domingo, agosto 28, 2011

Prisão de Cristal


O mundo do diretor espanhol Agustí Villaronga é muito perigoso para as crianças (e adolescentes), definitivamente. Seus filmes compõem uma galeria onde se exibem, semi-explicitamente, as formas mais variadas e perturbadoras de abuso infantil: violência física (surras, torturas, assassinatos a sangue frio), violência psicológica (as mentiras que os adultos contam; se, para Truffaut, o universo adulto vislumbrado pelos olhos dos infantes era o da impunidade – a gente “grande” pode fazer o que lhe der na veneta –, para Villaronga, os pais, professores e demais autoridades só sabem mentir), violência sexual (o semi-explítico a que me referi se constitui de sugestões e elipses bem calculadas; não obstante, todo o sangue e lágrimas que banham as histórias são difíceis de esquecer).

Não há pureza em longa-metragens como o mais recente e bastante premiado Pão Negro (“Pa Negre”: Espanha / França, 2010), grande vencedor dos últimos Goyas (o “Oscar” do cinema espanhol), sendo a primeira produção falada em língua catalã a receber o prêmio de melhor filme; ou O Mar (“El Mar”: Espanha, 2000), onde se testemunha crianças matando crianças – e não com os tiros de chantily de Bugsy Malone: Quando As Metralhadoras Cospem, de Alan Parker (1976). E a inocência que normalmente se atribuiria à infância esvai-se rapidamente nos choques com o Mundo, como a pequena vida dos animaizinhos igualmente maltratados: um gato em O Mar, passarinhos em Pão Negro.

Uma exceção de grau talvez se possa fazer a Moon Child (“El Niño de la Luna”: Espanha, 1989), segundo filme de Villaronga, o único com final “feliz”. Enfim, os pequenos do cineasta são sistematicamente marcados a ferro e a fogo pela guerra (a II Guerra Mundial); pelo totalitarismo (a ditadura de Franco); pela doença (o diretor tem predileção pela tuberculose, o “mal do século” dos poetas do XIX: a lenta degenerescência que provoca nos corpos, de faces macilentas e “podres por dentro”, como bem diz um menino em Pão Negro, assim como a morte apoteótica em explosões de sangue, fazem com que a clássica tísica funcione como figura contundente da poesia grotesca de Villaronga, o qual parece evocar as atmosferas sórdidas dos quadros romântico-barrocos de Francisco Goya);

e, “last but not least”, essas crianças são marcadas pelas mutilações (uma mão que se perde, a castração, um pulmão de ferro, mesmo uma tatuagem que se deixa talhar com sutil masoquismo). Nada se poupa, nada se protege, nada se salva – falamos até agora de corpos, mas sobretudo as almas se perdem: a linha entre inocência e culpa mal pode ser divisada na maioria das personagens aqui, as quais transitam de uma condição a outra, se não com desenvoltura, certamente com frequência desconcertante. É bem outro o estatuto da criança e do adolescente na Espanha fascista do cineasta. Villaronga flerta um tanto com o fantástico: reconhecemos algumas linhas expressionistas nos cenários internos de Pão Negro, além da presença do “fantasma” que habita a floresta e ataca os viajantes; Moon Child é praticamente um conto-de-fadas (macabro): mistura de Harry Potter e O Pianista (2002, Roman Polanski).

Neste ponto, poderíamos aproximá-lo da fábula realista de Guillermo del Toro, O Labirinto do Fauno (2006); mas o sadismo aqui vai além. E infinitamente além, nem se precisa dizer, do universo infantil de Spielberg: só para brincar, vamos imaginar Super 8 dirigido por Villaronga... Mas quero dar uma pouco mais de atenção ao filme de estreia do diretor, o único lançado em DVD no Brasil, em janeiro deste ano, muito discretamente: Prisão de Cristal (“Tras el Cristal”: Espanha, 1987). Trata-se da história de um médico nazista, chamado simplesmente de Klaus, que conduzia experiências (inclusive as pedófilas) com meninos, durante a guerra. O filme abre com fotografias (reais) de crianças, vivas ou mortas, nos campos de concentração; além de mostrar o desenho, feito por uma delas, de pessoas nos “chuveiros” (câmaras de gás).

Essa simples folha de papel, com o traçado vacilante feito por uma mão pequena, causa ao espectador mais comoção do que as fotos ou as cenas violentíssimas que o filme mostrará logo adiante. Pois o que está em jogo aqui é o choque entre a pureza e o sutil da imaginação pictórica de um típico desenho de criança, e a realidade torpe que este evoca. Isso assusta mais do que qualquer representação infantil de fantasmas ou monstros que costumam ser exibidas nos filmes de terror. Com a queda do III Reich, Klaus fugirá, junto com a esposa e a filha, para a Espanha de Franco – e lá será bem acolhido. No entanto, o médico dará continuidade ao seu “trabalho”, clandestinamente, até o momento em que, corroído por remorsos, pulará do alto de um prédio (ou será jogado, persiste a ambiguidade).

Paralisado do pescoço para baixo, Klaus viverá e respirará o resto dos seus dias dentro de um “pulmão de ferro” (iron lung), uma estufa-caixão pressurizado que só deixa a cabeça do paciente de fora. O ex-nazista torna-se mais cadáver do que ser vivo, mais máquina do que homem: tem grande força simbólica a cena em que sua esposa tropeça no fio, desligando da tomada a pesada engenhoca e fazendo Klaus se asfixiar de imediato, enquanto ela demora a religar o aparelho, contemplando com assombro e fascínio a agonia do marido. A mulher contrata, então, um jovem enfermeiro, Ângelo, que aparece misteriosamente por ali. Porém, o rapaz se revela uma antiga vítima de Klaus. É o início de um jogo muito ambíguo de sedução e tortura, que culminará na transformação do “pulmão de ferro” numa espécie de altar para uma missa negra, ao mesmo tempo orgástica e epifânica – e, sobretudo, sacrificial. É o último plano do filme.

Prisão de Cristal tornou-se cult logo em seu lançamento, e também despertou muita controvérsia. É um daqueles filmes de que muito se falava, mas pouco se via, tanto por causa das censuras que se sucederam (o release do DVD ostenta com orgulho que o longa fora banido da Austrália). Parece ser um caso parecido com o que se viu, nestes últimos meses, em relação àquele A Serbian Film (que eu ainda não vi). De qualquer maneira, a estreia de Villaronga ainda é o seu melhor e mais equilibrado filme – embora a concorrência de Pão Negro seja surpreendente e encorajadora. Mas o melhor argumento em defesa de Prisão de Cristal, assim como das outras obras do diretor, será que o seu discurso não é sádico. Há muito sofrimento infligido, o que se mostra ora implícita, ora explicitamente.

Mas não detectamos a mesma volúpia em filmar a violência e a morte que se vê em Lars Von Trier, por exemplo (Anticristo – 2009), ou em Gaspar Noé (Irreversível – 2002). Para uma apreciação realmente cinematográfica, isso faz toda a diferença na hora de se julgar a legitimidade de uma “censura”. Fico curioso para saber em que lado se enquadra A Serbian Film, antes de emitir qualquer opinião sobre as proibições que vem provocando – opinião que alguns dão, às vezes, muito apressadamente. Agustí Villaronga não é mais “sádico” do que Tinto Brass é “pornográfico”. O espanhol utiliza-se dos códigos da violência e do horror da mesma maneira que o mestre italiano se dispõe da sexualidade e do erotismo.

Pode-se aplicar a Prisão de Cristal o que Brass disse a respeito do seu Calígula (1979), que lhe tiraram das mãos na sala de montagem: “Eu quis fazer um filme sobre a orgia do poder, e não sobre o poder da orgia”. As películas de Villaronga são todas variações desse tema da “orgia do poder”. Pois o gozo e a morte podem ser dois lados de uma mesma moeda. Sem querer entrar numa psicanálise de porta de botequim, termino com uma citação de André Bazin:

“Lembro-me de ter escrito certa vez, a propósito de uma célebre sequência de cine-jornal em que se viam ‘espiões comunistas’ sendo executados no meio da rua, em Xangai, por oficiais de Chang Kai-Chek, lembro-me, digo, de ter observado que a obscenidade da imagem era da mesma ordem que a de uma fita pornográfica. Uma pornografia ontológica. A morte é aqui o equivalente negativo do gozo sexual, que não é por menos qualificado de pequena morte (petite morte).” À Margem de “O Erotismo no Cinema”, publicado originalmente nos Cahiers du Cinéma em abril de 1957 e reproduzido na antologia O Cinema: ensaios (ed. Brasiliense, 1991)

sexta-feira, agosto 19, 2011

Super 8


Super 8 (EUA, 2011) deixa um retrogosto incômodo. É claro que não deixa de ser uma delícia degustar sabores em cujo preparo cuidadoso reconhecemos a força de uma tradição: J. J. Abrams – diretor deste filme e produtor de Cloverfield – Monstro (2008, Matt Reeves) – revela-se discípulo aplicado do método dos primeiros blockbusters, que encontram em Steven Spielberg um dos seus principais mestres. Este, por sua vez (tanto como produtor de Super 8, quanto como diretor dos seus próprios longas), revela-se guardião da chama da narratividade clássica de Hollywood (que remonta a Griffith, o qual simplesmente inventou, em boa parte, o que chamamos hoje por “cinema”).

Veja-se que estamos trabalhando aqui num registro muito longe do exibicionismo epiléptico-tecnológico de um Michael Bay, por exemplo. Vislumbramos em Splieberg fantasmas dos velhos filmes de gênero (anos 30 e 40), o que não se repara nas produções efêmeras do iletrado diretor da franquia Transformers, cuja densidade, tanto temática quanto formal (pensando em estilos que se desenvolvem e dialogam uns com os outros dentro da história de uma arte-linguagem), é inversamente proporcional à bilheteria que arrecadam. Mas J. J. Abrams é um bom herdeiro do patrimônio de um cinema que é ilusão sim, mas sem falsidade – o paradoxo é apenas aparente.

Quero dizer que a tão falada “infantilização” que a geração de Spielberg, Lucas e Dante trouxe para o cinema entre os anos 70 e 80 parece coisa adulta e perfeitamente autoral perto dos seus equivalentes de hoje. Desse modo, Super 8 é um filme quase digno de passar em “festivais” e certamente passível de receber reflexões críticas enaltecedoras. Quanto aos “blockbusters” da turma de Bay (dentre a qual se contam Roland Emmerich, Zack Snyder e o mais infame confrade do baixo clero: Paul W. S. Anderson), o resenhista de boa vontade – por mais pia que esta seja – encontrará pouco terreno para explorar.

Mas não é somente a memória do cinema que nos faz apreciar com gosto – e dar credibilidade, principalmente – a Super 8. A memória afetiva do espectador é acionada como poucas vezes um produto “vintage” consegue fazer – e esta também se encontra ligada ao universo dos filmes. Um cinema dedicado à Mnemosine (personificação divina da memória para os antigos gregos), essa parece ser a orientação expressiva de Abrams e Spielberg. Em primeiro lugar, realiza-se o ato de lembrar um modelo romântico de produção de filmes que está na raiz da formação de J. J. Abrams e de outros cineastas que, adultos, viriam a fazer fama em Hollywood (Peter Jackson é outro).

É engraçado comparar o entusiasmo e o espírito inventivo deles (falando agora dos jovens personagens de Super 8, envolvidos na produção de seu filme caseiro) com a geração atual do Youtube: os equipamentos e meios podem ter mudado consideravelmente, mas a paixão – nos melhores casos – continua a mesma. Desse modo, Super 8 também é uma declaração de amor a um cinema feito “na raça” por essas crianças, uma forma ingênua mas muito espirituosa de cinema-brinquedo – não menos “de verdade” do que o cinema pensado e praticado por cinéfilos apaixonados de idades mais avançadas. É um filme que dá vontade de fazer filmes.

Pequeno “spoiler”: esse lirismo encontra sua maior expressividade após o final da exibição, em que vemos, junto da rolagem dos créditos finais, o “verdadeiro filme”, como se tudo o que tivéssemos acabado de presenciar não passasse de uma espécie de “making of”. É um momento muito bonito. Em segundo lugar (como parte integrante das sociedades de consumo), há a memória saudosista  de tecnologias “primitivas”, no caso, analógicas: walkman, câmeras, rolos de película (que precisavam ser revelados, o que levava tempo; o próprio Abrams declara, em entrevista, sua saudade da época em que não se via “na hora” o resultado da filmagem).

Em terceiro lugar, Super 8 é carregado da memória cinéfila das aventuras de pré-adolescentes que funcionam como verdadeiros ritos de passagem, lembrança essa que anima igualmente o espírito de J. J. Abrams e o dos espectadores (pelo menos, os de certa faixa etária). É fácil lembrar-se de ET, O Extraterrestre (1982, do próprio Spielberg) e de Conta Comigo (“Stand By Me”, 1986, de Rob Reiner). Mas o predileto deste que lhes escreve é Viagem ao Mundo dos Sonhos (“Explorers”, 1985, de Joe Dante): a estimulante ligação entre o empreendedorismo criativo das crianças e os contatos imediatos de terceiro grau é algo que aproxima bastante os dois filmes.

Pensando mais uma vez no “cinema-brinquedo”, há algo de Super 8 que emula também o pouco visto Bugsy Malone – Quando As Metralhadoras Cospem (1976, de Alan Parker). Mas enfim, eu tinha dito no começo que o filme de Abrams e Spielberg deixa um retrogosto incômodo para o paladar visual do espectador. Essa sensação é justamente aquela de “já vi este filme antes”. Que seja uma homenagem (sobretudo à memória, como analisamos), tudo bem. Mas é triste pensar no que isto pode representar da – tão comentada – crise de criatividade em Hollywood.

Para quem primeiro se apaixonou pela sétima arte vendo as cinesséries Star Wars (1977-1983), Indiana Jones (1981-1989), De Volta para O Futuro (1985-1990) e Superman (1978-1987), e crescendo junto delas, é lamentável testemunhar que as últimas franquias que criaram novos paradigmas (ou trabalharam os velhos com sabedoria, em termos de roteiros e temáticas) foram Matrix (1999-2003, e ainda olhe lá) e O Senhor dos Anéis (2001-2003), os quais despertaram, logicamente, inúmeras “influências”, uma pior do que a outra. Já não se fazem mais “blockbusters” como antigamente; os trinta anos que nos separam da era gloriosa de Spielberg e Lucas estão pesando bastante.

E os prognósticos não são nada animadores: acabo de ver, no IMDB, que Ridley Scott está finalizando mais um filme da série Alien (!) e preparando outro Blade Runner (!). É vero que James Cameron, com o seu Avatar (2009), certamente deu um fôlego de novidade para a indústria; mas, até agora, é caso isolado (abstenho-me de comentar os fiascos ou golpes publicitários que são a maioria das produções atuais em “3D”). Não obstante, falemos de J. J. Abrams. Lost (2004-2010) é genial e revolucionária, mas em relação à serialização das narrativas na TV, (por exemplo, na releitura inovadora e subversiva que faz dos códigos e estruturas de “reality shows”).

Mas o que temos dele na tela grande, até agora? Missão Impossível III (2006, o próprio título já fala por si mesmo), Cloverfield – Monstro (2008, atualização interessante do velho Godzilla) e Star Trek (2009, atualização não tão interessante). Após a “homenagem” que é Super 8, aos clássicos spielberguianos e à era de nascimento dos “blockbusters”, qual será a sua próxima ideia? Outro tributo seguro ou modernização conservadora de velhos mitos (será ele um novo Tarantino, que agora está preparando um western)? Ou será que podemos esperar que J. J. Abrams faça pelo cinema o que já fez pela TV?

sábado, agosto 13, 2011

A Árvore da Vida


“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.” Clarice Lispector, A Hora da Estrela

As palavras da nossa Clarice dão a justa métrica para o lirismo cósmico de Terrence Malick, que atinge o estado máximo de decantação em A Árvore da Vida (“The Tree of Life”, EUA, 2011). Os quatro longas anteriores do diretor, que perfazem uma obra bastante enxuta – iniciada com o “anti-Bonnie e Clyde” Terra de Ninguém (“Badlands”), lá nos idos de 1973 –, ainda buscavam aninhar-se entre a narração e a expressão poética. Mas a gestação da Árvore da Vida já se podia entrever na sutil transformação de um recurso incondicionalmente usado pelo cineasta em todos os filmes: a voz em “off” das personagens. Em sua estreia e na fita subsequente – a pequena tragédia de amor proletário Dias de Paraíso (“Days of Heaven”, 1978) –, ouve-se a voz do protagonista narrando a história e, ao mesmo tempo, destilando suas impressões, inquietações e demais sentimentos despertados por ela.

Já em Além da Linha Vermelha (“The Thin Red Line”, 1998), o melhor filme de guerra desde Apocalipse Now (1979, Francis Ford Coppola), e em O Novo Mundo (“The New World”, 2005), onde os velhos mitos nacionalistas da fundação encontram uma reverberância arquetípica, o discurso dos protagonistas abandona o compromisso de explicitar a linearidade dos fatos em complemento às imagens. Sobra a fala lírica, purificada e potencializada ao máximo, numa exclusiva e delirante digressão – o velho “daydream” que abastece a alma e a pena dos poetas. Desse modo, a sintaxe da construção fílmica (realizada através da montagem) e a sintaxe da construção frasal (nas vozes das personagens) crescem lado a lado, independentes mas familiarizadas, como duas imponentes árvores cujas raízes se tocam abaixo do solo e cujos galhos, em algum ponto das alturas, hão de se entrelaçar.

Pois o discurso das imagens de Malick, profundamente evocatórias, assim como as palavras do coração das personagens, buscam ambos a inquirição do Verbo: a vontade divina, o sentido da natureza, a possível ação – ou reação – do homem. A Árvore da Vida chega ao ápice dessa modalidade de pensamento e de expressão. Todos os elementos de narratividade encontram-se reduzidos ao mínimo, mas dizer apenas que se trata de narrativa “não-linear”, ou “fragmentada”, só revelaria uma pobreza de vocabulário crítico. Sabe-se que há uma família, composta por pai (Brad Pitt), mãe e três meninos. Sabe-se que esse pai é carinhoso, preocupado, mas extremamente disciplinador, o que irá marcar gravemente o filho mais velho, que, no futuro (onde ele será encarnado por Sean Penn), ainda irá se debater contra algumas memórias traumáticas da infância.

E sabe-se também, principalmente, que o filho do meio morrerá aos 19 anos de idade, fato que será duramente assimilado por todos e que há de disparar as memórias e reflexões do menino mais velho já tornado homem, disparando ao mesmo tempo o andamento do próprio filme. Porém, não se depreende tudo isso a partir de um encadeamento lógico-causal de imagens postas em “narração”. Estas vão se sucedendo de acordo com a sua própria significação afetiva (para Jack, o primogênito), assim como obedecem à – busca de – significação cósmica empreendida por Malick. Dessa maneira, cada sequência, cada cena e cada plano deste filme extraem energia apenas de si mesmos. E sua organização se dará menos por uma coesão sintático-racional, e muito mais pelas analogias poético-afetivas que têm o dom de provocar, segundo o potencial que essas mesmas imagens carregam. A Árvore da Vida é menos prosa e mais poesia.

O tempo. O tempo da alma e o tempo do universo não são redutíveis ao tempo cronológico. O filme de Malick é pleno de elipses, algumas inversões e, principalmente, misturas entre tempos. Falar em “flashbacks” seria outra pobreza crítica. A história da família O’Brien (cujos nomes e sobrenome mal aparecem dentro do filme – mas estão nos créditos finais; a construção dramática parece se dar mais pelas grandes categorias míticas de Pai, Mãe, Filho, Irmão: o que também revela a ambição universalizante do diretor) é composta, em sua maior parte, por cenas de um determinado momento da segunda infância dos três meninos. Essas cenas não são situadas, cronologicamente, umas em relação às outras (a mera sucessão delas na tela não é o bastante para nos fazer dizer que uma aconteceu “depois” da outra, ainda mais tendo em vista que todas são rememorações do Jack adulto, e sabemos que o tempo psíquico e o tempo do vivido são de outra categoria).

E tais cenas são situadas de modo muito solto em relação a outros tempos evocados pelo filme: os nascimentos dos meninos, o momento da morte do irmão do meio, o momento “presente” do Jack que se lembra de tudo e – agora vai – os incríveis momentos de criação do universo, nascimento do planeta Terra, surgimento e desenvolvimento da vida (incluindo o período dos dinossauros e a queda do asteroide que os dizimou); por fim, passando muito além do momento dos O’Brien, Malick nos mostra a futura e inevitável morte da Terra. São imagens alucinatórias, acompanhadas do mais sublime da música clássica (Mozart, Bach, Brams, Mahler, que também modulam muitas das cenas da família), na grandiloquência de um cinema sensorial que não se via desde Kubrick (2001, Uma Odisseia no Espaço – 1968). É neste ponto que recorremos ao lirismo de Clarice Lispector.

No final – grande transcendência, grande comunhão – vemos o encontro escatológico de todos os tempos, de todas as idades... Há uma expressão norte-americana, normalmente usada num sentido pejorativo (direcionada àqueles que se refestelam em seu ego inflamado e se esfalfam em ambições desmedidas), que pode ser aplicada ao cineasta: “Terrence Malick is larger than life” (Terrence Malick é maior do que a vida). Mas aqui, o ego e a ambição são da medida dos poetas metafísicos do século XVII. É uma tentação fácil chamar Malick de romântico, principalmente pelo seu encanto em relação à natureza e pelas personagens dotadas de uma subjetividade “larger than life”. Mas o diretor não é romântico, porque não é escapista; e também porque sua natureza e os dramas que ele ativa não são antropocêntricos. Nestes pontos, Herzog seria bem romântico.

Lars Von Trier também é romântico: sua Melancolia (que perdeu a palma de ouro em Cannes para Malick e estreou nas salas brasileiras semana passada) apresenta conteúdos metafísicos aparentemente comparáveis ao da Árvore da Vida. Mas só aparentemente. O drama em Melancolia é por demais humano, nada mais do que humano. Na verdade, menos do que humana, a inquietação ali é sobretudo individual. A dimensão cósmica é acionada por Von Trier apenas para potencializar os efeitos da subjetividade. E só. A grandeza das imagens é meramente alegórica. Não acreditamos tanto – ontologicamente falando – na Terra vista do espaço por Von Trier, quanto na mesma Terra vista do espaço por Malick. Daí um cinema de egotismo, praticado pelo primeiro. Tanto quanto os escritos dos poetas ultrarromânticos do XIX. Sob outro ponto de vista, pode-se dizer que Von Trier é produto da era da psicanálise.

Enquanto Malick, por sua vez, remete-nos à vidência dos primitivos xamãs, verdadeiros poetas-profetas da era da inocência da consciência humana, porta-vozes da natureza e guardiães do seu segredo. Ao invés de transferir ao objeto a sua dor – ato de consciência do poeta moderno, ou de inconsciência do neurótico não menos moderno –, ele assume para si a dor do objeto, transfigurando-se no objeto – ato de (in)consciência do profeta. O drama da Árvore da Vida é o drama de todas as coisas, de todas as criaturas. Isto fica evidente numa das mais belas e significativas cenas do filme – mas que pode passar facilmente despercebida pela maioria dos espectadores: vemos um jovem dinossauro dormindo à beira de um riacho, quando um outro réptil (maior do que ele) chega sorrateiramente, observa-o e pisa violentamente em seu rosto; o animal acorda. Qualquer espectador da era do cinema, acostumado às fábulas da Disney, enxergará na expressão da “presa” o medo e o pedido de misericórdia.

Do outro lado, aqueles acostumados a um cinema como o de Von Trier, por exemplo, já vão esperar com ansiedade nervosa pelo momento em que o “predador” irá abocanhar e rasgar a garganta do pequeno. Pois bem. Eis que o dinossauro maior, então, após olhar por uns instantes (com expressão logicamente indefinida), vai embora, prosseguindo em seu caminho sem maior ou menor pressa do que quando chegou. Eu diria que esta cena é a mais dramática de todo o filme (mais até do que aquela em que se vê o pai pular ao pescoço do filho do meio, cego de ódio por uma “malcriação” deste). Mas insisto na qualidade ontológica das imagens de Malick (em todos os seus filmes): a tensão entre os dois dinossauros não é mera alegoria – a qual reduziria o valor intrínseco da própria cena e dos seus “personagens” em função de outras cenas e personagens que seriam seus referentes (estes, sim, dignos de reflexão).

Terrence Malick deseja expressar o drama daqueles animais com toda a denotação que estiver ao seu alcance. Alguém poderia dizer que isto é impossível, pois só ao construir o sintagma “drama daqueles animais”, já está pressuposto o olhar antropomorfizante. Porém, o diretor não é filósofo; é artista. E como tal, o efeito que busca em suas analogias é aquele que ponha em pé de igualdade semântica ambos os elementos da associação, já que, em sua sensibilidade e intuição propriamente artísticas, ele identifica a vida dos dinossauros com a vida dos homens. E a vida, em si, é um conceito muito mais amplo e indiferenciável do que pode parecer num primeiro momento. Assim, não é o universo que passa por antropomorfização no cinema de Malick; mas o homem e as coisas humanas que passam por uma transfiguração, uma transcendência cosmomorfizante. A dimensão das inquietações e investigações aqui afasta qualquer sombra de romantismo e concede à Árvore da Vida um brilho verdadeiramente barroco.

Um cineasta tipicamente romântico preocupar-se-ia, por exemplo, com a violência que um determinado indivíduo sofre em um mundo que não o compreende (é o que faz Von Trier em Melancolia). Um cineasta barroco, por sua vez, lamentaria a Violência: sua ideia mais abstrata ao lado de todas (ou quaisquer que sejam) as suas manifestações. Dessa maneira, A Árvore da Vida não mostra um pai, mas a Paternidade; não mostra as relações entre irmãos, mas a Fraternidade; não mostra a perda de um ente querido, mas a Perda. E todas essas grandes categorias são figurativizadas e distribuídas no espaço da tela com a devida solenidade – mas sem pesar a mão como faz um Von Trier. Os filmes de Malick são profundamente cerimoniais. E sobretudo, poéticos.

Por fim, cabe dizer (contrariando certa crítica) que A Árvore da Vida não é ensaístico, pois não retira sua força maior de ideias ou conceitos (ainda que estes possam ser depreendidos do filme), que seriam mais ou menos ilustrados pelas imagens da película, subordinadas a eles. Na verdade, são as imagens que detêm o grande e primordial poder aqui, que estão no núcleo de interesse temático e estético do filme, por sua própria beleza e pela experiência de vida que reconstituem e procurarm fazer reverberar no peito de cada espectador (às vezes, de uma maneira quase sinestésica: quando o menino abraça o pai, em primeiro plano, sentimos quase o cheiro dos corpos, na intimidade do contato). Portanto, Terrence Malick não fez um “ensaio sobre a existência humana” (como o fez, para citar uma última vez, o autor de Melancolia); e sim, um poema sobre a existência (que comporta muito mais formas do que a humana).