O cineasta japonês Kon Ichikawa (1915-2008) não goza da mesma fama e reputação internacionais que Yasujiro Ozu, Kenji Mizoguchi ou Akira Kurosawa – o grande triunvirato do império do sol nascente. Sua obra é volumosa (89 longa-metragens), mas frequentemente considerada desigual pela crítica. No entanto, em meio a diversos projetos comerciais sem maior consistência, destacam-se algumas realizações mais autorais: A Harpa da Birmânia (“Biruma No Tategoto”, 1956), Fogo na Planície (“Nobi”, 1959), Estranha Obsessão (“Kagi”, 1959), A Vingança de Um Ator (“Yukinojô Henge”, 1963) e As Olimpíadas de Tóquio (“Tôkyô Orimpikku”, 1964). Os temas são incrivelmente variados: II Guerra Mundial (os dois primeiros), drama psicológico (“Kagi”), thriller de vingança (“Yukinojô Henge”) e um documentário (“Tôkyô Orimpikku”).
A Harpa da Birmânia (também traduzida como “Não Deixarei Os Mortos”), considerada a obra-prima do diretor e que acaba de ser lançada por aqui em DVD, é um manifesto solene e didático contra a guerra, inspirado por valores budistas. Ao mesmo tempo, o filme se faz de intenso melodrama, derramado de sentimentalismo. A história se inicia com uma companhia em retirada, no final da II Guerra. Isolados em território birmanês, tudo o que os soldados querem é ultrapassar as suas fronteiras e chegar à Tailândia. Dentre eles, há um jovem tocador de harpa (Mizushima), cheio de vida, que constantemente anima e consola os companheiros, os quais cantam em coro. Porém, logo são cercados por forças britânicas, às quais se rendem sem oferecer maior resistência, pois acaba de chegar a notícia do armistício. O grupo, então, é levado para um campo de prisioneiros, junto de outros militares nipônicos igualmente capturados.
Lá, os oficiais aliados informam de uma companhia que ainda luta, engastada numa montanha de difícil acesso. Pedem que algum japonês vá até o local e avise os combatentes de que a guerra acabou, antes que se decida por um bombardeio generalizado à região. Mizushima, com a sua harpa, será o encarregado de tal missão. O foco do filme está centrado no sofrimento individual dos jovens soldados nipônicos. Até aí, tudo bem. Toda guerra é um trauma que afeta corações e mentes de quaisquer partes em conflito. Esse olhar, digamos, humanista contra o belicismo é perfeitamente legítimo. O problema é que Ichikawa ignora, absolutamente, a dimensão mais coletiva e, principalmente, política do confronto. Não há qualquer referência aos motivos de o Japão estar em guerra, muito menos às atrocidades cometidas pelas forças nipônicas, o que traria contexto e mesmo consistência ao drama dos soldados.
Veja-se, como exemplo, o clássico Nada de Novo no Front (“All Quiet on The Western Front”, 1930), de Lewis Milestone. Também se choram, ali, os corpos e almas juvenis (de soldados alemães) destruídos pelos horrores da guerra. Mas não se deixa de mostrar a igualmente horrorosa educação para a barbárie que se praticava nas escolas germânicas antes da I Guerra Mundial. Não se trata de distribuir títulos de inocência para uns e de culpa para outros, dizendo “Quem mandou querer dar uma de imperialista? Bem-feito!”, mas de enxergar o tecido histórico mais de perto e reconhecer algumas possíveis relações entre os fatos. Não é o caso de defender, com isso, um cinema em que as particularidades individuais se diluam na massa político-ideológica (como faz Eisenstein).
Mas não parece muito sábio, por outro lado, trabalhar os dramas dos sujeitos às expensas das contextualizações que podem nos fazer entender, de fato, esses mesmos dramas (pois eles não são, logicamente, fruto da vontade caprichosa dos deuses, nem de algo tão vago quanto a “guerra” – como se esta fosse uma fatalidade cósmica). É neste ponto que o filme de Ichikawa deixa a desejar; ainda que, repito, a sua mensagem “humanista” seja muito bela e justa. A Harpa da Birmânia não deixa de nos fazer lembrar do que será O Franco-Atirador (“The Deer Hunter”, 1978), de Michael Cimino, no qual se parece esquecer que as desgraças dos veteranos da Guerra do Vietnã está tão ou mais ligada à política internacional do governo dos EUA nos anos 60, do que ao sadismo dos vietcongues pura e simplesmente.
De qualquer maneira, quanto à mise en scène, Kon Ichikawa realizou um filme bastante equilibrado, com aquele ritmo cadenciado e um rigor pictórico na composição de planos, típicos do cinema nipônico clássico – porém, menos impressionantes do que em Ozu, Mizoguchi ou Kurosawa. Em contraposição, A Vingança de Um Ator é mais estiloso e mais prenhe das inclinações artísticas do diretor (que começou sua carreira em animação, nos anos 30). Ichikawa voltaria ao tema da II Guerra em Fogo na Planície, num registro menos romântico e mais naturalista, com cenas polêmicas de canibalismo e outras barbaridades (a crítica norte-americana Pauline Kael o considerava dentre os 10 melhores filmes de todos os tempos). Em 1985, o cineasta refilmaria A Harpa da Birmânia.
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