sexta-feira, agosto 19, 2011

Super 8


Super 8 (EUA, 2011) deixa um retrogosto incômodo. É claro que não deixa de ser uma delícia degustar sabores em cujo preparo cuidadoso reconhecemos a força de uma tradição: J. J. Abrams – diretor deste filme e produtor de Cloverfield – Monstro (2008, Matt Reeves) – revela-se discípulo aplicado do método dos primeiros blockbusters, que encontram em Steven Spielberg um dos seus principais mestres. Este, por sua vez (tanto como produtor de Super 8, quanto como diretor dos seus próprios longas), revela-se guardião da chama da narratividade clássica de Hollywood (que remonta a Griffith, o qual simplesmente inventou, em boa parte, o que chamamos hoje por “cinema”).

Veja-se que estamos trabalhando aqui num registro muito longe do exibicionismo epiléptico-tecnológico de um Michael Bay, por exemplo. Vislumbramos em Splieberg fantasmas dos velhos filmes de gênero (anos 30 e 40), o que não se repara nas produções efêmeras do iletrado diretor da franquia Transformers, cuja densidade, tanto temática quanto formal (pensando em estilos que se desenvolvem e dialogam uns com os outros dentro da história de uma arte-linguagem), é inversamente proporcional à bilheteria que arrecadam. Mas J. J. Abrams é um bom herdeiro do patrimônio de um cinema que é ilusão sim, mas sem falsidade – o paradoxo é apenas aparente.

Quero dizer que a tão falada “infantilização” que a geração de Spielberg, Lucas e Dante trouxe para o cinema entre os anos 70 e 80 parece coisa adulta e perfeitamente autoral perto dos seus equivalentes de hoje. Desse modo, Super 8 é um filme quase digno de passar em “festivais” e certamente passível de receber reflexões críticas enaltecedoras. Quanto aos “blockbusters” da turma de Bay (dentre a qual se contam Roland Emmerich, Zack Snyder e o mais infame confrade do baixo clero: Paul W. S. Anderson), o resenhista de boa vontade – por mais pia que esta seja – encontrará pouco terreno para explorar.

Mas não é somente a memória do cinema que nos faz apreciar com gosto – e dar credibilidade, principalmente – a Super 8. A memória afetiva do espectador é acionada como poucas vezes um produto “vintage” consegue fazer – e esta também se encontra ligada ao universo dos filmes. Um cinema dedicado à Mnemosine (personificação divina da memória para os antigos gregos), essa parece ser a orientação expressiva de Abrams e Spielberg. Em primeiro lugar, realiza-se o ato de lembrar um modelo romântico de produção de filmes que está na raiz da formação de J. J. Abrams e de outros cineastas que, adultos, viriam a fazer fama em Hollywood (Peter Jackson é outro).

É engraçado comparar o entusiasmo e o espírito inventivo deles (falando agora dos jovens personagens de Super 8, envolvidos na produção de seu filme caseiro) com a geração atual do Youtube: os equipamentos e meios podem ter mudado consideravelmente, mas a paixão – nos melhores casos – continua a mesma. Desse modo, Super 8 também é uma declaração de amor a um cinema feito “na raça” por essas crianças, uma forma ingênua mas muito espirituosa de cinema-brinquedo – não menos “de verdade” do que o cinema pensado e praticado por cinéfilos apaixonados de idades mais avançadas. É um filme que dá vontade de fazer filmes.

Pequeno “spoiler”: esse lirismo encontra sua maior expressividade após o final da exibição, em que vemos, junto da rolagem dos créditos finais, o “verdadeiro filme”, como se tudo o que tivéssemos acabado de presenciar não passasse de uma espécie de “making of”. É um momento muito bonito. Em segundo lugar (como parte integrante das sociedades de consumo), há a memória saudosista  de tecnologias “primitivas”, no caso, analógicas: walkman, câmeras, rolos de película (que precisavam ser revelados, o que levava tempo; o próprio Abrams declara, em entrevista, sua saudade da época em que não se via “na hora” o resultado da filmagem).

Em terceiro lugar, Super 8 é carregado da memória cinéfila das aventuras de pré-adolescentes que funcionam como verdadeiros ritos de passagem, lembrança essa que anima igualmente o espírito de J. J. Abrams e o dos espectadores (pelo menos, os de certa faixa etária). É fácil lembrar-se de ET, O Extraterrestre (1982, do próprio Spielberg) e de Conta Comigo (“Stand By Me”, 1986, de Rob Reiner). Mas o predileto deste que lhes escreve é Viagem ao Mundo dos Sonhos (“Explorers”, 1985, de Joe Dante): a estimulante ligação entre o empreendedorismo criativo das crianças e os contatos imediatos de terceiro grau é algo que aproxima bastante os dois filmes.

Pensando mais uma vez no “cinema-brinquedo”, há algo de Super 8 que emula também o pouco visto Bugsy Malone – Quando As Metralhadoras Cospem (1976, de Alan Parker). Mas enfim, eu tinha dito no começo que o filme de Abrams e Spielberg deixa um retrogosto incômodo para o paladar visual do espectador. Essa sensação é justamente aquela de “já vi este filme antes”. Que seja uma homenagem (sobretudo à memória, como analisamos), tudo bem. Mas é triste pensar no que isto pode representar da – tão comentada – crise de criatividade em Hollywood.

Para quem primeiro se apaixonou pela sétima arte vendo as cinesséries Star Wars (1977-1983), Indiana Jones (1981-1989), De Volta para O Futuro (1985-1990) e Superman (1978-1987), e crescendo junto delas, é lamentável testemunhar que as últimas franquias que criaram novos paradigmas (ou trabalharam os velhos com sabedoria, em termos de roteiros e temáticas) foram Matrix (1999-2003, e ainda olhe lá) e O Senhor dos Anéis (2001-2003), os quais despertaram, logicamente, inúmeras “influências”, uma pior do que a outra. Já não se fazem mais “blockbusters” como antigamente; os trinta anos que nos separam da era gloriosa de Spielberg e Lucas estão pesando bastante.

E os prognósticos não são nada animadores: acabo de ver, no IMDB, que Ridley Scott está finalizando mais um filme da série Alien (!) e preparando outro Blade Runner (!). É vero que James Cameron, com o seu Avatar (2009), certamente deu um fôlego de novidade para a indústria; mas, até agora, é caso isolado (abstenho-me de comentar os fiascos ou golpes publicitários que são a maioria das produções atuais em “3D”). Não obstante, falemos de J. J. Abrams. Lost (2004-2010) é genial e revolucionária, mas em relação à serialização das narrativas na TV, (por exemplo, na releitura inovadora e subversiva que faz dos códigos e estruturas de “reality shows”).

Mas o que temos dele na tela grande, até agora? Missão Impossível III (2006, o próprio título já fala por si mesmo), Cloverfield – Monstro (2008, atualização interessante do velho Godzilla) e Star Trek (2009, atualização não tão interessante). Após a “homenagem” que é Super 8, aos clássicos spielberguianos e à era de nascimento dos “blockbusters”, qual será a sua próxima ideia? Outro tributo seguro ou modernização conservadora de velhos mitos (será ele um novo Tarantino, que agora está preparando um western)? Ou será que podemos esperar que J. J. Abrams faça pelo cinema o que já fez pela TV?

3 comentários:

Fábio Rockenbach disse...

Joseph Campbell comentava, seguidamente, acerca do número limitado de histórias existentes e reinventadas em cada cultura. O mérito do contador de histórias está em pegar o tema básico e cercá-lo de tamanho grau de inventividade - sem deixar de a todo momento lembrar o tema - que as imagens criadas pelo público sempre o assombrariam. Clichês não são um problema - é quase obrigatório eles se repetirem de tempos em tempos - se forem bem narrados e abraçados. No caso do cinema, são as mesmas imagens, que nós recebemos prontas, mas assumimos, abraçamos e recordamos. Me parece que as histórias, se são as mesmas de antes - e serão as mesmas de amanhã - carecem da inventividade no tratamento e no fechamento das narrativas (o que será feito a partir do tema principal, que diferencia as boas histórias). Pior, ainda, e não sei se é nostalgia pura ou realidade, é que parece faltar autenticidade nas incursões. O velho e neglicenciado sentimento.
Talvez fôssemos jovens demais e tudo parecesse mágico, mas visto hoje, com olhos mais velhos, os blockbusters de antigamente tinham mais sentimento.

André Renato disse...

Falaste tudo, camarada! Campbell é uma das minhas principais referências teóricas (pra quase tudo na vida - e, através, dele, C. G. Jung). O questionamento é muito válido: Spielberg ainda mantém um sentimento, uma humanidade da qual Abrams é um bom aprendiz; mas, definitivamente, não é algo que se vê em Transformers, Piratas do Caribe, etc (à exceção, talvez, dos desenhos da Pixar). Essa dialética de tradição e inventividade das narrativas míticas envolve a constante e necessária atualização do mito. Lembro-me de Campbell dizer que, quando um mito para de se atualizar, ele morre. E, para Jung, quando esquecemos os mitos (que são figurações dos arquétipos), adoecemos psiquicamente, como indivíduos e como sociedade - é a perigosa dissociação psíquica...

Magarefe disse...

"... a tão falada “infantilização” que a geração de Spielberg, Lucas e Dante trouxe para o cinema entre os anos 70 e 80 parece coisa adulta e perfeitamente autoral perto dos seus equivalentes de hoje."

Bingo.