mas teria que ser absolutamente surpreendente. E essa coisa nova e surpreendente não precisaria necessariamente modificar qualquer conceito básico do seriado que, sempre o mesmo, faz sucesso há quase 20 anos. A expectativa era grande. A decepção foi equivalente. Após mais de 100 versões de um roteiro constantemente modificado (foi o que eu li em algum lugar), o filme é tão bom quanto um episódio mediano da TV (foi o que também li em algum lugar e concordo). Este filme, definitivamente, não faz par com os melhores e mais clássicos episódios da série, como, por exemplo, "Homer, o herege". Simpsons, o filme é mais do mesmo, segue as mesmas fórmulas básicas de um episódio básico, que a análise semiótica define e explica muito bem. Mas será que isso é realmente um problema?

Quem se interessar, cultive a idéia de que o caráter “low-profile” do filme não seja propriamente um defeito de roteiristas pouco imaginativos ou uma aposta na bilheteria certa de um público fiel que não seria lá muito dado a releituras fílmicas extravagantes de uma mitologia que eles tanto amam. Para isso, seja usado como argumento a apresentação da película, em que o próprio Homer Simpson (junto da família, vendo no cinema um filme de Comichão e Cocadinha), indignado, pergunta: para que pagar para se ver algo que pode ser visto de graça na TV? Começa então a apontar para os expectadores na sala de cinema, que estão sendo enganados pela “picaretagem” do filme, terminando por apontar para a câmera, ou seja, para nós mesmos... Nesse caso, o aspecto decepcionante (em termos do que há quase vinte anos se espera de uma fita dos Simpsons) e mesmo “comercial” do roteiro seria mais uma das sutis porém corrosivas auto-ironias, altamente sarcásticas e metalingüísticas, que fazem a melhor cara da série.

Será que os produtores e roteiristas teriam essa fineza de espírito? Juro que duvido... mas fica aí a dúvida.

Obs. 1: Apesar do conjunto negativo do filme, ele é dotado de algumas sacadas das melhores, como Bart escrevendo no quadro-negro “Eu não vou baixar ilegalmente este filme”, ou Homer e o seu “porco-aranha”.

Obs. 2: Sobre o caráter semiótico de Os Simpsons, veja-se o depoimento de Matt Groening (o criador) para o livro Os Simpsons e a Filosofia: “Muitos roteiristas talentosos trabalham no programa, metade dos quais vem de Harvard. E quando você estuda a semiótica de No País dos Espelhos, ou assiste a todos os episódios de Jornada nas Estrelas, tem que fazer isso compensar; por isso, você joga um monte de referências de seus estudos em qualquer coisa que fizer na vida.”

Aniversário

Birthday, de Marc Chagall
Hoje, dia 01 de setembro de 2007, o Sombras Elétricas completa um ano de vida! Parabéns! Agradecimentos muito especiais a todos os visitantes, comentadores, apoiadores e inspiradores!... Que o mundo continue assombrado...