segunda-feira, maio 19, 2014

Amor Pleno


Fascinação

A assinatura estética de Malick nos faz lembrar o velho debate entre o cinema “puro” e o cinema narrativo, em uma época na qual a sétima arte ainda lutava para se autoafirmar. Procurando libertar-se das perigosas influências literárias e teatrais, muitos vanguardistas defendiam um cinema feito apenas de fotogenia, de encanto visual, eliminando-se completamente os elementos de narração – ou, pelo menos, reduzindo-os ao mínimo. Abel Gance dizia que o cinema é a “música da luz”. Desse modo, a escolha e disposição das imagens na tela obedeceria não à pertinência lógica de uma estrutura narrativa (ou dissertativa, tratando-se do cinema de ideias soviético), mas à sua força sinfônica: o tom, o ritmo, a harmonia, que nascem de um caráter intrínseco às próprias imagens, de qualidade sensorial acima de tudo. A montagem cinematográfica deve ser encarada como uma composição musical.

Eis que nasce o cinema de poesia, o cinema feito a partir de analogias poéticas (pensando mais na força estético-sensorial das imagens, do que no seu conteúdo simbólico-metafórico), muito antes de Pasolini e Tarkovski. O filme enquanto “poema sinfônico de imagens” (Germaine Dulac, cineasta e teórica que também cunhou a expressão “sinfonia visual”). Nem todos os cineastas levaram a ferro e a fogo essas ideias; reservou-se espaço para uma história ou mensagem a ser transmitida, mas estas tinham que estar subordinadas ao “específico cinematográfico”: mais uma vez, o fotogênico (veja-se o épico Napoleão, realizado por Abel Gance em 1927). Um gênero particular desse cinema “musical” é o das “sinfonias urbanas”: seus grandes mestres são Dziga Vertov (O Homem com A Câmera, 1927) e Walter Ruttmann (Berlim, Sinfonia de Uma Metrópole, 1929).

Terrence Malick é um tipo raro de cineasta, pois suas fontes de inspiração não são imediatas, contrariando 99,9% dos diretores que sofrem de muito “hype” e repertório míope. Quer entender um filme como A Árvore da Vida (2011)? Vá ver filmes dos anos 1920 para trás. Poucos cinéfilos (ou críticos) terão a paciência... A conexão mais próxima com o cinema de Malick talvez seja o de Stanley Kubrick: ambos procuram resgatar um encanto primordial, a fascinação pelas imagens em movimento, um cinema que pensa – e se pensa – como os sonhos, sem restrições, sem lógica: o “cinema do diabo” (Jean Epstein). Amor Pleno (“To The Wonder”, 2012) é o último rebento nessa empreitada (sem contar a produção atualíssima do cineasta-compositor-poeta tailandês Apichatpong Weerasethakul). Sua missão é difícil: ser o filme seguinte à A Árvore da Vida, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes e é, até o momento, o projeto mais ambicioso de Malick, na estética e nos temas.

Amor Pleno, nessas circunstâncias, representa uma baixada de tom. Talvez passe à história como um filme menor na obra do diretor, sem que isso signifique perda de inspiração ou qualidade. A metafísica, as analogias entre o individual e o cósmico apenas se fazem aqui de um modo mais intimista, em uma escala menor do que no longa anterior. Se A Árvore da Vida é composição para orquestra sinfônica, Amor Pleno é para quarteto de cordas. O “wonder” do título representa o caráter paradoxal e transcendente da experiência amorosa: como seres amados, nós reconhecemos nossa plena identidade no olhar carinhoso de quem nos ama; como seres que amam, nós nos dissolvemos completamente na criatura amada para a qual nos doamos plenamente. Entre concentração (identidade) e dissolução (doação), existe um lampejo de eternidade – também presente no orgasmo – que faz com que o amor seja a (única) vitória que possuímos contra o tempo, contra a morte. Mas não passará de um lampejo; as vicissitudes do ser-estar no mundo e no tempo haverão de prevalecer.