quinta-feira, junho 28, 2007

Flight (United) 93

United 93
Acho muito interessante exercícios de “cinema comparado” (assim como existe a literatura comparada”, não?). Em alguns casos, aprende-se muito a respeito da natureza da sétima arte comparando-se a realização de duas fitas sobre um mesmo assunto, ou cotejando-se o “remake” com a obra original. Assim sendo, poderia-se ter uma ótima aula de cinema assistindo-se a dois filmes:

Vôo United 93 (“United 93”, EUA, Inglaterra, França, 2006. Dir.: Paul Greengrass)

Vôo 93 (“Flight 93”, EUA, 2006. Dir.: Peter Markle)

O primeiro é a famosa produção do diretor de Domingo Sangrento (2002) e de A Supremacia Bourne (2004). O segundo é uma produção para a TV. Assistindo a ambos, percebemos claramente os seus propósitos muito diversos, apesar de uma realização parecida em alguns aspectos (a estética 24 Horas de câmera tremida na mão e “chicotes”).

O filme de Greengrass é bem mais interessante, por razões bem simples: “United 93” preocupa-se em esmiuçar objetivamente os fatos (razão óbvia de uma película de reconstituição), sem deixar de atender (muito pelo contrário) ao lado humano da coisa, ao drama. E isto ele faz sem exagerar, explicitar ou banalizar a dose de subjetividade (não podemos dizer o mesmo de “Flight 93”). “United 93” é magnificamente equilibrado e dotado de algumas belas cenas que cantam esse equilíbrio: por exemplo, a montagem paralela, dentro do avião, entre as orações cristãs (o “pai nosso”) dos passageiros prestes a se insurgirem e as orações islâmicas dos terroristas, que já sentem que o plano não vai dar certo. Só essa cena, digna de ser exibida isoladamente, já dá assunto para muita conversa.

Já o filme de Markle cansa... É tudo muito destacado, sublinhado, colocado de maneira clara, inequívoca, afetada e definitiva. Não há a menor sutileza, não há nada nas entrelinhas, o espectador fica numa posição completamente passiva e idiota. Só resta chorar (o filme de Greengrass, por sua vez, não só faz chorar, como faz pensar e quase ter ataque do coração; é tenso, vivo e inteligente). Alguns podem justificar isso pela estética “soap opera” dos dramalhões televisivos “baseados em fatos reais”; mas a coisa é o que é. Mas eu me escuso em um ponto: “Flight 93” também faz rir... sim, nos (muitos) momentos em que os acontecimentos na “chapa quente” do avião são intercalados com planos mostrando as crianças pequenas dos passageiros, as famílias ao telefone. Entendemos o propósito do realizador com essas antíteses, mas a ênfase cansativa faz perder todo o conteúdo dramático e humano, fica meio ridículo. A arte de “United 93” honra melhor a memória dos passageiros e suas famílias do que este filme.

Outro exemplo bastante ilustrativo: a maneira enfática e afetada como “Flight 93” mostra a chegada atrasada do passageiro Mark Bingham ao portão de embarque (quase perdendo o vôo) não passa de estímulo ao fascínio mórbido do espectador. A cena nos leva a pensar: “Nossa! Ah, meu Deus! Mal sabe o coitado... Se ele tivesse perdido o avião...” Uma coisa dessas num filme de suspense ou terror de ficção até passa, mas em uma história baseada em fatos reais e recentes não acho que seja muito sadio. É esclarecedor ver como é que Paul Greengrass filma essa cena: de maneira rápida e sumária, não nos dando tempo para tecer tais reflexões.

Muitos outros pontos dos dois filmes também podem ser discutidos, mas vou parar por aqui. Assista-os e tire as suas próprias conclusões.


Flight 93

terça-feira, junho 26, 2007

Piratas do Caribe: No Fim Do Mundo


As qualidades e os defeitos de Piratas do Caribe: No Fim Do Mundo resumem-se num pequeno diálogo entre Jack Sparrow e Barbossa:
Barbossa: “The world used to be a bigger place.”
Sparrow: “The world is still the same. There´s just less in it.”

Não lembro se as palavras foram exatamente essas, nem se o interlocutor foi mesmo Barbossa. Mas o recado está dado. O que é que há de “menos” no mundo? Justamente a fantasia do filme, o espírito aventureiro e intrépido do pirata (lembremos que no filme os piratas estão ameaçados de extinção), o cavalheirismo, o charme, a coragem, a irreverência, enfim, todos os valores que fazem uma boa fita de “capa-e-espada”. A série das aventuras e desventuras do pirata Jack Sparrow e companhia oferecem tudo isso com classe e bom gosto.

Entretanto, a fala de Sparrow assinala também os limites desta terceira (e última?) parte da lucrativa franquia. O que é que há de “menos” no filme? Roteiro. Pelo menos um roteiro inspirado, que alça altos vôos narrativos sem se desestabilizar, sem perder suas penas ao longo do caminho, quanto menos cair violentamente ao chão ao invés de arquitetar um pouso suave.

A graça das personagens está toda lá, as cenas de encher os olhos também, mas a história acaba cansando na longa duração. É decepcionante, tendo em vista o trailer de fazer prender a respiração e trazer lágrimas aos olhos. Pois é no trailer que vemos já o melhor do filme: imagens de grandeza épica e fantástica absolutamente espetaculares:
- O pequeno barco chegando ao “fim do mundo”, onde o oceano inteiro desemboca numa única e infinita queda d’água; quem foi que disse que a Terra é redonda, hein? Essa imagem trabalha com questões do imaginário coletivo que até hoje podem perturbar algumas crianças, como: quando o navio desaparece no horizonte do mar, será que ele caiu da “borda” da Terra? Essa dimensão mítica é o melhor no cinema-espetáculo, nunca me cansarei de assinalar isso.
- O Pérola Negra (navio disputado por Sparrow e Barbosa) “navegando” nas dunas do deserto do reino dos mortos. Só o paradoxo dessa imagem já faz dela antológica. Pena que eu esperava que essa cena estivesse inserida num contexto mais, digamos, interessante, como, por exemplo: os piratas conduzindo o Pérola Negra através do deserto e engalfinhando-se numa batalha contra outra nau ali presente... (Por isso é que o trailer é o melhor do filme).
- A volta para o reino dos vivos, quando o mar e o céu invertem de posição, graças ao sol poente que os une; assim, o Pérola Negra deve emborcar para manter-se (logo em seguida) acima da linha d’água. Tudo isso é altamente poético, num sentido literário mesmo! Azar dos dois piratas bufões que não sacaram direito a lógica das antíteses e dos paradoxos – mas já falaremos deles. De qualquer maneira, toda essa questão da difícil e necessária jornada ao mundo dos mortos e o conseqüente – e mais difícil ainda – retorno ao plano vivente é por demais carregada de conteúdo épico (basta lembrar Homero, Virgílio e Dante, apenas para ficar nuns poucos e “menos importantes” casos), mitológico e arquetípico para ser sumária e superficialmente tratada por este filme. Faltou aí o cuidado do trabalho diligente associado à inspiração, ao talento e à pesquisa; não precisa sair nada erudito, mas do jeito como foi feito saiu bem “pobrinho”.

A batalha naval final dentro do gigantesco maelstrom dá a dimensão visual para o pesadelo do famoso conto de Edgar Allan Poe, mas carece tão terrivelmente de uma justificativa narrativa... Teria sido apenas um capricho da deusa Calipso? E para quê, já que não influenciou em nada nos rumos da batalha e na vitória do vencedor? Enfim, este é Piratas do Caribe: No Fim Do Mundo: uma antologia de imagens memoráveis, mas mal justificadas e mal encadeadas. Os diversos “sub-plots” foram resolvidos ridiculamente, e o “plot” principal não fica muito à frente. É o mesmo pecado de Homem-Aranha 3 e das seqüências de Matrix (estes, exemplos já clássicos): se quer dizer muito, se quer mostrar tudo, mas acaba-se perdendo a mão.

Para encerrar, um fato interessante: quem rouba a cena nesta franquia não é Jack Sparrow. Os verdadeiros bufões são os pobres marujos Pintel (Lee Arenberg) e Ragetti (Mackenzie Crook), piratas de quinta categoria. No início do primeiro filme (A Maldição do Pérola Negra), eles protagonizam uma cena de gratuita e chocante brutalidade – que mal condiz com o tratamento jocoso e burlesco que receberão ao longo dos três filmes – mas que já mostra o caráter “real” dos piratas históricos. Aliás, a violência bruta e cega também marca o compasso no início de No Fim do Mundo; já não se fazem mais filmes de capa-e-espada como antigamente, e digo isso me referindo ao gosto sádico e “realista” que se faz presente no cinema épico contemporâneo, arremessando-o a anos-luz de distância dos clássicos. Mas, voltando ao pirata gordinho e baixinho e ao seu companheiro caolho, magrelo e dotado de uns fumos filosóficos (isso é o mais engraçado): são eles os clowns da fita. Lembram, em muitos aspectos (inclusive nos aspectos físicos), os clowns de Star Wars: os robôs C-3PO e R2-D2, que, por sua vez, remetem aos dois bufões de A Fortaleza Escondida, de Akira Kurosawa, dos quais já tratamos neste blog.

sexta-feira, junho 15, 2007

Homem-Aranha 3


O universo de Sam Raimi é animado por uma força, uma espécie de poltergeist, que concede uma vontade fixa e cruel aos mais variados objetos materiais. Essa espécie de prosopopéia pode ser rastreada na obra do diretor até Evil Dead (1981), na magnífica cena em que raízes saem da terra para estuprar a mocinha... Em Homem-Aranha 2 (2004), a cena que mostra os tentáculos do Dr. Octopus ganhando vida e vontade próprias e massacrando os médicos que tentavam extirpá-los é digna da melhor tradição do gênero dos filmes de horror. Neste Homem-Aranha 3, a cena dos grãos e das massas de areia se juntando, organizando-se, tentando desajeitada e desesperadamente erguerem-se na forma de um homem (o Homem-Areia), e esse novo homem dando os seus primeiros passos e tropeços é de uma força cinematográfica, poética e mítica absolutamente comovente. Eis aí o novo Adão, o Adão da era nuclear (visto que a cena transcorre em uma área de testes com partículas), científica e material. Nesta nova era em que Deus está morto, o novo Adão só pode ser criado a partir da areia seca...

Sam Raimi, como bom artista ligado à tradição do horror, também é muito romântico no sentido em que coloca como tema central em seus filmes a luta do sujeito – dilacerado – contra si mesmo. Em todos os filmes da série “Evil Dead”, nós temos o protagonista Ash (Bruce Campbell) lutando ou contra partes de seu próprio corpo (a mão) ou contra um “clone” seu (em “Evil Dead 3”). Em “Homem-Aranha” (2001), é antológico o diálogo shakespeariano de Willem Defoe com o espelho. Na seqüência, temos o diálogo silencioso entre os tentáculos e o Dr. Octopus. Nesta terceira parte, há o uniforme negro, que faz Peter Parker voltar-se contra si próprio e, conseqüentemente, contra tudo o que acredita, ama e é leal.

A propósito, o EMO-ARANHA foi demais!... Nem acreditei quando vi Peter Parker, revoltadinho, assumir um visual todo “emo”, com direito até a lápis preto em torno dos olhos (!) Mas é um “emo” confiante e orgulhoso de si próprio, que caminha pelas ruas como John Travolta em “Embalos de Sábado à Noite” (1977).

Podem ver como hipocrisia, ingenuidade ou qualquer outro bicho; mas o diálogo final entre o Homem-Aranha e o Homem-Areia é uma provocante lição para os reacionários direitistas de plantão...

Mas nem tudo são flores nesta terceira e (quem sabe) última parte da franquia do “amigão da vizinhança”. O roteiro é inacreditavelmente maltratado, em comparação com os dois filmes anteriores. Parece que quiseram falar de muita coisa ao mesmo tempo, no mesmo filme. O resultado é a perda da “organicidade” da narrativa: fica tudo muito atropelado, superficial, sumário, e o que é pior, inverossímil. É duro de engolir, por exemplo, que o simbionte vai cair do céu justamente pertinho de onde Peter Parker estava, e que ele vai providencialmente pular em sua moto e assim entrar na vida do homem-aranha. O Venom é um personagem dos mais interessantes do universo dos quadrinhos. Deveria haver um filme onde apenas ele fosse o vilão, para dar conta do que ele merece. Imagine, por exemplo, todas as possibilidades temáticas da questão do simbionte em relação metafórica com o vício em drogas pesadas? Mas neste filme não há sequer sombra dessa dimensão...

A complicada relação entre Peter Parker e Harry Osbourne, que vinha recebendo altas doses de tensão e suspense nos dois filmes anteriores, teve um desenvolvimento e resolução simplesmente patéticos nesta terceira parte. Eu não discordo do fim, em si, que a coisa teve (até concordo); mas, para chegar em tal fim, a narrativa deveria ter trabalhado muito mais e mais profundamente este “plot”. De novo, fica tudo muito sumário, apressado e difícil de engolir (apesar de o filme ter quase três horas de duração). Dos vilões, apenas o Homem-Areia recebeu um tratamento interessante.

Mas, no conjunto (especialmente na parte exclusivamente cinematográfica), Sam Raimi e Peter Jackson são, atualmente, os melhores herdeiros do cinema fantástico e fascinante de Georges Méliès. O que mais podemos pedir da sétima arte?