quinta-feira, julho 31, 2008

Be Kind Rewind


Be Kind Rewind (EUA, 2008, dir.: Michel Gondry) aponta carinhosamente para duas direções simultâneas: o passado e o futuro. O filme homenageia, por um lado, os pioneiros do Cinema, que não precisaram de nada mais do que da imaginação criativa para realizarem as primeiras obras de uma nova arte. É um cinema feito na base do improviso, da intuição e da experimentação. Um cinema espontâneo, não à toa com grande apelo popular. Um cinema de painéis pintados à guisa de cenário, na falta de outra tecnologia. Neste aspecto, algumas imagens de Be Kind Rewind emulam as façanhas de G. A. Smith, Ferdinand Zecca e Georges Méliès. Por um outro lado, Michel Gondry homenageia o “novo” cinema da era do Youtube, os “fan films”, recriações, refilmagens e remontagens caseiras de grandes e míticos sucessos da Sétima Arte.

Também este é um cinema de improviso, intuição, experimentação e espontaneidade. Mas engana-se quem pensar que é um cinema feito sem um rigoroso critério, e sobretudo sem paixão. Esses novos pioneiros resgatam a função coletiva dos filmes, realmente popular. Também é um cinema de cenários pintados à mão, mas por falta de capital para comprar outras tecnologias. Promove-se assim o resgate da relação íntima dos indivíduos com os filmes, enfatiza-se o poder do cinema de transformar a vida das pessoas; um poder e uma relação que andavam esgotados, senão completamente erradicados pelo cinema da indústria contemporânea. Não vou fazer sinopse alguma do enredo, o gostoso aqui é ir descobrindo o filme ponto a ponto, conforme se vai assistindo a ele.

Mas algo que se pode citar e que é extremamente interessante é a proposta dos personagens de se reduzirem (e simplificar) todos os gêneros cinematográficos a duas categorias: 1. ação / aventura; 2. comédia. É preciso mais do que isso, quando se pensa na função fenomenológica do cinema? Todo o escopo da experiência humana se alinha necessariamente ao longo de uma escala com duas pontas: a tragédia e a comédia, como os gregos antigos já sabiam. Que experiência com a qual o indivíduo possa realmente se identificar poderá ser fornecida por um “blockbuster” de 200 milhões de dólares? De que maneira as pessoas podem efetivamente participar de uma fita “cult” franco-alemã-iraniana-taiwanesa? Assim, Be Kind Rewind, à sua própria e bastante peculiar maneira, promove a tomada do cinema pelo povo e para o povo.

E o que é melhor: numa chave que não tem nada da ideologia que a sentença anterior pode sugerir. A condescendência e a ingenuidade de Gondry para com as pessoas comuns é singela, bela, quase edificante em sua naturalidade. Longa vida aos filmes toscos! Aos filmes realmente poéticos! Be Kind Rewind é um daqueles filmes que nos despertam e ensinam a fazer cinema. Na tentativa do cinema atual de sobreviver à pirataria, às novas mídias e a outras formas de entretenimento, poderíamos colocar este filme em uma das duas tendências que costumo discutir: que é a do cinema caseiro (mas neste caso, não necessariamente com uma “filmagem inconsciente” – vide a postagem referente a Cloverfield). É o cinema que retorna às pessoas comuns, para fazer com que elas continuem se interessando por cinema.

É claro que esta tendência encontra suas melhores realizações – em todos os sentidos, inclusive no artístico – no cinema efetivamente popular, o cinema de Youtube e similares. E é claro também que haverá o estúpido embate dos donos do “cinemão” contra essas formas de “pirataria”, que estariam “matando” o Cinema... Quanto a mim, não consigo imaginar um melhor (re)nascimento para a Sétima Arte. Tudo isso é mostrado e discutido muito bem em Be Kind Rewind. Ademais, a fita nova de Gondry apresenta uma ótima surpresa: a ótima atuação do rapper e ator Mos Def. Ele é realmente bom. Promissor. Já Jack Black é sempre Jack Black, gostemos dele ou não... Danny Glover, por sua vez, continua mostrando que é um grande artista (merecedor de mais “óscares”), apesar de andar meio esquecido.

O filme anterior de Gondry (The Science Of Sleep, 2006) nunca chegou a estrear no circuito comercial brasileiro. Quanto a este Be Kind Rewind, finalmente saiu (no IMDB) a data de estréia por aqui: 03 de outubro de 2008. Com certeza, verei de novo. Em alguns casos, a tela grande na sala escura é indispensável. É muito interessante o site oficial do filme – o como que Jerry e Mike “sweded” a Internet!... Também estão lá todos os filmes “sweded” (Ghostbusters, Robocop, etc), até o trailer do próprio Be Kind Rewind foi devidamente “sweded”!

http://www.bekindmovie.com/

Não há nada que substitua a imaginação!

quarta-feira, julho 30, 2008

Bubba Ho-Tep


Bubba Ho-Tep (EUA, 2002, dir.: Don Coscarelli) é um daqueles filmes que a gente não acredita que tenham sido feitos. Uma tradução bem livre do título seria: “faraó caipira”. A história começa com ninguém menos do que Elvis Presley, já bem velho, decrépito e internado numa casa de repouso, em algum lugarejo perdido do Texas. O rei do rock, cansado da fama, trocara de identidade secretamente com um de seus “covers”; a partir de então, o imitador (chamado Sebastian Haff) passou a viver a vida do “rei”, enquanto o próprio viajava pelas cidadezinhas norte-americanas fazendo apresentações “tributo” a si mesmo. Logicamente, o “Elvis” que morreu em 1977 era o sósia. Hoje em dia, no asilo em que vive, Elvis conhece JFK – um homem negro com uma grande cicatriz na nuca, que diz ser o presidente supostamente “assassinado” (o engraçado é que o homem vive num quarto decorado como a Casa Branca).

Enquanto isso, uma múmia recém-descoberta está excursionando por museus ao longo dos EUA. Por conta de incríveis peripécias (roubo e acidente), a dita cuja se perde e vai parar nos arredores do asilo onde se encontram os dois “heróis”. Então, a múmia desperta e passa a se alimentar das almas dos velhinhos que vivem ali, através de um processo no mínimo curioso: o “faraó” suga os espíritos das pessoas pelo ânus delas (é isso mesmo, a múmia chupa o cu dos outros)!... Mas a grande cagada – literalmente – de Bubba Ho-Tep (que se veste de chapéu e botas de “cowboy”) foi deixar uma “pichação” em hieróglifos no banheiro, que será decifrada por JFK (Ossie Davis), o qual se unirá ao seu amigo Elvis (o mítico Bruce Campbell) para dar fim à ameaça. Enfim, o roteiro do filme tem vários outros detalhes engraçadíssimos – outros, trágicos.

A fita procura ser uma comédia, um terror e um drama ao mesmo tempo, no melhor estilo “trash”. Mas sem exageros além da conta (está muito longe de ser o mau-gosto perpetrado por Robert Rodriguez em “Planeta Terror”), tudo é muito sutil e equilibrado, como nos melhores clássicos. As imagens procuram mais provocar aquele curioso e incômodo estranhamento (como em Kubrick, por exemplo) do que um choquezinho fácil. O roteiro se baseia num conto, escrito por Joe. R. Lansdale. O diretor Coscarelli está agora filmando mais uma adaptação do autor: “Bubba Nosferatu and the Curse of the She-Vampires”, prequel deste “Bubba Ho-Tep” que mostrará Elvis Presley sendo atacado por um bando de vampiras... Isso é que é filme B! Filme “Trash”! Filme “Cult”! Ou o que quer que seja. Asas abertas à imaginação, sem limites! Eis o que dá tesão no Cinema!

terça-feira, julho 29, 2008

Uma novidade nova e outra velha


Cartaz de uma das maiores expectativas para este ano. Tá chegando (setembro)...




Lindo pequeno filme! O primeiro curta de animação de Tim Burton... Grandes agradecimentos à Carol Fiori, pela troca de figurinhas! Ela também é admiradora da neblina...

segunda-feira, julho 28, 2008

Casablanca


O que é que pode ser dito de Casablanca (EUA, 1942, dir.: Michael Curtiz)? Qualquer tentativa de racionalização incorrerá inevitavelmente na diminuição da experiência singular de se entrar em contato com esta obra-prima. Casablanca é um filme para ser sentido no fundo dos nossos corações, uma das obras mais sensíveis e epifânicas do Cinema. Não preciso dizer que é um clássico absoluto por orquestrar soberbamente quase todas as dimensões da vida humana: a amorosa, a íntima (psíquica), a social e a histórica (principalmente esta última). Usando, para isso, os melhores recursos da expressividade do cinema, em todos os seus componentes: a fotografia (noir), a montagem (que realiza à perfeição o padrão da “imagem ação” que define o cinema norte-americano), o roteiro (um dos melhores de todos os tempos, se não o melhor; a agudeza das falas – principalmente das de Humphrey Bogart –, o encadeamento dos diálogos, a progressão narrativa, a tensão entre os personagens e as situações, e principalmente o final são inesquecíveis; e dão assunto para muita conversa).

Mas também a trilha sonora (quem se esquecerá de “As Time Goes By”?) e a sua incrível função dramática e narrativa, assim como o elenco (além de Bogart, iluminam o filme Ingrid Bergman, Paul Henreid, Claude Rains, Conrad Veidt e Peter Lorre), contribuem profundamente para a grandeza do filme. Assistir a ele em 1942 deve ter sido uma experiência particularmente entusiástica, visto que foi produzido no calor dos acontecimentos da II Guerra Mundial. Casablanca ganhou três Oscars: melhor diretor (para Michael Curtiz), melhor filme e melhor roteiro (para Julius J. Epstein, Philip G. Epstein e Howard Koch, que adaptaram a peça teatral escrita por Joan Alison e Murray Burnett); e foi indicado para os prêmios de melhor ator (Bogart), melhor ator coadjuvante (Rains), melhor fotografia, melhor montagem e melhor trilha sonora. Casablanca é filmoteca básica para qualquer cinéfilo, elemento fundamental na formação de qualquer amante e (ou) conhecedor da Sétima Arte. Um filme que nos dá tanto vontade de nos apaixonarmos quanto de mudar o mundo. Amor e Causa, eis a combinação perfeita.

RICK:
Last night we said a great many things. You said I was to do the thinking for both of us. Well, I’ve done a lot of it since then and it all adds up to one thing. You’re getting on that plane with Victor where you belong.

ILSA:
But Richard, no, I, I...

RICK:
You’ve got to listen to me. Do you have any idea what you’d have to look forward to if you stayed here? Nine chances out of ten we’d both wind up in a concentration camp. Isn’t that truth, Louis?

RENAULT:
I’m afraid Major Strasser would insist.

ILSA:
You’re saying this only to make me go.

RICK:
I’m saying it because it’s true. Inside of us we both know you belong with Victor. You’re part of his work, the thing that keeps him going. If that plane leaves the ground and you’re not with him, you’ll regret it.

ILSA:
No.

RICK:
Maybe not today, maybe not tomorrow, but soon, and for the rest of your life.

ILSA:
But what about us?

RICK:
We’ll always have Paris. We didn’t have, we’d lost it, until you came to Casablanca. We got it back last night.

ILSA:
And I said I would never leave you.

RICK:
And you never will. But I’ve got a job to do, too. Where I’m going, you can’t follow. What I’v got to do you can’t be any part of. Ilsa, I’m no good at being noble, but it doesn’t take much to see that the problems of three little people don’t amount to a hill of beans in this crazy world. Someday you’ll understand that. Now, now...

RICK:
Here’s looking at you, kid.

sábado, julho 26, 2008

Batman - O Cavaleiro das Trevas


“Why so serious?”

Há alguma coisa neste Batman – O Cavaleiro das Trevas (“The Dark Knight”, EUA, 2008, dir.: Christopher Nolan) que desvia dos códigos tradicionais dos filmes de super-heróis. Talvez muita coisa, e muita coisa óbvia. Já é bem grande a distância entre as duas releituras que Christopher Nolan fez do “homem-morcego” (incluindo o Batman Begins, de 2005) e as duas já clássicas versões de Tim Burton (respectivamente: Batman – 1989; e Batman Returns – 1992). Por mais interessante que sejam as produções de Burton, há algo nelas que já envelheceu, talvez o caráter romântico, de fábula (até mesmo infantil – marca registrada do diretor). Enfim, o Batman de Burton está mais para o super-herói tradicional, apesar da atmosfera “byroniana” dos filmes.

Já o homem-morcego de Nolan prioriza o ultra-realismo (quase um naturalismo) que parece caracterizar o gosto contemporâneo. O lusco-fusco ético e moral deste “Cavaleiro das Trevas”, as questões psicológicas e sobretudo sociais que são apresentadas e discutidas fazem o filme parecer mais um drama, um “thriller”, do que uma aventura de mocinho e bandido. Este Batman está mais para Jason Bourne do que para James Bond. O título original The Dark Knight é mais do que adequado. É claro que no final do filme sobrecarrega-se um pouco a dose de condescendência, mas afinal de contas não deixa de se tratar de uma película de Hollywood com censura de 12 anos de idade.

Nos filmes de Burton, há algo (muito talvez) de circense – o que não é mau. O magnífico Coringa de Jack Nicholson puxa mais para o clássico Coringa de César Romero, da clássica – e burlesca – série de TV. Já este “Joker” de Heath Ledger é produto dos psicopatas de filmes policiais ou de terror contemporâneos. O próprio fato de a sua maquiagem ser maquiagem mesmo, e de o seu sorriso largo ter sido representado através daquelas cicatrizes bizarras já revela bastante sobre a proposta “adulta” deste filme. De resto, esta Gothan City não é de jeito nenhum aquela cidadela caricata de contos de fada macabros do ultra-romantismo (tal como ela aparece em Burton).

A “cidade gótica” de Nolan não é nada mais nada menos do que a “polis” contemporânea: absolutamente esquizofrênica. Não é uma comunidade de verdade, mas um aglomerado no qual as partes não compõem um todo coeso e coerente. Chame-se isso de decadência, mas talvez seja apenas o resultado da industrialização e da cultura do consumo. Quem vive em São Paulo ou no Rio de Janeiro entende muito bem isso. Aliás, nossas cidades é que são “Gothans” de verdade... Corroída pela violência, pela indiferença, pelo cansaço, pela ansiedade, pela corrupção, pelo egoísmo, pela hipocrisia, Gothan City é a civilização encarnada muito bem pelos seus personagens: o promotor Harvey “Duas Caras” Dent, o psicótico anarquista Coringa e o cavaleiro andante Batman.

São facetas aparentemente contraditórias, mas que se completam. Se Christopher Nolan decidir abandonar a franquia, um diretor com certeza interessante para assumi-la seria David Fincher. Enfim, é difícil estabelecer paralelos entre este “Batman” e outros filmes de super-heróis uniformizados e mascarados. Este fruto se encaixa na árvore genética de outros tipos de fitas, com outras propostas. E é um filme que funciona muito fluentemente, também graças ao incrível elenco de apoio: Heath Ledger, Aaron Eckhart, Michael Caine, Morgan Freeman, Gary Oldman... Só esses atores todos já valem a diversão. E que continuem deixando o infeliz do Robin de fora, por favor.

domingo, julho 13, 2008

Alfred Hitchcock Presents: Back for Christmas


O TCM passou hoje um ótimo episódio de Alfred Hitchcock Presents, desta vez dirigido pelo próprio “mestre do suspense”. A escrita cinematográfica dele é incrível. É um estilo único, facilmente reconhecível em certos momentos-chave da exibição. A história é a do Sr. Herbert Carpenter, um fleumático “gentleman” britânico, que está escavando o chão do porão de sua casa “para instalar uma adega de vinhos”. Na verdade, ele pretende matar a esposa – a Senhora Hermione Carpenter – e enterrá-la ali. Ambos estão planejando uma longa viagem aos EUA (a negócios de Herbert), mas a esposa quer que eles estejam de volta antes do natal (daí o título “Back for Christmas”) – pois ela dará um presente surpresa para o marido, conforme confessa em segredo às amigas. Na véspera da viagem, o Sr. Carpenter realiza o seu intento homicida e parte em definitivo para a América, onde se instala profissionalmente e passa a escrever cartas em nome da mulher para os amigos e parentes, explicando a decisão de ficar no Novo Mundo.

Um belo dia (antes do natal), junto da correspondência cotidiana, o Sr. Carpenter recebe um telegrama, destinado à sua esposa, avisando do início de um serviço de construção e decoração a ser prestado na velha casa da Inglaterra, requerido por Hermione. Abre tranqüilamente o envelope e o que descobre deixa-o tórrido: o serviço era a construção de uma adega de vinhos no porão, para a qual seria escavado um buraco no chão mais profundo do que a cova rasa fabricada pelo assassino. O Sr. Herbert descobre, da pior maneira, por que a esposa queria tanto que eles voltassem para o natal. Como sempre, a ironia é a chave do fecho de ouro da narrativa. E a direção segura de Hitchcock se faz expressiva particularmente no momento em que Herbert está a escavar o buraco retangular no porão, posicionado em uma das cabeceiras, enquanto a esposa, na outra ponta, lhe fala da inutilidade de ele se preocupar em escavar com medidas tão precisas e exageradas.

A câmera, então, fixa um primeiro plano no rosto preocupado de Herbert, no qual logo adivinhamos segundas intenções. Ele mede com o olhar o buraco, ostensivamente. A câmera, então, num movimento subjetivo, traça uma panorâmica do buraco, de uma ponta à outra, onde encontra os pés de Hermione. Porém, o olhar perscrutador da câmera (e do próprio Sr. Carpenter) não para aí; sobe pelas pernas da mulher até encontrar a sua cabeça que fala sem parar. É neste momento, através deste movimento de câmera, ligado ao primeiro plano inicial do rosto obcecado do homem, que percebemos a verdade: que aquele buraco não é para acomodar vinhos, e sim o cadáver da mulher – que o marido pretende matar. Eis mais um perfeito exemplo da arte de Alfred Hitchcock: expressar pensamentos através de meios exclusivamente cinematográficos. Ao longo do episódio, o uso significativo da profundidade de campo e a insistência de primeiros planos no rosto preocupado do Sr. Herbert também são marcas indeléveis do maior diretor de todos os tempos.

sábado, julho 12, 2008

Viagem ao Centro da Terra (em 3D)


Se o cinema como arte nasceu graças aos truques do ilusionista Georges Méliès em fitas como Voyage dans la Lune (1902), nada mais adequado do que a tentativa de “renascimento” da sétima arte que se processa agora basear-se na reconquista do mágico, do fantástico, da experiência humana que busque uma qualidade cada vez mais real ao caráter transcendente que lhe inspira e move. Nada mais adequado mesmo do que o primeiro filme “live action” em 3D ser uma adaptação das maravilhosas viagens de Júlio Verne, particularmente a Viagem ao Centro da Terra – publicado em 1864. Longe de ser já um ponto de chegada, Viagem ao Centro da Terra – O Filme (EUA, 2008, dir.: Eric Brevig) é um ponto de partida, uma experiência ainda insegura, apenas preocupada em proporcionar da maneira mais elementar os efeitos do 3D nas platéias.

Estamos vivendo aqui, com certeza, um momento na história do cinema. A tecnologia de filmes em “3D” não é nenhuma novidade, mas agora ela tem uma qualidade e potencial realmente impressionantes, e está tentando vir para ficar, arrumando seu lugar ao sol em meio à pirataria, à Internet, ao “home theather”. As velhas salas de exibição precisam sobreviver de alguma forma, e a inovação tecnológica é um dos caminhos encontrados pelo cinema dito “industrial”, que demanda gastos exorbitantes, requerendo, com isso, lucros de acordo. Mas isto nós já discutimos anteriormente neste blog. Também já discutimos o caráter único da experiência e da linguagem cinematográfica em 3D (remeto o leitor à postagem referente a Lenda de Beowulf).

O interessante de se pensar agora é: quais os efeitos que o 3D provoca em filmes com atores e cenários “reais”, visto que as experiências anteriores e mais recentes deste renascimento da terceira dimensão processavam-se a partir de animações computadorizadas. A impressão que eu tive é que, por um lado, o 3D “live action” continua absolutamente assombroso – se não até mais – em relação à animação. O retângulo da tela do cinema abre-se – literalmente – como uma janela para o mundo. Toda a fascinação que expressei a respeito da “Lenda de Beowulf” também se aplica a este “Viagem ao Centro da Terra”. Entretanto, por outro lado, a experiência nova proporcionada por este filme não foi tão contínua quanto à do “desenho” anterior.

Acredito que isso se deva, em parte, a ajustes que ainda se devam fazer na tecnologia do 3D aplicada à realidade filmada (na medida em que esses “ajustes” forem efetivamente possíveis); como nova tecnologia, há coisas nela ainda meio brutas, meio toscas. Por exemplo: há um plano, na cena da “montanha russa”, no qual os trilhos mostrados em primeiro plano por uma câmera subjetiva (o 3D dá um novo significado a estes conceitos tão elementares da linguagem audiovisual) são visivelmente falsos, possuem um tamanho proporcional muito menor em relação ao cenário e em relação – até mesmo – aos outros planos dos mesmos trilhos. Fica grosseiramente claro que são maquetes, o que prejudica enormemente o efeito de realidade do 3D. Contudo, no geral esta cena provoca verdadeiro frio na barriga.

Outros momentos “toscos” são os planos em cenários fechados (principalmente um, em que os protagonistas se encontram na pequena sala de uma casa de campo), nos quais as velhas leis de perspectiva – inventadas há 500 anos atrás pelos mestres italianos – são desconsideradas também de maneira grotesca. Parece muito que os personagens estão representando na frente de um painel; e o pior: o diretor calculou muito errado a perspectiva, ou seja, às vezes os atores parecem muito grandes em relação ao cenário, outras vezes muito pequenos. Isto também prejudica demais o efeito de realidade buscado pela terceira dimensão. Assim, alguns dos melhores efeitos em 3D deste filme são alcançados, infelizmente, através de imagens com efeitos especiais computadorizados. De que adianta o “live action” então?

Agora, tais defeitos são os limites da tecnologia ou limitações da capacidade do diretor? (Eric Brevig foi o responsável pelos efeitos especiais de Pearl Harbor – 2001 –, ganhadores do Oscar). Outro problema, este assinalado pela crítica e da responsabilidade de fato do diretor, é a escolha que ele fez por planos de curta duração (afinal, é um filme de ação e aventura para crianças), que prejudicam a assimilação do efeito 3D, pois não há tempo para o espectador digerir adequadamente a imagem, mergulhar nela. Neste aspecto, a experiência proporcionada pelo “Beowulf” de Robert Zemeckis é bem mais interessante, uma vez que lá os planos são mais longos e mais dotados de movimentos de câmera que potencializam o efeito das três dimensões.

Vamos esperar agora o Avatar de James Cameron e conferir o próximo passo da tecnologia e da arte do 3D. De qualquer maneira, é bem interessante testemunhar a reação da platéia na sala de cinema, principalmente das crianças. São gritos e expressões de assombro naqueles planos feitos para apresentar mesmo a nova tecnologia. Creio que não era muito diferente disso a reação que tinham os primeiros espectadores do cinematógrafo. Quanto ao filme “em si”, a adaptação feita de Júlio Verne é o resumo do resumo da obra, simplificada e atualizada ao máximo, mas sem distorcê-la ou banalizá-la excessivamente. Levando em conta que o próprio escritor francês direcionava seus livros ao público juvenil mesmo, esta adaptação tem valor. E Brendan Fraser entra bem no espírito de “brincadeira” de filmes assim.

quarta-feira, julho 09, 2008

Alfred Hitchcock Presents


O TCM começou a exibir, já faz quase uns dois meses, creio eu, a clássica série Alfred Hitchcock Presents. O empreendimento durou sete temporadas, entre 1955 e 1962. São pequenas histórias – em média 20 minutos cada uma – de crime e suspense psicológico, bem ao gosto do “mestre do suspense”. Para quem gosta dos filmes de Hitchcock, já viu todos eles e quer mais, assista a esta série. É quase como uma “Além da Imaginação” sem o lado sobrenatural. Contudo, não são apenas os roteiros que interessam. A forma cinematográfica dos episódios é cuidadosamente elaborada: não são dirigidos pelo próprio cineasta, mas sentimos o “olhar” dele em todos os momentos. A expressividade aqui fica bem de acordo com os (rígidos) princípios estéticos do mestre: expressar uma idéia numa forma exclusivamente cinematográfica.

Assim, a série é rica em primeiros planos significativos, em profundidade de campo, em movimentos de câmera sugestivos, etc. Sem contar que as “técnicas” do “understatement” (o implícito ao modo inglês – muitas vezes irônico) e do “mcguffin” (um objeto ou acontecimento misterioso que é apenas pretexto para que a trama discuta outros assuntos) também se fazem presentes aqui. Agora, algo que é particularmente saboroso são as introduções e os encerramentos dos episódios, apresentados pelo próprio Alfred, num cenário de estúdio com objetos que fazem parte da história em questão. Altamente sarcástico, Hitchcock apresenta os “causos”, faz comentários de humor negro, “conversa” com o espectador. Influenciada pelos filmes, esta série influenciou um filme do cineasta: Psicose (1960), filmado com a mesma equipe e no modo operacional do seriado de TV. Aí embaixo vão as sinopses de alguns episódios dos mais interessantes que já vi.

Don’t Come Back Alive (23 de outubro de 1955)
Um casal encontra-se em graves problemas financeiros. O marido, Frank, acaba de conseguir um emprego, mas ainda demorará algum tempo para sanar as dívidas mais urgentes. Então, ele tem uma idéia e a propõe à esposa: que ela “desapareça” por sete anos – tempo suficiente para que a companhia de seguros a dê como morta. Ao cabo desse tempo, Frank recolherá o seguro de vida dela, ambos se reencontrarão e sanarão suas dívidas. A mulher, Mildred, em princípio fica relutante, mas aceita. O começo do processo é difícil, a distância e o segredo faz os dois sofrerem. Além do mais, o agente da companhia seguradora crê com todas as forças que Frank matou a esposa para dar o golpe no seguro. Assim, ele promove uma dura investigação durante todos os sete anos. No começo, o agente acha que Frank enterrara a esposa no canteiro de flores, remexido recentemente. Então, ele escava todo o lugar, mas não encontra nada. Mesmo assim, não desiste.

Do outro lado, ao longo dos sete anos, Mildred vai se acostumando à sua nova vida, aprendendo a apreciá-la e até descobre um novo amor. Finalmente, no final deste tempo todo, Frank está se preparando para ir ao escritório da companhia pegar o cheque de trinta mil dólares, quando aparece à sua porta Mildred. Frank a repreende, pois se alguém a ver, o plano todo vai por água abaixo. Mildred afirma que quer sair do esquema e abandonar o marido. Agora, ela vive uma nova e mais interessante vida. Possesso de indignação, Frank mata a esposa, enterra-a apressadamente no mesmo canteiro de flores e sai para o banco. Nisto, aparece o agente da corretora, que parabeniza Frank por tê-lo “vencido”, mas se surpreende com o mal estado do canteiro de flores. Em mostras de amizade, ele se oferece a arrumá-lo, já pegando na pá e começando a escavar, acompanhado pelo olhar hirto de Frank...

Into Thin Air (30 de outubro de 1955)
Uma jovem – Diana Winthrop – e a sua mãe chegam a Paris. A velha senhora começa a se sentir mal. Elas se hospedam em um hotel e a filha chama um médico. O doutor examina a Sra. Winthrop e pede que a filha vá buscar um certo remédio com a esposa dele, a uma certa distância dali. Quando retorna, a Srta. Winthrop descobre que funcionário algum do hotel a conhece ou se lembra dela, tampouco de sua mãe. Não há quaisquer registros, provas ou testemunhas de que as duas mulheres estavam hospedadas ali. A mãe desapareceu e, naturalmente, o médico também. A jovem passa a ser dissuadida por todos, inclusive pela polícia, de sua busca e de sua “paranóia”. Depois de várias peripécias, a Srta. Winthrop descobre que foi empreendida toda uma operação para remover a sua mãe e qualquer sinal de sua passagem por ali, pois a velha estava infectada com peste bubônica, e a última coisa que as autoridades queriam era que a notícia se espalhasse. Esta história foi citada pelo próprio Hitchcock nas famosas entrevistas que deu para François Truffaut. Temos aqui a clássica situação hitchcockiana do indivíduo pego nas redes de uma sigilosa conspiração (ou acusação), da qual ele não sabe coisa alguma, nem coisa alguma sobre o seu próprio destino.

A Bullet for Baldwin (01 de janeiro de 1956)
Numa sexta-feira, um escriturário é demitido pelo patrão e atira nele, matando-o. Na segunda, ao voltar para o escritório, o assassino encontra o patrão vivo e atuante, sem fazer qualquer referência ao ocorrido, nem ao fato de tê-lo demitido. O pobre empregado fica terrivelmente intrigado e volta a trabalhar normalmente. Na verdade, o sub-chefe descobrira o corpo assassinado do patrão e decidira escondê-lo, colocando no lugar um sósia, pois a empresa estava para fechar um grande contrato. Assim que os papéis são assinados, o sub-chefe demite o infeliz do escriturário, que o mata a tiro de revólver, da mesma maneira como assassinara o primeiro. Outro tema hitchcockiano, com destaque para a ironia.

segunda-feira, julho 07, 2008

O Escafandro e a Borboleta


Poucas vezes o cinema nos proporciona uma senhora experiência de vida, nada mais e nada menos do que isso. Esta que é uma das maiores potencialidades da sétima arte, em relação à qual muitos filmes naufragam absolutamente. Para se mostrar uma experiência, um diretor não deve pretender “tratar” de tal experiência; ele deve mais é deixar a experiência “tratar-se” por si própria. O diretor deve – quase literalmente – mergulhar no universo a ser retratado: no universo humano, na experiência individual e subjetiva dos acontecimentos. Este mergulho deve ser feito com sensibilidade – tanto a humana quanto a artística –, com serenidade, naturalidade e desapego. E, obviamente, com leveza – mas sem confundi-la com superficialidade, o que parece ser difícil: como fazer um filme “investigativo” da experiência humana que seja profundo, sem se tornar pesado?

Enfim, a história de um homem “bon vivant” que, de repente, sofre um derrame (acidente vascular cerebral) e, a partir daí, só é capaz de movimentar o seu olho esquerdo, poderia parecer trágica, piegas, condescendente, dentre outros adjetivos pouco amigáveis. Mas não é a maneira como a própria “vítima” a vive ou escreve sobre ela. Conseqüentemente, não será a maneira como o sábio diretor Julian Schnabel (de “Basquiat” e “Antes do Anoitecer”) decidirá contá-la. O personagem em questão é Jean-Dominique Bauby, editor da prestigiada revista “Elle”, que decide escrever – usando o seu único meio de comunicação com o mundo exterior, o olho esquerdo – um livro sobre a própria vida, dividida entre o “escafandro” (conforme ele chama a sua condição – a síndrome do “locked-in”, ou seja, o indivíduo plenamente consciente mas “trancado” dentro de um corpo imóvel)

e a “borboleta” ( conforme ele vive a sua vida interior, totalmente livre entre a imaginação e a memória). O diretor faz a câmera mergulhar primeiro no corpo de Bauby: nunca a expressão “câmera-olho” foi tão apropriada, ou a técnica da câmera “subjetiva”. Junte-se isso à voz em “off” que nos comunica os pensamentos do personagens e teremos uma solução estilística simples e da maior expressividade. Porém, antes que o espectador se canse ou sinta de maneira enfática demais a vivência do “locked-in”, a câmera do filme vai se objetivando e como que saindo gradativamente do corpo do personagem para mostrá-lo pelos olhos das outras pessoas (só chegamos a ver o seu rosto inteiro depois de bastante tempo de filme). A partir de então, a visão do exterior se intercalará e equilibrará sublimemente com a visão do interior, e também com a visão mais interior ainda que é a das fantasias e lembranças do personagem.

Não é à toa que o filme concorreu ao Oscar de melhor montagem. A variedade e a harmonia dos “focos narrativos” é muito boa. E cada foco é composto com imagens trabalhadas muito poeticamente (o filme também concorreu ao Oscar de melhor fotografia), revelando a já assinalada bagagem pictórica do diretor – Julian Schnabel foi pintor “neo-expressionista” antes de estabelecer-se como cineasta. Schnabel também foi o “music supervisor” de O Escafandro e a Borboleta, e a trilha sonora já é uma das melhores do ano: é particularmente difícil conter as lágrimas quando se ouve “Pale Blue Eyes”, do Velvet Underground. Só para constar, o diretor de fotografia aqui é Janusz Kaminski, cinegrafista “oficial” de Steven Spielberg.

Quanto ao roteiro, que se destaca pelo tom não-condescendente, não-filosófico, enfim, não-nada (ou não-tudo?), e pelos toques de humor que só enriquecem a transmissão das coisas humanas numa chave desinteressada, ficou a cargo de Ronald Harwood – que escreveu os dois (e ótimos) filmes mais recentes de Roman Polanski: “O Pianista” e “Oliver Twist”, além de “O Amor Nos Tempos do Cólera” (2007), de Mike Newell. Enfim, é uma equipe de peso e um bom filme, que ganhou prêmios importantes, dentre eles: melhor diretor em Cannes e Globo de Ouro de melhor diretor e melhor filme em língua estrangeira. Concorreu a outros mais: melhor diretor e roteiro adaptado no Oscar, Palma de Ouro em Cannes. Não digo pelo prestígio das credenciais e da carreira do filme, mas uma obra que é reconhecida em premiações por direção, fotografia, montagem e roteiro, merece um olhar curioso, pois tais elementos é que fazem a arte do cinema.

domingo, julho 06, 2008

Filmes de Junho


Películas vistas ou revistas no pobre mês de junho (mais gordo do que maio, pelo menos):

Desejo e Reparação (“Atonement”, EUA, 2007)
É tão bom quanto a “literatura” de Khaled Hosseini ou a “música” de Maria Rita. Produto da indústria cultural para públicos “chiques”.

O Rei Leão (“The Lion King”, EUA, 1994)
Clássico absoluto da Disney. Transformou os desenhos animados em “blockbusters” dignos de concorrer com as maiores e mais caras produções de Hollywood. A trilha sonora ainda é a melhor, até hoje.

Shrek Terceiro (“Shrek The Third”, EUA, 2007)
Epígono de si mesmo. A insistência patética em cima de uma fórmula já suficientemente esgotada nos dois filmes anteriores. Desgaste total. Cansativo. Sem graça. Dá sono. Piada velha, já.

This is Spinal Tap (EUA, 1984)
Sátira genial. A inspiração de “fenômenos” como a banda Massacration. Por que é que tenho a impressão de que filmes assim só encontramos mesmo nos anos 80?

Antes Que O Diabo Saiba Que Você Está Morto (“Before The Devil Knows You’re Dead”, EUA, 2007)
Por que é que qualquer “peido” dos mestres tendem a ser muito mais agradáveis do que os melhores “perfumes” dos seus discípulos? A mais nova fita de Sidney Lumet não está à altura dos clássicos do diretor, mas ainda assim é muito melhor do que 70% da produção contemporânea.

Queimando Tudo (“Up in Smoke”, EUA, 1978)
Outra sátira genial. Cheech e Chong são o máximo. O cuidado na caracterização dos personagens e das situações é impressionante. Tem-se aqui aquele tipo de talento inimitável – ainda mais que o tema é “cabeludo” (a maconha). O Jay e o Silent Bob (dos filmes de Kevin Smith) são uma boa re-contextualização, mas, mesmo assim, sem a força dos pioneiros. Para se ver logo após se assistir a “Reefer Madness” (EUA, 1933).

O Monstro do Mar Revolto (“It Came From Beneath the Sea”, EUA, 1955)
Clássico do sci-fi B. O “Godzilla” norte-americano. Imagens antológicas. Efeitos especiais impressionantes (para a época). Produto da Guerra Fria. Dá para estabelecer um diálogo com “O Hospedeiro” (Coréia do Sul, 2006).

A Um Passo da Eternidade (“From Here to Eternity”, EUA, 1953)
Para que ver “Desejo e Reparação” se temos esta maravilha dos anos 50? O que é que “Atonement” tem a acrescentar à humanidade? O filme poderia desaparecer que não faria falta a ninguém. Que os clássicos sejam sempre vistos e revistos e vistos mais uma vez de novo.

O Incrível Hulk (“The Incredible Hulk”, EUA, 2008)
Muito bem feito. Particularmente interessante para os saudosos da série de TV e para quem não gostou do filme de Ang Lee. A Marvel ainda tem bastante lenha para queimar.

Fim dos Tempos (“The Happening”, EUA, 2008)
De boas intenções o inferno já está cheio...

Agente 86 (“Get Smart”, EUA, 2008)
Mais um ponto para Steve Carrell. Caso raro em que a releitura de um clássico não desanda para o desastre total.

WALL-E (EUA, 2008)
Mais do que surpreendente. A prova de que o bom cinema se faz com simplicidade. O cinema de verdade se constrói com roteiro, fotografia, montagem, trilha sonora e direção, mais do que com quaisquer outras “técnicas”. A computação gráfica aqui, apesar de ter uma qualidade inacreditável, é o de menos. Em arte, técnica não é a mesma coisa que tecnologia.

sexta-feira, julho 04, 2008

Meu Nome Não É Johnny


“O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos (...)” Marguerite Yourcenar

A epígrafe-mote do filme é bonita – ela aparecerá mais uma vez no final. Pena que não é usada para se construir, a partir daí, uma narrativa que trabalhe de maneira detalhada, profunda e complexa a psicologia do indivíduo, os atos, fatos, decisões, erros e remorsos que compõem a tragédia humana. Meu Nome Não É Johnny acaba passando como uma parábola das mais simples com uma mensagem moralizante ainda mais simples, ou melhor, simplista. Nada contra o sentido moral da experiência de João Guilherme Estrella, do modo como ele mesmo a viveu ou como nós a possamos testemunhar; não é necessário que se faça nenhuma glamourização do crime ou da figura mítica do criminoso rebelde, charmoso, bonitão e bem-nascido. Mas a maneira como a narrativa deste filme foi construída parece daqueles livros pseudo-romanescos de auto-ajuda evangélica, espírita, anti-drogas, anti-álcool, etc., publicados para o bem da moralização da nossa juventude.

Não sei se, na verdade, é o livro no qual se baseia o filme que é assim. De qualquer maneira, fica registrada a reclamação. O fato é que, justamente por ser uma daquelas vidas exemplares (no sentido de vidas que servem de modelo para se discutir coisas importantes e transmitir mensagens mais importantes ainda), a vida de João Estrella merece uma biografia cinematográfica – ou literária – mais à altura do drama, da tragédia, da arte; de uma elaboração artística, de uma estetização que não banalizasse a experiência humana em vista de um propósito didático moralizante dos mais redutores. Repito: não é que não deva haver moral, mas esta, justamente por ser uma dimensão importantíssima, deve receber um tratamento artístico mais elevado e mais livre, digamos assim. Ainda que a arte tenha moral, esta jamais deve carregar a obra artística nas costas de uma maneira tão explícita e simplista – conseqüentemente – reduzindo tristemente a maravilha complexa da experiência humana, ainda que trágica.

O que não se parece compreender é que o tratamento dramático, trágico e psicologicamente profundo, complexo, de uma narrativa assim é o que mais contribuiria – positivamente – para que o conteúdo moral fosse eficientemente veiculado, numa forma estética. Como maior exemplo de uma narrativa fílmica bem construída – no sentido em que estamos tratando – é a série O Poderoso Chefão, clássico de Coppola. Um filme como Cassino, de Scorsese, também vai na mesma linha. Não estou querendo dizer com isso que Mauro Lima devesse ter imitado o estilo desses dois diretores. A questão não está no estilo de direção, está na elaboração do roteiro. Meu Nome Não É Johnny não se decide entre ser o “Brazilian Gangster” (referência que fazemos aqui ao mais recente filme de Ridley Scott: o “American Gangster”) e uma versão um pouco mais elaborada do livro da Bruna Surfistinha misturado com qualquer historinha simploriamente edificante para acalmar os ânimos de pais zelosos.

O filme quer mostrar muita coisa importante em pouco tempo. É lógico que muitas delas acabam ficando na base do sumário, apenas o suficiente para que a “tese” seja demonstrável – neste caso, a tese positiva de que qualquer pessoa pode se recuperar e se regenerar, contrária obviamente à maioria das teses que assolam o cinema Naturalista do mundo cão brasileiro. Querer tratar de maneira adequada tanto da vida criminosa de João Estrella, quanto da sua vida carcerária e pós-carcerária (o lento processo de regeneração) demandaria um filme de pelo menos três horas (eis de novo os grandes modelos de Coppola e Scorsese). Agora, se o cinema comercial brasileiro ainda não está maduro o suficiente para produzir um longa tão volumoso e dispendioso, que se reduzam pelo menos as ambições, faça-se um recorte menor da vida do personagem para se colocar na tela.

Enfim, é um problema comum no nosso cinema este: dar um passo maior do que as próprias pernas. Não que se devam dar passos pequenos, mas a idéia é “malhar” as pernas para que possam dar passos e saltos cada vez maiores. Neste filme, é grotesco e chocante o desnível entre o começo e o final. O começo nos promete um Coppola ou Scorsese e o final nos entrega mais uma novela das 8. Apesar de tudo, a experiência de assisti-lo é agradável graças ao trabalho de Selton Mello, de alguns coadjuvantes (principalmente os policiais corruptos, que dão cenas bem boladas e engraçadas) e dos atores que compõem o elenco da prisão e do manicômio, dentre os quais se repete a presença de Flávio Bauraqui – de Quase Dois Irmãos. A trilha sonora, a direção de arte (na reconstituição de época), a fotografia e a montagem também chamam a atenção. Só o roteiro mesmo que estraga. Enfim, é um filme bastante profissional, mas para ser arte (mesmo que apenas arte “de gênero”) falta algo mais.

quarta-feira, julho 02, 2008

Conduta de Risco


Aqueles que se valem dos serviços de Michael Clayton acreditam que ele seja um “milagreiro”. Respeitáveis donas-de-casa, celebridades zelosas de suas imagens públicas, políticos que se pegam em “maus lençóis”, quem quer que tenha feito besteira – daquelas que não podem virar notícia – e que tenha um bom dinheiro a gastar, basta chamar o Sr. Clayton. Ele é o modelo do profissional eficiente, ou melhor, da própria eficiência em si, tal como ela é tão legitimada na sociedade da “qualidade total”. O problema é: será que o universo profissional está além de qualquer implicação ética ou moral? Em princípio não. Ou melhor, procura-se reduzir ao mínimo a pertinência dos efeitos morais de um trabalho profissional. Por mais que se fale em “responsabilidade social” das empresas, a ideologia dominante no mundo corporativo é aquela que diz respeito aos seus próprios interesses.

Mesmo assim, há trabalhos que são mais sujos do que outros. Michael Clayton, nesse sentido, é o “faxineiro” (ele mesmo se define como tal) que cuida dos casos mais cabeludos, daqueles que ninguém mais quer ou pode pegar. Por isso, ele possui uma ocupação essencial na firma de advocacia em que trabalha, mas não é sócio dela – isso seria um risco grande demais a se correr. Suas atribuições estão no limite da legalidade. Michael Clayton é o mal necessário, a amputação traumática que preservará o resto do corpo, o “agente secreto” sem carteira assinada, comprovante de pagamento ou seguro social, e que, se for capturado ou preso, estará por sua própria conta. Sua pessoa e suas atividades serão negadas pelos “contratantes”. Um James Bond do mundo corporativo. O charme de George Clooney contribui bem para essa imagem.

Apesar de tudo, Michael Clayton é um ser humano. É claro que ele não tem crise de consciência alguma em relação ao seu trabalho. Ele o abraça com a paixão desapaixonada do “homem-que-faz-o-que-é-preciso-ser-feito”. Mas possui um filho que reclama da falta de atenção do pai (como é praxe de acontecer com o perfeito profissional), um irmão policial que reclama da falta de atenção em relação à família, e outro irmão ao qual (esse sim) Michael dá uma atenção preocupada, mas mesmo assim, uma atenção “profissional”: ele se desdobre para levantar o dinheiro que pagará uma dívida do irmão “ovelha-negra” da família. Dívida que é também dele próprio: Michael Clayton é viciado em pôker. Enfim, assim a dimensão humana do personagem fica construída, com uma densidade considerável.

Apesar disso, Conduta de Risco não é um drama. É um “thriller”. E um suspense cujo tom e cuja linguagem adaptam-se muito bem ao universo retratado. O filme é exato, frio, contido, sempre zeloso da eficiência (estética, narrativa, dramática). Despojado de quaisquer elementos (sejam estilísticos, dramáticos ou narrativos) que não tenham uma ligação muito direta e profunda com a história e o efeito que ela procura provocar. E o que é melhor: é uma objetividade desinteressada. O filme trabalha com diversas questões sociais, algumas delas muito contemporâneas – como os crimes corporativos –, sem contar os limites éticos da cultura da profissionalização e da eficiência; mas sem adquirir ares alguns de filme “de tese”. Que cineastas brasileiros metidos a sociólogos aprendam. “Michael Clayton” é um filme de gênero, mas enriquecido de outras pertinências. Quem é que faz isso melhor do que os norte-americanos?

Alguém poderá objetar que o roteiro e a filmagem são muito esquematizados, calculados demais segundo as leis do gênero, sem dar abertura ao acaso e ao sem-sentido que existem na própria vida e no mundo como ele é. A fotografia é exata, a montagem é exata, e também são exatos os diálogos, a sucessão dos acontecimentos e o seu encaixe dramático-narrativo. Porém, neste caso, o “esquematismo” pode funcionar como uma função poética para expressar melhor o universo tematizado (talvez de um modo irônico até). A exatidão do filme aqui não é redutora. Pelo contrário, ela está a favor do conteúdo. Faz com que percebamos com maior gravidade a importância do que é mostrado, de uma maneira crítica, sem permitir que nossa atenção se desvie para uma catarse boba através de algum acento emocional relativo a um fato ou personagem.

O filme dá o seu recado e ponto. Nesse valor de exatidão, “Conduta de Risco” possui algumas cenas bem fortes e significativas. O homicídio de Arthur Edens (muito bem interpretado por tom Wilkinson, que concorreu a um Oscar) é mostrado com tal frieza e exatidão, que pensamos estar vendo médicos praticando uma “intervenção cirúrgica”. Aliás, os assassinos são profissionais quase inumanos, absolutamente serenos e racionais, mesmo quando as coisas saem dos trilhos. Outra cena de destaque (talvez a melhor, do ponto de vista cinematográfico) é a que mostra o depoimento de uma das vítimas da U-North (corporação criminosa), visto pelos advogados da companhia num pequeno aparelho de televisão. O depoimento da moça segue natural e tranqüilo, sem qualquer excitação emocional, quase que tímido.

Então, de repente, ouvimos (na mesma sala em que ocorre o depoimento) alguém gritar disparates, causando uma tremenda comoção em todos que estão ali. A câmera então (a que filma o depoimento) vira para o lado e pega o advogado Arthur Edens (que defendia a companhia) no meio de um “surto”, a tirar a roupa e gritar loucamente palavras de apoio à vítima. Da maneira como a vemos, parece uma cena de filme de terror, ou um daqueles vídeos absurdos que pipocam no Youtube. A cena final também possui bastante força expressiva: a câmera fica concentrada no rosto de George Clooney durante muito tempo, enquanto ele sai do prédio onde acabara de realizar o maior dos seus atos profissionais e o grande ato heróico de sua vida.

O olho da lente, que funciona aqui quase que como um cérebro, parece procurar adivinhar, ou mesmo captar os pensamentos do personagem: no começo, com uma expressão vazia e aturdida, calma e excitada ao mesmo tempo, como que não acreditando no que acabara de fazer, enquanto pega um táxi e diz ao condutor para levá-lo a qualquer lugar. Michael Clayton parece totalmente perdido dentro de si, a real (e gigantesca) dimensão da atitude que acabara de tomar ainda não lhe caiu. Finalmente, quando a ficha parece cair, ele esboça um leve sorriso. Tela negra. Fim do filme. É esse tipo de sutileza que dá graça para uma obra cinematográfica. Finalmente, parece que Michael Clayton se realizou com o seu trabalho “sujo” (porém, aqui, a sujeira foi feita com uma finalidade realmente positiva).

Finalmente ele parece ter alcançado aquele equilíbrio entre a vida pessoal e a vida profissional, tão difícil em profissionais envolvidos assim com o “grand monde”. O mesmo equilíbrio que foi perguntado àquela que tem na U-North a mesma função que Clayton em sua firma, e que será sua nêmesis, Karen Crowder (Tilda Swinton, que ganhou um Oscar pelo papel). Também é rica a cena que mostra, em montagem paralela, o ensaio que ela faz do seu discurso, em casa e em frente ao espelho, e a execução de fato desse discurso na frente da câmera de entrevista. O equilíbrio que ela atinge é falso, artificial e sem significado. Ela é apenas uma profissional, no pior sentido do termo. Faz o que lhe mandam fazer, o que é preciso fazer em busca da eficiência corporativa. Quanto a Michael Clayton, no final das contas, ele será de fato milagreiro.