“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.” Clarice Lispector, A Hora da Estrela
As palavras da nossa Clarice dão a justa métrica para o lirismo cósmico de Terrence Malick, que atinge o estado máximo de decantação em A Árvore da Vida (“The Tree of Life”, EUA, 2011). Os quatro longas anteriores do diretor, que perfazem uma obra bastante enxuta – iniciada com o “anti-Bonnie e Clyde” Terra de Ninguém (“Badlands”), lá nos idos de 1973 –, ainda buscavam aninhar-se entre a narração e a expressão poética. Mas a gestação da Árvore da Vida já se podia entrever na sutil transformação de um recurso incondicionalmente usado pelo cineasta em todos os filmes: a voz em “off” das personagens. Em sua estreia e na fita subsequente – a pequena tragédia de amor proletário Dias de Paraíso (“Days of Heaven”, 1978) –, ouve-se a voz do protagonista narrando a história e, ao mesmo tempo, destilando suas impressões, inquietações e demais sentimentos despertados por ela.
Já em Além da Linha Vermelha (“The Thin Red Line”, 1998), o melhor filme de guerra desde Apocalipse Now (1979, Francis Ford Coppola), e em O Novo Mundo (“The New World”, 2005), onde os velhos mitos nacionalistas da fundação encontram uma reverberância arquetípica, o discurso dos protagonistas abandona o compromisso de explicitar a linearidade dos fatos em complemento às imagens. Sobra a fala lírica, purificada e potencializada ao máximo, numa exclusiva e delirante digressão – o velho “daydream” que abastece a alma e a pena dos poetas. Desse modo, a sintaxe da construção fílmica (realizada através da montagem) e a sintaxe da construção frasal (nas vozes das personagens) crescem lado a lado, independentes mas familiarizadas, como duas imponentes árvores cujas raízes se tocam abaixo do solo e cujos galhos, em algum ponto das alturas, hão de se entrelaçar.
Pois o discurso das imagens de Malick, profundamente evocatórias, assim como as palavras do coração das personagens, buscam ambos a inquirição do Verbo: a vontade divina, o sentido da natureza, a possível ação – ou reação – do homem. A Árvore da Vida chega ao ápice dessa modalidade de pensamento e de expressão. Todos os elementos de narratividade encontram-se reduzidos ao mínimo, mas dizer apenas que se trata de narrativa “não-linear”, ou “fragmentada”, só revelaria uma pobreza de vocabulário crítico. Sabe-se que há uma família, composta por pai (Brad Pitt), mãe e três meninos. Sabe-se que esse pai é carinhoso, preocupado, mas extremamente disciplinador, o que irá marcar gravemente o filho mais velho, que, no futuro (onde ele será encarnado por Sean Penn), ainda irá se debater contra algumas memórias traumáticas da infância.
E sabe-se também, principalmente, que o filho do meio morrerá aos 19 anos de idade, fato que será duramente assimilado por todos e que há de disparar as memórias e reflexões do menino mais velho já tornado homem, disparando ao mesmo tempo o andamento do próprio filme. Porém, não se depreende tudo isso a partir de um encadeamento lógico-causal de imagens postas em “narração”. Estas vão se sucedendo de acordo com a sua própria significação afetiva (para Jack, o primogênito), assim como obedecem à – busca de – significação cósmica empreendida por Malick. Dessa maneira, cada sequência, cada cena e cada plano deste filme extraem energia apenas de si mesmos. E sua organização se dará menos por uma coesão sintático-racional, e muito mais pelas analogias poético-afetivas que têm o dom de provocar, segundo o potencial que essas mesmas imagens carregam. A Árvore da Vida é menos prosa e mais poesia.
O tempo. O tempo da alma e o tempo do universo não são redutíveis ao tempo cronológico. O filme de Malick é pleno de elipses, algumas inversões e, principalmente, misturas entre tempos. Falar em “flashbacks” seria outra pobreza crítica. A história da família O’Brien (cujos nomes e sobrenome mal aparecem dentro do filme – mas estão nos créditos finais; a construção dramática parece se dar mais pelas grandes categorias míticas de Pai, Mãe, Filho, Irmão: o que também revela a ambição universalizante do diretor) é composta, em sua maior parte, por cenas de um determinado momento da segunda infância dos três meninos. Essas cenas não são situadas, cronologicamente, umas em relação às outras (a mera sucessão delas na tela não é o bastante para nos fazer dizer que uma aconteceu “depois” da outra, ainda mais tendo em vista que todas são rememorações do Jack adulto, e sabemos que o tempo psíquico e o tempo do vivido são de outra categoria).
E tais cenas são situadas de modo muito solto em relação a outros tempos evocados pelo filme: os nascimentos dos meninos, o momento da morte do irmão do meio, o momento “presente” do Jack que se lembra de tudo e – agora vai – os incríveis momentos de criação do universo, nascimento do planeta Terra, surgimento e desenvolvimento da vida (incluindo o período dos dinossauros e a queda do asteroide que os dizimou); por fim, passando muito além do momento dos O’Brien, Malick nos mostra a futura e inevitável morte da Terra. São imagens alucinatórias, acompanhadas do mais sublime da música clássica (Mozart, Bach, Brams, Mahler, que também modulam muitas das cenas da família), na grandiloquência de um cinema sensorial que não se via desde Kubrick (2001, Uma Odisseia no Espaço – 1968). É neste ponto que recorremos ao lirismo de Clarice Lispector.
No final – grande transcendência, grande comunhão – vemos o encontro escatológico de todos os tempos, de todas as idades... Há uma expressão norte-americana, normalmente usada num sentido pejorativo (direcionada àqueles que se refestelam em seu ego inflamado e se esfalfam em ambições desmedidas), que pode ser aplicada ao cineasta: “Terrence Malick is larger than life” (Terrence Malick é maior do que a vida). Mas aqui, o ego e a ambição são da medida dos poetas metafísicos do século XVII. É uma tentação fácil chamar Malick de romântico, principalmente pelo seu encanto em relação à natureza e pelas personagens dotadas de uma subjetividade “larger than life”. Mas o diretor não é romântico, porque não é escapista; e também porque sua natureza e os dramas que ele ativa não são antropocêntricos. Nestes pontos, Herzog seria bem romântico.
Lars Von Trier também é romântico: sua Melancolia (que perdeu a palma de ouro em Cannes para Malick e estreou nas salas brasileiras semana passada) apresenta conteúdos metafísicos aparentemente comparáveis ao da Árvore da Vida. Mas só aparentemente. O drama em Melancolia é por demais humano, nada mais do que humano. Na verdade, menos do que humana, a inquietação ali é sobretudo individual. A dimensão cósmica é acionada por Von Trier apenas para potencializar os efeitos da subjetividade. E só. A grandeza das imagens é meramente alegórica. Não acreditamos tanto – ontologicamente falando – na Terra vista do espaço por Von Trier, quanto na mesma Terra vista do espaço por Malick. Daí um cinema de egotismo, praticado pelo primeiro. Tanto quanto os escritos dos poetas ultrarromânticos do XIX. Sob outro ponto de vista, pode-se dizer que Von Trier é produto da era da psicanálise.
Enquanto Malick, por sua vez, remete-nos à vidência dos primitivos xamãs, verdadeiros poetas-profetas da era da inocência da consciência humana, porta-vozes da natureza e guardiães do seu segredo. Ao invés de transferir ao objeto a sua dor – ato de consciência do poeta moderno, ou de inconsciência do neurótico não menos moderno –, ele assume para si a dor do objeto, transfigurando-se no objeto – ato de (in)consciência do profeta. O drama da Árvore da Vida é o drama de todas as coisas, de todas as criaturas. Isto fica evidente numa das mais belas e significativas cenas do filme – mas que pode passar facilmente despercebida pela maioria dos espectadores: vemos um jovem dinossauro dormindo à beira de um riacho, quando um outro réptil (maior do que ele) chega sorrateiramente, observa-o e pisa violentamente em seu rosto; o animal acorda. Qualquer espectador da era do cinema, acostumado às fábulas da Disney, enxergará na expressão da “presa” o medo e o pedido de misericórdia.
Do outro lado, aqueles acostumados a um cinema como o de Von Trier, por exemplo, já vão esperar com ansiedade nervosa pelo momento em que o “predador” irá abocanhar e rasgar a garganta do pequeno. Pois bem. Eis que o dinossauro maior, então, após olhar por uns instantes (com expressão logicamente indefinida), vai embora, prosseguindo em seu caminho sem maior ou menor pressa do que quando chegou. Eu diria que esta cena é a mais dramática de todo o filme (mais até do que aquela em que se vê o pai pular ao pescoço do filho do meio, cego de ódio por uma “malcriação” deste). Mas insisto na qualidade ontológica das imagens de Malick (em todos os seus filmes): a tensão entre os dois dinossauros não é mera alegoria – a qual reduziria o valor intrínseco da própria cena e dos seus “personagens” em função de outras cenas e personagens que seriam seus referentes (estes, sim, dignos de reflexão).
Terrence Malick deseja expressar o drama daqueles animais com toda a denotação que estiver ao seu alcance. Alguém poderia dizer que isto é impossível, pois só ao construir o sintagma “drama daqueles animais”, já está pressuposto o olhar antropomorfizante. Porém, o diretor não é filósofo; é artista. E como tal, o efeito que busca em suas analogias é aquele que ponha em pé de igualdade semântica ambos os elementos da associação, já que, em sua sensibilidade e intuição propriamente artísticas, ele identifica a vida dos dinossauros com a vida dos homens. E a vida, em si, é um conceito muito mais amplo e indiferenciável do que pode parecer num primeiro momento. Assim, não é o universo que passa por antropomorfização no cinema de Malick; mas o homem e as coisas humanas que passam por uma transfiguração, uma transcendência cosmomorfizante. A dimensão das inquietações e investigações aqui afasta qualquer sombra de romantismo e concede à Árvore da Vida um brilho verdadeiramente barroco.
Um cineasta tipicamente romântico preocupar-se-ia, por exemplo, com a violência que um determinado indivíduo sofre em um mundo que não o compreende (é o que faz Von Trier em Melancolia). Um cineasta barroco, por sua vez, lamentaria a Violência: sua ideia mais abstrata ao lado de todas (ou quaisquer que sejam) as suas manifestações. Dessa maneira, A Árvore da Vida não mostra um pai, mas a Paternidade; não mostra as relações entre irmãos, mas a Fraternidade; não mostra a perda de um ente querido, mas a Perda. E todas essas grandes categorias são figurativizadas e distribuídas no espaço da tela com a devida solenidade – mas sem pesar a mão como faz um Von Trier. Os filmes de Malick são profundamente cerimoniais. E sobretudo, poéticos.
Por fim, cabe dizer (contrariando certa crítica) que A Árvore da Vida não é ensaístico, pois não retira sua força maior de ideias ou conceitos (ainda que estes possam ser depreendidos do filme), que seriam mais ou menos ilustrados pelas imagens da película, subordinadas a eles. Na verdade, são as imagens que detêm o grande e primordial poder aqui, que estão no núcleo de interesse temático e estético do filme, por sua própria beleza e pela experiência de vida que reconstituem e procurarm fazer reverberar no peito de cada espectador (às vezes, de uma maneira quase sinestésica: quando o menino abraça o pai, em primeiro plano, sentimos quase o cheiro dos corpos, na intimidade do contato). Portanto, Terrence Malick não fez um “ensaio sobre a existência humana” (como o fez, para citar uma última vez, o autor de Melancolia); e sim, um poema sobre a existência (que comporta muito mais formas do que a humana).
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