sexta-feira, junho 15, 2007

Homem-Aranha 3


O universo de Sam Raimi é animado por uma força, uma espécie de poltergeist, que concede uma vontade fixa e cruel aos mais variados objetos materiais. Essa espécie de prosopopéia pode ser rastreada na obra do diretor até Evil Dead (1981), na magnífica cena em que raízes saem da terra para estuprar a mocinha... Em Homem-Aranha 2 (2004), a cena que mostra os tentáculos do Dr. Octopus ganhando vida e vontade próprias e massacrando os médicos que tentavam extirpá-los é digna da melhor tradição do gênero dos filmes de horror. Neste Homem-Aranha 3, a cena dos grãos e das massas de areia se juntando, organizando-se, tentando desajeitada e desesperadamente erguerem-se na forma de um homem (o Homem-Areia), e esse novo homem dando os seus primeiros passos e tropeços é de uma força cinematográfica, poética e mítica absolutamente comovente. Eis aí o novo Adão, o Adão da era nuclear (visto que a cena transcorre em uma área de testes com partículas), científica e material. Nesta nova era em que Deus está morto, o novo Adão só pode ser criado a partir da areia seca...

Sam Raimi, como bom artista ligado à tradição do horror, também é muito romântico no sentido em que coloca como tema central em seus filmes a luta do sujeito – dilacerado – contra si mesmo. Em todos os filmes da série “Evil Dead”, nós temos o protagonista Ash (Bruce Campbell) lutando ou contra partes de seu próprio corpo (a mão) ou contra um “clone” seu (em “Evil Dead 3”). Em “Homem-Aranha” (2001), é antológico o diálogo shakespeariano de Willem Defoe com o espelho. Na seqüência, temos o diálogo silencioso entre os tentáculos e o Dr. Octopus. Nesta terceira parte, há o uniforme negro, que faz Peter Parker voltar-se contra si próprio e, conseqüentemente, contra tudo o que acredita, ama e é leal.

A propósito, o EMO-ARANHA foi demais!... Nem acreditei quando vi Peter Parker, revoltadinho, assumir um visual todo “emo”, com direito até a lápis preto em torno dos olhos (!) Mas é um “emo” confiante e orgulhoso de si próprio, que caminha pelas ruas como John Travolta em “Embalos de Sábado à Noite” (1977).

Podem ver como hipocrisia, ingenuidade ou qualquer outro bicho; mas o diálogo final entre o Homem-Aranha e o Homem-Areia é uma provocante lição para os reacionários direitistas de plantão...

Mas nem tudo são flores nesta terceira e (quem sabe) última parte da franquia do “amigão da vizinhança”. O roteiro é inacreditavelmente maltratado, em comparação com os dois filmes anteriores. Parece que quiseram falar de muita coisa ao mesmo tempo, no mesmo filme. O resultado é a perda da “organicidade” da narrativa: fica tudo muito atropelado, superficial, sumário, e o que é pior, inverossímil. É duro de engolir, por exemplo, que o simbionte vai cair do céu justamente pertinho de onde Peter Parker estava, e que ele vai providencialmente pular em sua moto e assim entrar na vida do homem-aranha. O Venom é um personagem dos mais interessantes do universo dos quadrinhos. Deveria haver um filme onde apenas ele fosse o vilão, para dar conta do que ele merece. Imagine, por exemplo, todas as possibilidades temáticas da questão do simbionte em relação metafórica com o vício em drogas pesadas? Mas neste filme não há sequer sombra dessa dimensão...

A complicada relação entre Peter Parker e Harry Osbourne, que vinha recebendo altas doses de tensão e suspense nos dois filmes anteriores, teve um desenvolvimento e resolução simplesmente patéticos nesta terceira parte. Eu não discordo do fim, em si, que a coisa teve (até concordo); mas, para chegar em tal fim, a narrativa deveria ter trabalhado muito mais e mais profundamente este “plot”. De novo, fica tudo muito sumário, apressado e difícil de engolir (apesar de o filme ter quase três horas de duração). Dos vilões, apenas o Homem-Areia recebeu um tratamento interessante.

Mas, no conjunto (especialmente na parte exclusivamente cinematográfica), Sam Raimi e Peter Jackson são, atualmente, os melhores herdeiros do cinema fantástico e fascinante de Georges Méliès. O que mais podemos pedir da sétima arte?

Um comentário:

Amenar Neto disse...

-->Alguém que gostou de Homem-Aranha? Isso é o que eu chamo de raro.

Mas concordo contigo. O filme pecou muito no roteiro. Aquela correria toda prejudicou muito. Contudo, artisticamente falando, podemos notar algo relevante. Além de encantar os olhos, o filme tem a coragem de explorar uma área não desbravada nos filmes vindos de HQ's: A área dos sentimentos. Para mim, não há mérito maior.


Junto com O Cavaleiro das Trevas, o melhor filme baseado nas famosas e reinventadas histórias em quadrinhos.