quinta-feira, novembro 30, 2006

Sobre o Sr. Cláudio Assis e o seu cinema


E eis que “Baixio das Bestas”, a mais nova pérola do realizador de “Amarelo Manga” (2003), leva o prêmio de melhor filme no 39º Festival de Brasília. O filme anterior – debute do Sr. Assis – foi, a seu tempo, unanimidade no mesmo festival, levando os prêmios do público, do júri oficial e da crítica.

Sabe, às vezes me dá a impressão de que, no Brasil, estamos vivendo um cenário de literatura fantástica, algo extraído de Lewis Carroll, Jorge Luís Borges ou Gabriel Garcia Marques. Não que o fato me seja inconcebível, mas vem-me com a violência de um tapa o absurdo (no sentido surreal da palavra) de que tal “artista” e suas obras sejam assim tão ovacionados. Tenho em mente “Amarelo Manga”, que eu vi – embora, pelo que se comenta, “Baixio das Bestas” vai também no mesmo caminho estilístico e ideológico.

Eu gostaria de fazer muitos comentários sobre a figura do Sr. Cláudio Assis e sobre os seus filmes, mas não o farei. Tenho medo. Assim, não falarei do absurdo que é um “artista” ideologicamente preso como se fosse a uma camisa-de-força a filosofias e estéticas que já estão datadas em 150 anos e ultrapassadas há, pelo menos, 80 anos. O cinema do Sr. Cláudio Assis lembra-me muito claramente os piores vícios dos piores imitadores e epígonos de Émile Zola e do nosso conterrâneo Aluísio Azevedo. Toda a pequenez de pensamento, a esterilidade gratuita e o inevitável preconceito no qual acabaram caindo muitos autores do chamado Naturalismo literário, cegos por sua fé intransigente nas formas mais torpes do Determinismo, do Darwinismo Social e do Niilismo também se aplicam de maneira exemplar ao cinema do Sr. Cláudio Assis.

Como se pode levar tão a sério um “artista” assim tão apegado a ideologias altamente questionáveis em seu excesso radical e, mais do que isso, sectário? O Sr. Cláudio Assis não é radical; ele é sectário. Percebe-se nitidamente isso no seu cinema e em sua postura e atitudes pessoais. A inteligentsia do Cinema Nacional, a crítica e o júri dos grandes festivais (se não também o público) precisam ter, pelo amor de Deus, esse discernimento! Mas acho que é besteira eu apelar para Deus, pois o Sr. Cláudio Assis, com certeza, deve achar a mera idéia de Deus uma besteira de gente ignorante e alienada; assim, eu corro o sério risco de ele e (ou) os seus fãs me acusarem de intolerante religioso conservador e moralista. Oh, céus! Por isso, eu não falarei nada.

Também não falarei do absurdo que é nossa inteligentsia estar aparentemente tão perdida numa espécie de limbo ético e moral (sinal dos tempos modernos e pós-modernos?) a ponto de chamar carinhosamente de “enfant terrible” um homem que é simplesmente mal-educado, mal-criado, intolerante, vestindo com orgulho um pensamento ideológico datado, superficial e preconceituoso, e, repito, sectário. Desde quando essas coisas todas viraram “chiques”? Temos aqui um homem extremamente auto-indulgente, ego-maníaco, intolerante e risivelmente pueril a ponto de exercer o “modelo maduro de conduta” que é simplesmente desqualificar a pessoa de qualquer um que ouse se opor a suas obras e idéias (às vezes com profundas e explícitas ofensas, como no caso do cineasta Hector Babenco, que foi chamado simplesmente de “imbecil”). Aos que vaiaram sua mais nova preciosidade no Festival de Brasília ele chamou de “culpados”. Quer dizer: ou somos todos condescendentes para com o Sr. Cláudio Assis, ou somos os seus inimigos declarados e desonrados. Será que é assim a coisa? Essa atitude me lembra daqueles políticos mais viciosos, gente da estirpe de Paulo Maluf. Desde quando passamos a confundir um homem assim com um artista que “não faz concessões”? (apenas cito expressões usadas na imprensa para elogiar o Sr. Cláudio Assis).

Um parêntesis: isso muito me lembra, na época da universidade, aqueles “estudantes profissionais” (na verdade agentes de partidos políticos ultra-radicais infiltrados nos centros acadêmicos para promover a “revolução”) que imediatamente taxavam de “pequeno-burguês” qualquer um que se opusesse ao fato de eles freqüentemente interromperem as aulas para anunciar e promover “manifestações” e greves estudantis.

O pior é que chamam o Sr. Cláudio Assis de “corajoso”. Meu Deus do céu! Será que não se entende de maneira alguma que uma postura realmente corajosa, crítica e prolífica, daquelas que sacodem o “estabilishment”, ajudam-nos a tomar consciência e revolucionar para rumos melhores, envolve muito, mas muito mais do que ficar berrando palavrões à vontade, xingar quem não concorda com as suas próprias idéias, mostrar na tela de cinema um boi sendo morto a golpes e dizer por aí que o ser humano é apenas sexo e funções fisiológicas? (saiu da própria boca do Sr. Assis esse grande aforismo da sabedoria do Naturalismo literário do século XIX e de suas ideologias de base; esse homem é inacreditável!)

A atitude pessoal, ideológica e artística do Sr. Assis seria também preocupante, porém, mais compreensível, se fosse oriunda de um adolescente de 15 ou 16 anos. Mas em um homem maduro...

continuação de Cláudio Assis...


Concordo plenamente que para “revolucionar”, para mostrar de maneira livre e crítica certas coisas que as pessoas precisam ver, é necessário ou minimamente interessante, às vezes, procurar chocar. O artista responsável deve fazer o seu público sair da posição por demais cômoda do cotidiano e refletir sobre outros aspectos e fatos da vida e do mundo. Grandes obras de arte chocam de maneira radical e exemplar. Contudo, há que se ter um discernimento. O choque nunca, jamais deve ser gratuito; muito menos em favor de idéias e mensagens altamente questionáveis no sentido ético e (ou) moral. Pois bem, não me parece ser exatamente este o caso do cinema do Sr. Cláudio Assis.

“Amarelo Manga”, sob o (justo e até louvável) pretexto de mostrar de modo contundente o pior aspecto do ser humano, da vida e do mundo – especialmente o brasileiro – , e assim conscientizar e libertar a mente do seu espectador, acaba, no fundo do seu decorrer, servindo apenas de veículo ideológico e panfletário à visão mais abjeta da existência, fruto bem pessoal da mente de seu diretor. O filme comete o mesmíssimo engano dos romances naturalistas: ao invés de utilizar filosofias como instrumento para se compreender uma determinada realidade, acaba-se manipulando e deturpando a realidade para se encaixar melhor àquelas filosofias, crendo-se que com isso elas serão provadas empiricamente. Não passa de propaganda ideológica do tipo mais pobre (e, repito, referente a ideologias altamente questionáveis, o que é ainda pior). A diferença entre o Sr. Cláudio Assis e um artista de verdade é que este último constrói uma “piscina” realmente profunda, que faz o seu público ficar assombrado com a escuridão misteriosa de suas águas e ansioso (ainda que com medo) por mergulhar nelas e desvendar o seu fundo; já o realizador de “Baixio das Bestas” (parece o título de algum romance da sub-literatura folhetinesca da “bèlle epòque”) constrói uma “piscina” extremamente rasa, mas turva as suas águas com tintas escuras para fazê-las parecerem profundas. Quem tentar mergulhar nelas vai quebrar a cara...

A parte do meu pensamento que se apega à filosofia, à sociologia e à psicanálise, sentiu-se bastante ofendida em ver “Amarelo Manga”. Minha inteligência fica tão ofendida quanto ao acompanhar certas campanhas do marketing político ou do religioso. A estupidez é a mesma na esquerda e na direita; isso é o que poucos parecem perceber. Repito: é natural se os filmes de Cláudio Assis agradarem a adolescentes revoltados, mas esse cinema não resiste a um pensamento e gosto mais maduros.

Outro parêntesis: não quero incorrer no mesmo erro do Sr. Assis, por minha parte desqualificando as pessoas que apreciam os filmes desse diretor. Peço desculpas se meus argumentos parecerem ofensivos, mas o fato é que: podemos apreciar a estética desses filmes e alguma parcela de seu conteúdo; mas certas idéias ali presentes e propagandeadas são intolerantes, desrespeitosas e anti-éticas. Essas coisas não podem ser apreciadas sem uma dose questionável de condescendência.

Também fico ofendido como contribuinte, ao saber que filmes assim são feitos com a ajuda de verbas públicas. Mas não vou falar aqui de critérios para a concessão de dinheiro público ao cinema, pois com certeza alguém resmungará: “censura!”, chamando-me de repressor, autoritário, etc.

Chama muito a atenção o atual estado da nossa inteligentsia. Ela cai de amores por um filme como “Amarelo Manga”, que não passa de um proselitismo descarado da forma mais superficial, intolerante, desrespeitosa e absolutista de um materialismo niilista (a cena em que o próprio diretor, como figurante, diz uma frase “de efeito” ao ouvido de uma moça evangélica – que obviamente encarna ali TODOS os evangélicos –, numa cena totalmente solta e gratuita no conjunto do filme, é de um desrespeito gritante para com esse grupo social e religioso). Por outro lado, a inteligentsia promove um verdadeiro levante com todas as suas armas contra um filme como “A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson, chamando-o precisamente de excessiva e gratuitamente violento, intolerante, desrespeitoso, absolutista, proselitista, etc, ou seja, exatamente as mesmas características que apresenta o cinema de Cláudio Assis. Realmente, não dá pra entender. Na verdade, até dá, mas eu prefiro me calar, pois eu já sei exatamente quais serão as críticas que receberei por isso, e quero evitá-las. Não darei trela a nenhum espírito malicioso. Como eu já disse, não falarei nada sobre o Sr. Cláudio Assis e sobre os seus filmes, pois eu tenho medo dele. Tenho medo de que ele também chame a mim de “imbecil”, “culpado”, ou coisa pior.

quinta-feira, novembro 02, 2006

"Cabiria"


Filme exibido na 30ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Existe algo de especial em se ver uma obra clássica do cinema no cinema, principalmente se for uma das obras-primas fundadoras da arte cinematográfica. Na literatura, por comparação, esse algo de especial se perde. Ler Homero é fascinar-se pelo retrato de uma época, situações e personagens que estendem o seu eco até nós, é reconhecer a estética que forjou os padrões para toda a literatura subseqüente. Mas, para ter o poder específico do cinema, nós teríamos que ler a “Ilíada” no original em grego e no mesmo pergaminho em que tal obra primeiro foi talhada; também ajudaria se nos colocássemos debaixo das arcadas do Parthenon ao fazer essa leitura.

Talvez assim passássemos, com a literatura, por uma experiência um tanto quanto equivalente a ver Cabiria na sala escura de um cinema, com o devido acompanhamento da trilha musical ao piano, executada ao vivo.

Cabiria (Itália, 1914) está no vértice de todo cinema grandiloqüente, hoje chamado de “blockbuster”. Tudo, nessa obra do engenheiro italiano Giovanni Pastrone (que adotara na época o pseudônimo de Piero Fosco), é construído hiperbolicamente para transportar os sentidos e as emoções do espectador. Se é possível falar em Cultismo e Rococó barrocos no cinema, temos que citar “Cabiria”. Em mais de um aspecto, os mestres de Hollywood D. W. Griffith e Cecil B. de Mile são devedores de Pastrone e seu épico. Vamos, então, enumerar os marcos que esse filme estabeleceu na história do cinema.

O roteiro é assinado pelo famoso poeta Gabriele D’Annunzio, embora seu autor real tenha sido o próprio Pastrone, sob o pseudônimo de Piero Fosco. Os cenários já não são simples telas pintadas, como nos filmes de Meliès; são construídos em três dimensões e com proporções às vezes gigantescas. Para as filmagens no cenário natural (e gelado) dos Alpes, Pastrone fez uso de centenas de figurantes em cavalaria, incluindo autênticos elefantes. O realismo é bem mantido tanto nas cenas naturais quanto nas de estúdio, que não se contradizem. “Cabiria” foi o primeiro filme a atingir três horas de duração e o primeiro a promover uma ostensiva campanha de marketing. Toda essa estratégia cabiriana em cima do “filme espetáculo” teve como objetivo levar o cinema a alçadas mais elitistas, dissociando-o do espetáculo circense-popular que caracterizou o seu nascimento. “Cabiria” pode ser incluído dentro dos “filmes de arte”, gênero famoso nos primórdios do cinema, que se caracterizou por seus aspectos literários (enredo e diálogos, que eram muitas vezes assinados por escritores famosos) e teatrais (a encenação dos atores, figurino e cenário) e teve como meta tornar o cinema um entretenimento mais culto, sério e elitista.

Não obstante, o filme de Pastrone também se destaca como pioneiro na construção da “linguagem (especificamente) cinematográfica”. A complexidade da narração e da decupagem, a maneira como o filme conduz o espectador com muita liberdade e catarse são influências evidentes para Griffith. Em alguns momentos de “Cabiria”, a câmera move-se paralelamente ao cenário, ou aproximando-se e afastando-se dos personagens, destacando sua ligação com o ambiente e conferindo relevo à cena. Esse processo foi realizado pelo cinegrafista espanhol Segundo Chomon, que montou a câmera num carro, chamando-o de “carrello”. Assim, podemos conceder a “Cabiria” a precedência no uso do “travelling” (importante técnica na construção da estética cinematográfica), antes mesmo de Griffith.

A expressividade da iluminação também é uma conquista de “Cabiria”. Pastrone foi o primeiro a utilizar a luz elétrica artificial para fins estéticos, e não apenas para reforçar a luz solar em contraluzes ou claros-escuros – como se fazia até então. Isso aparece principalmente na cena em que Arquimedes incendeia com espelhos a frota naval romana: seu rosto é modelado magnificamente em primeiro plano por uma luz que vem de baixo, sobre o fundo esfumaçado da guerra. A montagem alternada (ou paralela) antecipa em dois anos àquela presente em “Nascimento de uma Nação” (1916), de Griffith. Trata-se de duas seqüências de acontecimentos distintos – em lugares diferentes – que são mostrados na tela ao mesmo tempo, alternando-se uma a uma cenas de um e de outro; normalmente, esses acontecimentos são convergentes: eles se encontrarão em um determinado tempo, numa única cena. É uma técnica que contribui muito para o suspense e o clímax da ação do filme (além de ser um componente-chave na composição da linguagem fílmica), na qual Griffith é considerado o criador e primeiro mestre, mas na verdade o tributo da originalidade deve ser prestado a Pastrone.

A história do filme (resumindo a grosso modo, fazendo pouco jus às preocupações literário-narrativas da película) trata da menina Cabiria, filha de patrícios romanos, que, após uma erupção do vulcão Etna, é raptada e vendida como escrava em Cartago, na época das guerras púnicas. O também patrício Fulvio Axilla, acompanhado por seu fiel servo Maciste, parte para o resgate. Aqui temos que abrir um parêntesis: a figura simpática do corajoso, perseverante e sobretudo fiel guerreiro Maciste exerce muito poder sobre a platéia; tanto que foi reutilizada com muito sucesso em filmes italianos subseqüentes.

A forte cena do sacrifício de crianças para o deus Moloch, do qual Cabiria também foi escolhida para ser vítima, teve uma “Sinfonia do Fogo” especialmente composta pelo autor que assina a trilha sonora, Ildebrando Pizzetti.

Como acontece em muitos filmes ambiciosos do período mudo, a afetação dos atores, do drama e da linguagem dos letreiros mais provoca risos nas platéias contemporâneas do que lágrimas. Entretanto, concedamos o crédito ao filme como documento de uma época gloriosa do cinema, muito próxima do seu nascimento, quando sua identidade ainda não estava nem um pouco formada. Imagine o entusiasmo de se envolver com uma nova forma de linguagem e de arte em processo de origem, ou seja, onde tudo – absolutamente tudo – ainda está para ser descoberto, experimentado, inventado e elaborado. E é graças a gênios desbravadores como Meliès, Pastrone e Griffith que hoje temos e amamos a arte do cinema.

“Cabiria” é de uma época em que a magia das “imagens em movimento” ainda fascinava e assombrava. É preciso tentar ver esse filme como o viam as primeiras platéias em 1914. Por isso, foi fantástica a exibição nesta Mostra de uma cópia restaurada, com o acompanhamento, ao vivo no piano, da trilha sonora original executada pelo maestro italiano Stefano Maccagno. É a experiência do Cinema, em todo o seu poder.