segunda-feira, setembro 24, 2007

continuação de Possuídos


William Friedkin parece escarnecer da paranóia tradicional das teorias da conspiração: veja-se o diálogo, que mais está para dois monólogos encadeados (a dimensão teatral do filme é magnífica), entre Agnes e Peter em que ambos vão tecendo os fatos, as causas, as conseqüências e todas as relações “lógicas” que compõem a fabulosa trama “de espionagem” em que o casal “vive”. Essa cena é, fascinantemente, ao mesmo tempo muito risível e patética. Os personagens vão tricotando a “rede” ao seu redor de maneira admiravelmente criativa e de modo tão espontâneo quanto no processo da imaginação ativa (Jung explica). Apesar disso, Friedkin dá a entender nas entrelinhas do filme que tudo aquilo pode ter um fundo de verdade, mas lá no fundo mesmo. Porém, essa verdade é diferente do que se pensa. Os insetos não existem. Mas “experiências” militares altamente secretas com cobaias humanas (particularmente experiências psicológicas) podem existir.

Quando aproximamos Possuídos do realismo mágico, do surrealismo ou mesmo da ficção científica, é preciso lembrar sempre de guardar as devidas proporções. A aproximação que eu faço está focada no tom, na atmosfera e no clima do desenvolvimento narrativo, e também nos temas mais profundos que são discutidos usando tais traços estilísticos (questões psicológicas e sociais). Agora, no aspecto propriamente dito da fabulação, William Friedkin é bem claro em deixar de lado qualquer elemento fantástico. O diretor não mantém sequer uma ambigüidade em relação aos “insetos”; é óbvio que eles são fruto da mente doentia ou adoecida do personagem. Ao contrário de filmes como Alien, O Oitavo Passageiro (de Ridley Scott) ou as fitas de zumbis de George Romero, ou muito da ficção científica ao mesmo tempo realista e mágica, em que o elemento fantástico possui uma carga metafórica que lhe dá significado amplo e é a razão da sua “existência”, Possuídos renega o fato dos insetos misteriosos per si. Sua imagem não tem qualquer validade factual (apenas os vê os personagens contaminados pela paranóia alucinante), o próprio filme admite que eles são apenas “desculpa” para tratar de outros assuntos, propriamente psicológicos e sociais. Essa é a diferença entre o realismo de Possuídos e o realismo fantástico.

Mas eis que outras ambigüidades permanecem: será que a mente de Peter Evans é doentia ou está apenas adoecida? Quem garante que a sua paranóia delirante não é fruto de “experiências” que o soldado “deserdado” sofreu nas mãos das forças armadas? Os insetos são com certeza irreais; mas e se essa obsessão tiver alguma coisa a ver, de fato, com a vida militar do personagem? E os telefonemas misteriosos que Agnes White recebia ANTES de ser “contagiada” pela loucura de Peter, e que continuou recebendo após? Enfim, a abertura semântica do filme reside entre o que NÓS espectadores vemos e o que nós não vemos. O Cinema, como arte que mais se aproxima da realidade objetiva, apega-se muito à verdade do ícone, que é a imagem denotada, que “fala” de si e por si mesma (citando as idéias do lingüista Charles Sanders Peirce, pioneiro no pragmatismo e na semiótica). Assim, normalmente, o que vemos na tela é real. E ponto. Eu disse “normalmente” porque muitos filmes representam iconograficamente a visão de algo subjetivo da personagem (o visionário), até mesmo um delírio ou alucinação propriamente dita. O exemplo mais claro é a transformação de Carlitos em um frango de proporções humanas (Em Busca do Ouro, 1925, de Charles Chaplin); nós nos divertimos em ver um enorme frango perseguido por um homem esfomeado, mas sabemos que esse “frango” não passa do delírio provocado pela fome.

Agora, o que temos em Possuídos? William Friedkin decidiu por não mostrar objetivamente para o espectador os insetos fantásticos, nem com o significado de serem apenas imagem icônica da alucinação de certas personagens (pois outras também não os enxergam). Ou seja: os insetos são indiscutivelmente elementos do delírio de pessoas com doenças psiquiátricas. Entretanto, o espectador vê o telefone tocando naquelas ligações misteriosas. E mais importante ainda: o espectador vê as fortes luzes e ouve o som próximo e ensurdecedor do que parecem ser helicópteros cercando o quarto em que Agnes e Peter se escondem. Acreditando no ícone, será que poderíamos dizer que o casal está de fato sendo perseguido pelos militares e que pelo menos parte da paranóia se comprova de fato? Ou será que a perseguição é da polícia a um fugitivo do hospício, e apenas isso? (A figura do Dr. Sweet mantém e contribui mais ainda para a ambigüidade, quando ele assimila e mergulha no delírio paranóico de Agnes, dialogando com ela usando o mesmo discurso; seria isso apenas uma técnica psiquiátrica?).

Mas e se esses elementos fizerem apenas parte também da alucinação? (Há indícios que argumentam em favor dessa tese: no cerco dos “helicópteros” o quarto inteiro treme e chacoalha absurdamente, como a casinha levada pelo tornado em O Mágico de Oz; o próprio som das hélices nasce quando as personagens voltam o rosto para o teto e fixam o olhar no ventilador em funcionamento – a câmera o mostra em primeiro plano – lembrando o começo de Apocalipse Now). Se os telefonemas misteriosos e os helicópteros também são alucinações, por que o diretor escolheu mostrá-los ao espectador, e não aos insetos? Enfim, Possuídos envolve MESMO o espectador no universo da dúvida insolúvel, do medo irremediável e da paranóia irreversível. Preciso dizer que o fim é trágico?

Nenhum comentário: