segunda-feira, maio 31, 2010

O Escritor Fantasma


A força expressiva do cinema de Polanski revela-se em pequenos detalhes. Melhor dizendo: em pequenos gestos. Quem poderá esquecer o plano final de O Bebê de Rosemary (“Rosemary’s Baby”, 1968), no qual vemos a resignada Mia Farrow balançar maternalmente o berço do anti-messias? Um filme como O Pianista (“The Pianist”, 2002) – em nossa opinião, uma das obras-primas máximas do diretor e que colocaríamos facilmente dentre os melhores da década passada – é repleto de mínimas façanhas sub-épicas que caracterizam, num misto paradoxal de cinismo e condescendência, a pobre resistência do herói polanskiano frente a um mundo que está muito, muito além do escopo de poder das suas frágeis decisões.

Lembramos particularmente dois momentos exemplares desse grande e significativo filme: 1. a cena que mostra o personagem de Adrien Brody, nos escombros de uma cidade absolutamente devastada pela guerra, tentando abrir desastradamente uma última lata de alimento em conserva, a qual escorregará de suas miseráveis mãos e rolará até aos pés de um surpreso oficial nazista – tudo mostrado por um belo movimento de câmera; 2. o início do filme (momento em que sua alma se revela), que apresentará o protagonista (o mesmo Brody) se recusando a parar de tocar o seu piano nos estúdios da rádio de Varsóvia, sob o barulho cada vez mais próximo das bombas que anunciam a invasão germânica.

O Escritor Fantasma (“The Ghost Writer”, França / Alemanha / Reino Unido: 2010) não terá certamente o quilate das duas películas acima citadas; mas revelará, mesmo assim, algo da maestria do seu autor. Um plano que expressa muito da simbologia do filme é aquele que mostra o pobre jardineiro varrendo e tentando juntar inutilmente sobre uma carriola as folhas de uma vegetação rasteira inevitavelmente arrastadas pelo vento constante. Isto se passa sob os olhos irreverentes do “escritor fantasma” (o inominado personagem interpretado por Ewan McGregor), contratado para pôr em narrativa literária a vida de um ex-primeiro ministro britânico, Adam Lang (Pierce Brosnan).

Isolado na abjeta e friorenta ilha habitada pelo político, cuja atmosfera se casa bem com o clima psicológico ali reinante, o jovem escritor logo descobrirá que não será tão fácil juntar as folhas que compõem a trajetória pessoal e política do seu cliente, pois ventos escarninhos mostrarão que foi contratado para fazer um trabalho de Sísifo. E assim como ocorre com o herói da mitologia grega, a astúcia do escritor fantasma (em descobrir a “verdade”) será punida como uma afronta intolerável à potência inquestionável dos deuses. No caso, as “divindades” caprichosas da geopolítica contemporânea: Lang está sendo acusado, por seus adversários políticos, de ter cometido crimes contra a humanidade, na “guerra ao terror”.

Em paralelo com a cena do jardineiro, o plano final do filme também escarnecerá do trabalho do pobre mortal, com outras folhas espalhadas num jogo entre o que é mostrado na tela e o hors champ (o fora-de-campo) cuja beleza e significado não se via há tempos no cinema. Pode-se dizer que o filme inteiro vale por esse único plano. Se O Pianista revela a sua arte de modo sublime e epifânico logo na primeira cena, O Escritor Fantasma a revelará na última. Assim, a pergunta que se coloca é: qual o limite na causalidade dos atos e escolhas de um único indivíduo, uma vez colocado perante forças e estruturas mais poderosas do que ele?

O trabalho inútil. Inútil por ser a construção e consolidação de uma farsa, uma encenação sem efeitos modificadores sobre o que chamamos de realidade. O trabalho do personagem de McGregor, tanto aquele para o qual ele foi contratado (a biografia do político de acordo com os interesses do próprio: “imprima-se a lenda”) quanto o que deseja realizar efetivamente (desmascarar a persona e revelar ao mundo quem o sujeito é intrinsecamente), não deixa nunca de ser mesmo o de um fantasma, em mais de um sentido. Ele pode assombrar, pode provocar alguns sustos, algumas sugestões, mas não influirá na história propriamente dita e acabará exorcizado.

O filme todo se passa sob uma sensação de incômodo. A profissão de “ghost writer” já traz um incômodo para o próprio personagem: “You’re not a proper writer” (Você não é um escritor propriamente dito), diz a ele a mulher do seu cliente. O trabalho de McGregor é indigno e deve ser levado a cabo sob o manto da invisibilidade; sua tarefa é a de uma engenhosa trapaça com vistas a compensar a falta de “dotes” literários daquele que pretende lançar uma autobiografia. Como ele mesmo diz, não é conveniente que escritores-fantasmas apareçam em noites de autógrafos, é como se o noivo levasse a amante para a festa de casamento. O incômodo se traduz em vergonha, em constrangimento, em (falso) pudor.

O incômodo também se manifesta na estranheza com que o inominado vai penetrando gradativamente na ilha, na casa, na vida política, na vida matrimonial (!), em todo o universo do ex-primeiro ministro. É neste ponto que começa a prometeica “afronta aos deuses”: o inominado deixa de ser um fantasma-testemunha para se envolver de corpo e alma no cenário e na história. E ele sabe que está rompendo como que uma regra, e sabe também os riscos que corre; diz ele à secretária do político, em determinado momento, que não gosta de dormir na casa do cliente, pois isso quebra o distanciamento necessário para que a tarefa do escritor-fantasma seja efetiva.

É dessa tensão entre o familiar e o estranho, entre o corpo presente e o fantasma, entre o mito e o histórico, entre a mentira e a verdade, entre o herói “mortal” e as potências “divinas”, que o filme retira a sua força narrativa e expressiva. O interessante é que, aqui, não há qualquer metafísica, ligando-se O Escritor Fantasma mais a Chinatown (1974) do que a O Inquilino (“The Tenant”, 1976), O Nono Portal (“The Ninth Gate”, 1999) e o já citado Bebê de Rosemary. Temos uma farsa política com uma atmosfera que sugere, mas bem de leve (o que, no fundo, é muito mais assustador), algo de fantástico: a cena de abertura, que mostra um carro desocupado dentro de uma balsa, atrapalhando o desembarque dos demais, já vai criando tal estranhamento.

E a câmera de Polanski, fixada no automóvel, atribui a ele um quê de coisa morta, de cadáver a ser retirado da cena do crime. Ao longo do filme, entenderemos a extrema importância diegética desse veículo, coerente com a primeira cena tanto em sentido denotativo quanto no simbólico. Lembramo-nos de Dante: aqueles que ultrapassam o portal do inferno devem deixar para trás toda esperança (A Divina Comédia). Ironia: eis um efeito que o merchandising pago pela BMW certamente deixou de calcular. Essa questão do “portal” é própria aos filmes de Polanski (indo além dos títulos): temos neles indivíduos que ultrapassam temerariamente limites bem estabelecidos, a partir dos quais não há mais volta.

Contribui muito para a personificação do automóvel as suas próprias características antropomórficas – principalmente os faróis / olhos (coisa já muito bem explorada por John Carpenter em Christine – 1982). Neste aspecto, outro momento de O Escritor Fantasma muito próprio do seu fantástico “materialista” (não confundir com o gênero do “realismo mágico”) é um diálogo entre McGregor e o adversário de Lang. Este diz que a conversa está sendo gravada e, para confirmar, vira-se para o seu capanga que responde, dentro de um carro, apenas com um piscar de faróis. A cena é noturna e o espectador não vê o sujeito dentro do veículo. Assim, para todos os efeitos, é literalmente o carro quem responde.

Uma cena simples e de grande sabedoria cinematográfica, trazendo interessantes efeitos cômicos e estéticos. Finalmente, neste filme Roman Polanski retoma e atualiza a discussão sobre o duplo, que já era elemento central em O Inquilino. Ali, o pobre arquivista (interpretado pelo próprio diretor) viverá a contragosto os passos da jovem que ocupara o apartamento para o qual ele acaba de se mudar e que tivera uma morte misteriosa. Aqui, o inominado tomará o serviço, o automóvel e o quarto do escritor-fantasma que havia sido originalmente contratado e que morrera também em circunstâncias misteriosas; as roupas dele ainda se encontram no armário (assim como vemos em “The Tenant”). Sem contar o duplo “Inominado” / Adam Lang. Esperamos que este não seja o último filme de Polanski.

quarta-feira, maio 19, 2010

O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus


“Foi no ano de 1913 que decidi tentar o passo decisivo – no dia 12 de dezembro. Sentado em meu escritório, considerei mais uma vez os temores que sentia, depois me abandonei à queda. O solo pareceu ceder a meus pés e fui como que precipitado numa profundidade obscura. Não pude evitar um sentimento de pânico. Mas, de repente, sem que ainda tivesse atingido uma grande profundidade, encontrei-me – com grande alívio – de pé, numa massa mole e viscosa. A escuridão era quase total; pouco a pouco meus olhos se habituaram a ela, que parecia um crepúsculo sombrio. Diante de mim estava a entrada de uma caverna obscura; um anão ali permanecia de pé. Parecia feito de couro, como se estivesse mumificado. Tive que me esgueirar, quase roçando nele, a fim de entrar pela passagem estreita e fui patinando, a água gelada alcançando-me os joelhos, até o outro lado da caverna. Percebi então que numa saliência da rocha cintilava um cristal vermelho. Ergui a pedra e embaixo havia um espaço vazio. A princípio nada distingui nele; depois percebi, no fundo, um curso d’água. Passou um cadáver flutuando na corrente: era um adolescente de cabelos louros, ferido na cabeça. Seguiu-o um enorme escaravelho negro e então surgiu, do fundo das águas, um rubro sol nascente. Ofuscado pela luz, tentei repor a pedra no orifício, mas nesse momento um líquido fez pressão e escoou através da brecha. Era sangue! Um jato espesso jorrou e senti náusea. Tive impressão de que isto se prolongou intolerantemente. Afinal o jato de sangue estancou, terminando a visão.” (JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p.214-215)

O trecho acima reproduzido é um devaneio (daydream) do Dr. Jung, criador das teorias dos arquétipos e do inconsciente coletivo, que emolduram a psicologia analítica. Mostra o que o sujeito pode descobrir quando mergulha livre dentro de si mesmo; e livre principalmente de todas as amarras racionais / conscientes. O cinema de Terry Gilliam parece animado e bem disposto à prática constante desse mesmo “esporte”. O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus (“The Imaginarium of Dr. Parnassus”, Reino Unido / Canadá / França, 2009) é mais um exemplo, inserido dentro de uma linha de trabalho na qual assomam Brasil – O Filme (“Brazil”, 1985), As Aventuras do Barão de Munchausen (“The Adventures of Baron Munchausen”, 1988) e Contraponto (“Tideland”, 2005).

Todos esses filmes estruturam suas narrativas em torno da configuração visual das fantasias mais íntimas dos seus personagens. E todos eles se debatem nos limites entre a sanidade e a sua perda total – também podemos citar o caso de Medo e Delírio em Las Vegas (“Fear and Loathing in Las Vegas”, 1998), apesar de a “loucura” aqui estar mais associada à influência de drogas alucinógenas. A mise-en-scène, por sua vez, procura dar uma expressão verdadeiramente suntuosa ao incoerente universo interior desses loucos / iluminados – a direção de arte nos filmes de Gilliam é toda de um exuberante barroco, e o que vemos em Dr. Parnassus não é diferente.

Os cenários que concretizam o abstrato das almas: neste ponto, poderíamos conectar Gilliam à tradição expressionista – especialmente se pensarmos em O Gabinete do Dr. Caligari (1919, dir.: Robert Wiene) –, não fosse o fato de que as distorções e desproporções num filme como o que estamos discutindo não se estilizam segundo as convenções da estética em questão. A arquitetura e a decoração nos filmes do diretor são de um aspecto único, numa espécie de colagem nonsense que ainda hoje lembra as peculiares aberturas da série Monty Phyton Flying Circus (1969-1974), assinadas por ele (Gilliam também atuou no famoso grupo).

Algumas das paisagens da alma que vemos em Dr. Parnassus lembram os relevos surrealistas de um Dali ou de um Magritte – em relação a este último, destacam-se o paradoxal, o ilógico, o – mais uma vez – “nonsense” desses espaços. Neste ponto, o mais interessante do surrealismo de Gilliam é que este se (su)rrealiza atingindo os seus melhores efeitos quando não são usados efeitos especiais, quando a construção da imagem se faz exclusivamente com os cenários materiais e a câmera (olho) que capta a própria realidade intrigante deles. Nisto, o surreal é mais sugerido do que representado, ainda mais levando-se em conta a atmosfera geral da cena – ou do filme inteiro.

E tal forma de surreal deixa as suas marcas não apenas nas imagens que retratam o espaço subjetivo do personagem, mas no espaço propriamente exterior, no espaço físico do mundo que o rodeia, espaço este que se torna, assim, (quase) tão intrigante quanto o outro. Tomemos como ilustração os planos, logo no começo do filme, que mostram a curiosa carruagem-casa da trupe do Dr. Parnassus abrindo espaço por entre edifícios e automóveis de uma Londres pós-moderna até estacionar em frente à saída de uma casa noturna, onde se encenará mais um espetáculo fantástico do imaginarium. É a aproximação de elementos díspares – todos, em princípio, inquestionavelmente reais – que garante a força e o surreal dessa cena.

Encontramos esse procedimento em praticamente todos os filmes de Gilliam: basta lembrar as luzes, cartazes e decorações de ambientes na Las Vegas de Medo e Delírio, que já constituem por si sós fortes estímulos psicodélicos; ou os pantagruélicos e inexplicáveis encanamentos e tubulações que “ornam” o salão de um restaurante fino em Brazil; ou ainda a não menos pantagruélica e exuberante cabeça caída de um cavalo-estátua debaixo da qual se abriga uma família da cidade sitiada nas Aventuras do Barão... Há algo de cômico em todas essas imagens (a irreverência típica dos surrealistas filtrada pelo Monty Phyton?), para o qual também contribui a lente grande-angular – marca registrada do discurso fílmico de Gilliam.

De qualquer maneira, tal colagem entre objetos de campos semânticos distantes faz parte dos princípios da própria vanguarda surrealista, como atestam os escritos de André Breton, inspirados pelos do poeta Pierre Reverdy, que citamos em primeiro lugar (ambos os trechos foram retirados de MOURA, Murilo Marcondes de. Murilo Mendes – a poesia como totalidade. São Paulo: Edusp, 1995. p.19-21):

“A imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer de uma comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos distantes.
Quanto mais as relações das duas realidades aproximadas forem longínquas e justas, mais a imagem será forte – mais ela terá poder emotivo e realidade poética.” (L’Image, em Plupart du temps, Paris, Flammarion, 1967, pp.409-410)


Para os surrealistas, essa aproximação deveria ser empreendida de modo inconsciente – a livre e arbitrária associação. Diz Breton, o pai do movimento:

“É da aproximação, de alguma maneira fortuita, de dois termos que brota uma luz particular, luz da imagem, à qual nos mostramos infinitamente sensíveis.
O valor da imagem depende da beleza da faísca obtida; ela é, conseqüentemente, função da diferença de potencial entre os dois condutores.” (Manifestes du Surréalisme, Paris, Gallimard, 1981, p.51).


Esta “faísca”, em Gilliam, produz quase explosões nucleares. Esta “faísca” incendeia o real, incendeia nossa percepção cotidiana e automatizada do real. O insólito aqui nos ensina a enxergar as coisas de maneira mais poética, tal como o fazem as crianças e os velhos, os loucos e os mendigos, os artistas mambembes, os vagabundos e os viciados que formam a fauna humana típica em todos os filmes do cineasta e que são justamente a parcela “não-produtiva” da sociedade da razão e do capital. O tema da encenação e do fingimento também perpassam a obra de Terry Gilliam (nisto, o teatral em Dr. Parnassus remete diretamente ao do Barão de Munchausen).

Mas, para o diretor, a encenação não está somente no trabalho dos atores; Gilliam os dirige tanto quanto parece dirigir o próprio cenário. Promovendo a criação de imagens surrealistas nos padrões que discutimos, ele põe os próprios objetos a encenarem seus “papéis”. Sabotando a configuração habitual das coisas e das paisagens (exteriores e interiores), modificando suas relações práticas umas com as outras, o cineasta consegue efeitos que nos lembram (mas um pouco longe) a genial mise-en-scène de Jacques Tati – especialmente as de Meu Tio (“Mon Oncle”, 1958) e Trafic (1971). Além do filme de que estamos tratando, isso acontece também em O Pescador de Ilusões (“The Fischer King”, 1991).

“The Imaginarium of Dr. Parnassus” acompanha as andanças de uma pequena e semi-miserável trupe formada pelo “Dr.” ancião (manifestação do arquétipo junguiano do “velho sábio”?), interpretado por Christopher Plummer, sua filha adolescente e dois atores / escudeiros (um deles é Verne Troyer, o conhecido “mini-me” da série Austin Powers). Na carruagem / palco / trailer do grupo está um espelho que, uma vez atravessado, conduz o (in)feliz aventureiro às sendas mais profundas do inconsciente – extremamente imaginativo – do Dr. e também aos fundos da alma do próprio “viajante”. Mais uma vez, Terry Gilliam parece dialogar com a literatura de Lewis Carroll, no caso a Alice Através do Espelho (a primeira referência ao escritor britânico encontra-se em Tideland, que cita copiosamente a Alice no País das Maravilhas).

O Dr. Parnassus parece querer ajudar quem mergulha “dentro” dele (e de si mesmo) a melhor conduzir o seu processo de individuação (Jung); sendo originariamente um “monge”, o Dr. parece confirmar-se no papel do velho sábio. Mas ele tem um antagonista. Chamado de o próprio “diabo”, trata-se de um cavalheiro meio dandi vivido pelo envolvente Tom Waits. Ambos se enfrentam numa disputa por “almas”, organizada através de sucessivas apostas. Logicamente, o “diabo” não é o mal; a configuração que o personagem ganha no filme faz-nos pensar nele mais como a expressão de um outro arquétipo, também fundamental: a sombra.

A “sombra” é a parcela mais obscura e teriomórfica da psique humana: seja nas formas de um diabo tentador ou de Darth Vader, é o “lado negro da força” que forma um conjunto dialético com o lado “luminoso”. Ambos precisam estar em equilíbrio, sabendo dialogar entre si, para a saúde mental do sujeito. E Dr. Parnassus mostra bem essa relação de quase amizade, de interdependência entre o ancião e seu “oponente”. Terry Gilliam dá uma dimensão cósmica – passando pela social – a esse embate psíquico. É interessante pensar que o “diabo”, que já aparece em seus trajes finos de cavalheiro vitoriano mesmo nos tempos ancestrais em que contata pela primeira vez o Dr. Parnassus, representa o princípio de invenção, de modernização, de mudança: nisto, o qualificativo de Lúcifer é para ele mais do que adequado.

Contudo, sabemos que, num processo por demais apegado a esses instintos “rebeldes”, a memória pode acabar sendo deixada de lado. É aí que entra o Dr., como seu guardião, zelando pelas narrativas que não podem se interromper, pois elas “sustentam” o universo. Desse modo, temos o embate entre o arcaico e o moderno; entre o intuitivo e o racional; entre a conservação e a invenção; entre o encanto e o desencanto; entre o mágico e o material. Já nas Aventuras do Barão de Munchausen, passadas no acadêmico século XVIII, Gilliam se munia de todo o nonsense do Monty Phyton para corroer sarcasticamente os fundamentos – digamos, fetichistas – da cultura da razão Iluminista.

Em Os Irmãos Grimm (2005), teremos mais uma vez a brava resistência do mito e do arquétipo contra a insegura prepotência de uma ciência e uma tecnologia gauches. Assim, o conteúdo moral mais profundo das fábulas de Terry Gilliam desenha alguns laços com aquelas de Guillermo Del Toro: O Labirinto do Fauno (“El Laberinto Del Fauno”, 2006) e os dois Hellboy (2004 e 2008); com as de Peter Jackson: O Senhor dos Anéis (“The Lord of The Rings”, 2001-2003); e mesmo com as de Tim Burton (excetuando-se, infelizmente, o último Alice). E não podemos nos esquecer do já clássico A História Sem Fim (“The NeverEnding Story”, 1984, dir.: Wolfgang Petersen).

É preciso chamar mais uma vez C. G. Jung, num trecho cujo tom de lamento emana da leitura mesmo a mais “científica” – mas que poderia bem ser tomado como manifesto pelos cineastas acima arrolados:

“A iconoclastia da Reforma abriu literalmente uma fenda na muralha protetora das imagens sagradas e desde então elas vêm desmoronando umas após as outras. Tornaram-se precárias por colidirem com a razão desperta. Além do mais, muito antes seu significado já fora esquecido. Terá sido realmente um esquecimento? Ou, no fundo, o homem jamais soube o que significavam, e só recentemente a humanidade protestante percebeu que não temos a menor idéia do que quer dizer o nascimento virginal, a divindade de Cristo, e as complexidades da Trindade? Até parece que essas imagens simplesmente surgiam e eram aceitas sem questionamento, sem reflexão, tal como as pessoas enfeitam as árvores de Natal e escondem ovos de Páscoa, sem saberem o que tais costumes significam. O fato é que as imagens arquetípicas têm um sentido a priori tão profundo que nunca questionamos seu sentido real. Por isso os deuses morrem, porque de repente descobrimos que eles nada significam, que foram feitos pela mão do homem, de madeira ou pedra, puras inutilidades. Na verdade, o homem apenas descobriu que até então jamais havia pensado acerca de suas imagens. E quando começa a pensar sobre elas, recorre ao que se chama “razão”; no fundo, porém, essa razão nada mais é do que seus preconceitos e miopias.” (JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p.24)

Parece que a grande batalha de nossos dias não se reduz apenas àquela entre sistemas político-econômicos. Os princípios opostos que nos dividem e dilaceram organizam-se em zonas mais primevas do ser e são constantemente atualizados, digamos, “historicizados” – mas a oposição fundamental permanece a mesma. No fundo, é a mesma disputa que se tem também no Cinema: de um lado, o cinema discurso, o cinema construção (Eisenstein), o cinema ficção, o cinema magia (Méliès), o cinema opaco; de outro, o cinema ontológico (Bazin e o neorrealismo), o cinema do real (irmãos Lumière), o cinema documentário, o cinema transparente. O cinema-ídolo (a decupagem clássica de Hollywood) e o cinema iconoclasta (Godard).

Mas há ainda um último elemento merecedor de reflexão em Dr. Parnassus, que é a peculiar participação de Heath Ledger. Foram muito felizes as modificações que se fizeram no roteiro e que permitiram que o filme fosse finalizado mesmo com a morte de um dos seus atores principais. Tais modificações garantiram a imprescindível coerência da história e ainda contribuíram para um maior aprofundamento das questões morais / psicológicas / filosóficas do filme. Claro que é complicado simplesmente falar em coerência tendo em vista o surrealismo nonsense de Terry Gilliam; não obstante, trata-se aqui mais de uma coerência interna ao próprio universo diegético, a qual ajuda sobremaneira no maior desenvolvimento da fabulação.

O personagem de Ledger é um playboy sem memória (para o qual, mais uma vez, o Dr. “sacerdote” de Mnemosine exercerá o seu papel de velho sábio) que trará um elemento de desestabilização, mas de necessária reflexão e renovação para o grupo de Parnassus. Mais uma vez (a outra foi como o “Joker” em O Cavaleiro das Trevas – 2008), Ledger desempenha o papel arquetípico do Tricster (o malandro, a força desestabilizadora do instinto, da natureza selvagem e arbitrária). Seus atos e palavras são ambíguos e ambíguos são os efeitos que produz para a trupe: positivos e negativos a um só tempo. A fantasia que usa como personagem na encenação do imaginarium é justamente a do bobo-da-corte, justamente a do “joker”.

Mais do que tudo, ele mente, ele engana, prega peças: neste ponto, dentro da expressão do Tricster, o folclore do “joker” encontra-se com o mito de Loki, o deus mascarado da trapaça (mitologia nórdica). Não é à toa que, durante a representação teatral do Dr. Parnassus, ele usa sempre uma máscara de bufão; já quando atravessa o “espelho”, seu rosto muda – e é precisamente aí que entram Johnny Depp, Jude Law e Colin Farrell para substituir o colega morto, em homenagem comovente que não se procura disfarçar (principalmente na cena de Depp). O remendo de um acontecimento trágico torna o conjunto da obra ainda mais artístico e paradoxalmente mais coerente do que se Ledger tivesse logrado finalizar sua participação. Fantástico.

sábado, maio 08, 2010

Revisão de Avatar


Avatar possui o valor de um manifesto. O manifesto de um novo cinema, de uma nova experiência de cinema. O discurso do filme argumenta o tempo todo em favor da renovação técnica / estética que propõe. Argumentos que já são exemplos de aplicação, organizados (tomando-se o sentido mais próprio do radical, que é o mesmo de “organismo”) nas relações sutis (metafóricas) entre os elementos formais (o estilo, mas também o próprio suporte) e os de conteúdo (roteiro, ideologia).

A primeira imagem do filme é uma tomada aérea sobre a selva de Pandora – num movimento veloz e levemente descendente, enquanto a voz em “off” de Jake Sully (o protagonista) nos conta dos seus sonhos de “voar”, constantes durante o período em que estava preso a uma cama de hospital, convalescendo do evento que lhe tiraria o movimento das pernas (Jake é um fuzileiro naval).

Vendo-se o filme em 3D (tudo o que falaremos aqui tem como pressuposto tal modo de exibição), esse primeiríssimo plano produz no espectador uma vertigem que já anuncia, sem maiores preparativos, a quase violência da experiência quase física que James Cameron nos apresenta. Levando-se em conta a voz em “off”, não há dúvida alguma de que o plano em questão se trata de um “câmera subjetiva”.

Com isso, faz valer logo de início o princípio mais elementar da arte, da ciência e da indústria hollywoodianas: a identificação entre espectador e personagem. Soberbamente exibindo já todo o poder da tecnologia inventada para este filme, Cameron nos faz sentir – mais do que simplesmente ver – o mesmo que nosso herói. Somos nós que voamos, com a trilha sonora das palavras de devaneio de Jake Sully.

Assim como ele, nossos movimentos propriamente físicos encontram-se reduzidos: enquanto o personagem encontra-se paraplégico, o espectador – com o perdão da má comparação – numa sala de cinema dispõe menos do movimento das pernas do que dos braços (todos conhecemos muito bem esse desconforto). Dessa maneira, a cama de hospital, a cadeira de rodas, o “caixão” – através do qual a consciência de Jake será transferida para o corpo do avatar – e a poltrona na sala escura são figurações de uma mesma condição.

Trata-se da imobilidade do corpo que permitirá à alma perceber e vivenciar uma hiper-realidade. Como espírito desencarnado, Jake Sully ocupa momentaneamente (e no final, definitivamente) o corpo do avatar, vestindo-se dos seus sentidos (principalmente o tato e a visão) da mesma maneira que nós ocupamos o corpo dele e também o do avatar. A “catch phrase” do casal Jake-Neytiri tem um significado fundamental no jogo: “I see you” (eu vejo você) é uma confirmação da verdade da percepção visual e da realidade do objeto presente.

É o cinema em 3D argumentando que não se trata somente de uma simulação, mas da eliminação da ausência, da distância intransponível em qualquer forma de representação. É evidente que o 3D não torna presente, em si, o objeto; mas, para todos os efeitos (que são justamente os sensoriais / perceptivos – os que mais interessam), a coisa está sim colocada à nossa disposição. Só falta acrescentar: “I touch you”.

Avatar realiza particularmente bem a vocação da sala de cinema para “caverna de Platão”. Tal associação foi primeiro estabelecida pelo teórico Jean-Louis Baudry, pioneiro em estudar o dispositivo cinematográfico (cunhando o próprio termo, que se refere ao conjunto dos elementos materiais envolvidos na produção, circulação e recepção de filmes). Reproduzo algumas palavras do autor, explicadas por Jacques Aumont:

“Baudry constata que o dispositivo cinematográfico determina um estado regressivo artificial, acompanhado do que chama “uma relação recobrindo a realidade” (ausência de delimitação do corpo, que parece fundir-se no mundo diegético, na imagem): ‘O aparelho de simulação consiste [...] em transformar uma percepção em uma quase-alucinação, dotada de um efeito de real incomparável ao que é trazido pela simples percepção’. Baudry ressalta a parte de nostalgia própria a esse dispositivo, que se especifica em várias direções: regressão narcisista, assimilação ao sonho, mas também retorno a um passado mítico, no caso, o mito platônico da caverna. No ‘Le Dispositif’, Baudry traça assim um longo paralelo entre a situação do espectador de filme e a dos escravos acorrentados da parábola de Platão, condenados a verem da realidade apenas as sombras projetadas na parede diante deles.” (“A Imagem”. 14ª ed. São Paulo: Papirus, 2009. p.189)

“Ausência de delimitação do corpo, que parece fundir-se no mundo diegético”; “quase-alucinação”; “assimilação ao sonho”; “retorno a um passado mítico”; palavras que podem ser muito, muito facilmente aplicadas a Avatar, que parece investir nessas características do dispositivo-cinema mais e além de qualquer outra produção jamais realizada. Não é pequena ou gratuita a ambição de James Cameron.

Fiquemos com as maiores evidências: 1. a “assimilação ao sonho” já se produz na primeira imagem do filme, nas primeiras palavras ditas, conforme analisamos. O onírico (as proporções gigantescas de tudo em Pandora, suas cores vivas e talvez a própria textura da luz e das imagens em computação gráfica) é uma das maiores forças, ontológicas, fenomenológicas ou estéticas, de Avatar.

E o sonho, em sua expressão de arquétipos / símbolos, nos conduz invariavelmente ao: 2. o “retorno ao passado mítico”, que se faz presente na “era de ouro” em que vivem os Na’Vi’s, numa perfeita comunhão idílica com a natureza-mãe (E’nya), uma natureza mítica, dotada de poder e vontade numinosos. Agora, o fato não tão arrebatador é que essa “realidade” é sugerida ao espectador pelo método “caverna platônica”.

Sonhos de voar: não é à toa que a mise-en-scène de Avatar privilegie espaços elevados e o próprio espaço “aéreo”. Mais do que esses, as cenas de ação mais tensas do filme parecem tomar lugar nas bordas, nas beiras de precipícios e de quedas de variada ordem. Outra argumentação do 3D em sua própria defesa e busca de legitimidade: James Cameron parece procurar deixar o próprio espectador constantemente na iminência da queda, no perigo indescritível de se cair – ou dar um passo – além do limite que separa o solo do vazio.

Esse tenso contraste entre o apego confortável a um chão e o arremesso para o ar infinitamente desproporcional também é uma fonte na qual o filme nutre boa parte de sua filosofia e estética perceptivo-sensoriais. No limite, o medo que o espectador sente de ser lançado ao vazio é o medo de que o cinema realize total e irremediavelmente a “ausência de delimitação do corpo”.

A ideia é: se emprestarmos nosso corpo para se fundir à imagem diegética, quem garante que ele nos será devolvido? A “quase-alucinação” do dispositivo-Avatar (sim, pois este filme concentra em si todo um Cinema) produzirá, para o melhor e para o pior, efeitos similares aos de drogas alucinógenas: incluindo, naturalmente, a “bad trip”. E talvez, até mesmo o “flashback”: revendo o filme em DVD (logicamente, em 2D), posso afirmar seguramente que senti em meu corpo como que “ecos” das sensações físicas que experimentei no cinema, durante as cenas de ação mais tensas de que falei.

James Cameron realizou o sonho – ou pesadelo – de muitos cineastas, teóricos e críticos: a criação de um cinema do qual não saímos imunes em qualquer maneira – física, emotiva ou intelectualmente. Em relação a esta última, partamos agora para uma outra discussão, antes de darmos por encerrada esta revisão (crítica) de Avatar. A crítica marxista de cinema, particularmente nos anos de 1960, discutia ardorosamente as implicações ideológicas do dispositivo e da estética da sétima arte.

Os críticos argumentavam que uma característica fundamental da ideologia burguesa era precisamente disfarçar-se enquanto ideologia, enquanto discurso, e “naturalizar-se” como dado inquestionável de realidade – conseqüentemente, de verdade. Tal estratégia teria em vista a mais eficiente manutenção do “status quo”, produzindo alienação por todos os cantos. Para tanto, o cinema produzido, divulgado e recebido em escalas industriais, e segundo parâmetros bastante convencionais de forma e de conteúdo, aparecia como instrumento privilegiado.

Mas o problema dessa crítica é: em seus textos, os autores não costumavam se referir à “ideologia burguesa”; e sim, simplesmente à “ideologia”. Ora, sabemos que eles estavam falando da visão de mundo da burguesia; mas, a tomar o sentido exato de suas palavras, o que se dizia poderia ser aplicado a qualquer ideologia, não? Inclusive – por que não? – à ideologia marxista / socialista.

Trocando em miúdos: ou se especifique que é a ideologia burguesa que possui o interesse próprio de se disfarçar para melhor persuadir, ou se continua dizendo que a ideologia possui o interesse próprio de se disfarçar para melhor persuadir; mas, neste caso, admita-se como ideologia não só a capitalista, mas também a socialista, a cristã, a budista, a hedonista, etc.

Tal precaução evitaria a contradição de se criticar as manipulações reacionárias em favor de uma “transparência” que não é nada mais do que outra forma – tão disfarçada e sofisticada quanto – de manipulação: a revolucionária. A não ser, é claro, que se admita como um dado de fato e de direito a “manipulação”. Mas por que estamos falando de tudo isto? Por ser justamente em tal contradição que cai um intelectual / filósofo famoso da atualidade: Slavoj Žižek.

Pensador fortemente armado de referenciais marxistas e psicanalíticos (principalmente lacanianos) na análise das produções da indústria de Hollywood, Žižek escreveu um artigo sobre Avatar para a edição de março último da clássica revista “Cahiers du Cinéma” (ele também costuma escrever esporadicamente para o caderno “Mais” da “Folha de S. Paulo”). Sob o título “Avatar: un exercice d’ideologie politiquement correcte” (Avatar: um exercício de ideologia politicamente correta), o filósofo dispara toda sua munição crítica contra a hipocrisia desse mesmo “exercício” praticado por James Cameron.

Passemos a palavra ao próprio:

“Mais il est facile de découvrir, sous les motifs si évidemment politiquement corrects (un Blanc honnête prenant fait et cause pour d’ecologiquement corrects aborigènes contre le ‘complexe militaro-industriel’ des envahisseurs impérialistes), le vaste arsenal des motifs honteusement racistes véhiculés par le clichê de ‘l’homme qui voulait devenir roi’: un naufragé terrien invalide est assez bon pour mériter la main d’une belle princesse et pour aider les aborigènes à obtenir la victoire finale. De plus, le portrait idyllique qui nous est brossé des aborigènes à la peau bleue fait l’impasse sur leur propre hiérarchie sociale, sans doute de nature oppressive dans la mesure où ils ont une princesse.”

Em livre tradução:

“Mas é muito fácil descobrir que, sob os motivos tão evidentemente politicamente corretos (um Branco honesto tomando a causa dos aborígenes ecologicamente corretos contra o ‘complexo militar-industrial’ dos invasores imperialistas), está o vasto arsenal de motivos pavorosamente racistas veiculados pelo clichê do ‘homem que queria ser rei’: um náufrago terráqueo, inválido, é suficientemente bom para merecer a mão de uma bela princesa e para ajudar os aborígenes a obter a vitória final. Além do mais, o retrato idílico que nos é pintado dos aborígenes da pele azul forma um impasse com a sua própria hierarquia social, sem dúvida de natureza opressora, na medida em que eles possuem uma princesa.”

O autor pode conhecer muito de Marx e de Lacan, mas pouco teve contato com a Antropologia, aparentemente. Quem foi que disse que um grupo claramente representado como uma tribo “aborígene” deverá possuir uma estrutura social “opressora” somente por utilizar-se de uma princesa? Ao som de quaisquer palavras que evoquem “aristocracia”, o autor (nitidamente “de esquerda”) parece já se tremer todo de indignação, certamente lembrando-se das formas mais abjetas de governo do “antigo regime” na Europa, como o Absolutismo ou o Czarismo.

No entanto, quem foi que disse que quaisquer aborígenes, somente por terem uma “princesa”, serão “absolutistas”? Tal colocação cheira vergonhosamente etnocêntrica para um intelectual do porte e fama de Žižek, não? Isso lembra os “cronistas do descobrimento” do nosso Brasil, que se escandalizavam à dedução de que os índios não deveriam ter “fé”, nem “lei”, nem “rei”, uma vez que não se encontravam em seu alfabeto as letras F, L e R. Mas devolvamos a palavra ao filósofo:

“La leçon du film est donc claire: les aborigènes n’ont d’autre choix que d’être sauvés ou détruits par les humains – dans les deux cas ils ne sont qu’un jouet entre des mains humaines. Au final, ils devront choisir entre la soumission à la brutale réalité impérialiste ou jouer les figurants dans la fantasme de l’homme blanc.”

“A lição do filme é, portanto, clara: os aborígenes não têm outra escolha do que serem salvos ou destruídos por mãos humanas – em ambos os casos, eles não passam de um joguete entre mãos humanas. No final, deverão escolher entre se submeter à realidade brutal do imperialismo ou desempenhar papel de meros figurantes para (as façanhas) do fantasma do homem branco (herói do filme).”

Como contra-exemplo (ideologicamente mais “sadio”) do que acontece em Avatar, o autor nos conta a notável história – real – de uma guerrilha que está acontecendo na Índia, neste exato momento (as fontes citadas datam de novembro do ano passado). Trata-se de uma situação em princípio assustadoramente similar à do filme de Cameron: as colinas habitadas pela tribo Dongria Kondh, no estado indiano de Orissa, foram vendidas a companhias mineradoras que visam explorar as suas copiosas reservas de bauxita.

Segundo Žižek, em resposta a tal intento, formou-se dentre os habitantes uma rebelião maoísta, de características naxalistas (movimento comunista iniciado naquele país durante os anos 1960 que se destaca pela intensa violência das ações). Depois de defender veementemente a guerrilha em Orissa, o autor declara:

“Alors, quel rapport avec le film de Cameron? Aucun: dans l’Orissa, il n’y a pas de nobles princesses attendant les héros blancs qui les séduiront et défendront leur people; il n’y a qu’une guérrilla maoïste qui organise des fermiers affamés.”

“Então, qual a ligação com o filme de Cameron? Nenhuma: em Orissa, não há nobres princesas esperando por heróis brancos que as seduzam e defendam o seu povo; não há nada além de uma guerrilha maoísta que organiza os camponeses esfomeados.”

Muito bem. Eis a delicada pedra de toque: não seria Mao justamente esse herói “branco” (no caso, amarelo – com o perdão da brincadeira) que seduzirá os camponeses e camponesas, os quais, segundo Žižek, vivem em estado bastante “primitivo”, sem contato nem conhecimento em relação a quase nada da “civilização”? De qualquer maneira, os “aborígenes” indianos não possuem escolha por si sós – assim como em Avatar –, dependendo sempre de algum elemento vindo de fora, vindo de povos mais “evoluídos”.

Colocando nos termos do próprio filósofo, ou os Dongria Kondh se submetem ao imperialismo neoliberal, ou eles se fazem de figurantes na universal batalha do socialismo marxista contra o capitalismo. Sim, pois, a deduzir das descrições de Žižek, não se trata de uma revolta natural e espontânea dos habitantes de Orissa; tampouco será o caso, provavelmente, de algum ou alguns deles terem lido ou tomarem algum conhecimento pessoal dos ideais maoístas e decidirem aplicá-los ao seu legítimo movimento.

Tomando como base apenas os fatos mostrados pelo filósofo com a malícia dos discursos daquela esquerda mais fundamentalista que se coloca quase como representante da vontade e da verdade divinas, imaginamos que terá sido algum militante naxalista quem buscou os Dongria Kondh e pregou a eles o evangelho da Revolução. Então, qual a ligação com o filme de Cameron? Todas.

domingo, maio 02, 2010

Alice no País das Maravilhas



Até que ponto a autoria é possível – e desejável – no cinema industrial? A questão já se tornou banal, muito por conta de opiniões superficiais e engessadas produzidas pelos dois lados em debate (os que defendem e os que atacam os produtos da onipresente indústria cultural), mas ainda não perdeu a sua pertinência. Vamos aos fatos. Desmantelando os pavores dos mais “revolucionários”, não existe um projeto burguês pura e simplesmente que se muna dos instrumentos culturais para legitimar e difundir sua ideologia aos quatro ventos, produzindo alienação e reproduzindo ad infinitum as condições da sociedade capitalista.

Uma das marcas mais visíveis do sistema é a sua inerente contradição. A realidade social e cultural é – felizmente – muito mais complexa do que pretendem as formas de análise marxistas mais engessadas. É uma pobreza dizer que um filme de Hollywood apenas vende “ideologia”. Por outro lado, é preciso sempre tomar cuidado com o entusiasmo eventualmente despertado por tais filmes; o crítico não deve abandonar nunca seu aparato... crítico! Os meios de produção e de recepção de um filme (econômicos, políticos, históricos e sociais) precisam ser levados em conta na compreensão da obra.

De qualquer maneira, parece-nos que é na interação – propriamente dialética – entre um olhar aberto e um olhar desconfiado que se produzirá uma boa análise fílmica. Assim, como podemos nos aproximar da Alice no País das Maravilhas (“Alice in Wonderland”, EUA, 2010), a mais nova – e aguardada – empresa da marca “Tim Burton”? Digamo-lo logo de saída: o filme é uma decepção. Em primeiro lugar, porque a famosa poética do nonsense, tão peculiar a Lewis Carroll, autor do clássico do qual Burton desejou fazer a “sequência”, foi quase que absolutamente constrangida e emparedada dentro das piores e mais banais convenções do cinema “de aventuras”.

As peripécias da Alice de Burton são por demais lógicas, previsíveis a ponto de dar sono (mesmo na gloriosa sala I-MAX 3D). A narrativa não convence. Acompanhamos o filme com a forte impressão de que nada, absolutamente nada do que a protagonista enfrenta constitui um desafio verdadeiro, um desafio no qual se veja a menor sombra do perigo, do fracasso, da reviravolta inesperada. É tudo muito esquematizado. Parece que a história foi pensada a partir da leitura mais apressada da mais resumida cartilha de “como-escrever-contos-de-fadas”. Não convém colocar Alice na mesma estante de grandes fábulas produzidas por Hollywood:

desde Avatar (de James Cameron) e de O Senhor dos Anéis (de Peter Jackson) até os filmes anteriores de Tim Burton, como O Estranho Mundo de Jack (dirigido por Peter Selick sobre roteiro de Burton) e Edward Mãos de Tesoura (do próprio). Veja-se bem: não esperávamos que Alice inoculasse doses de um discurso “de esquerda” dentro do cinemão, como fazem o já citado Avatar e o já clássico Matrix. Mas, mesmo dentro dos parâmetros da própria carreira de Burton e das fórmulas mais tradicionais do blockbuster, esta Alice é um mau produto. Mesmo que façamos de conta que Lewis Carroll nunca existiu (para tentar minimizar os danos).

E torcemos nossos narizes não somente para a estrutura narrativa rala e a capacidade de fabulação afásica do discurso de Burton e sua roteirista (em relação a ele, falta de criatividade deveria ser considerada um pecado contra o Espírito Santo, imperdoável). Sua Alice parece propagar uma mensagem e encarnar uma ideologia questionáveis – para dizer o mínimo. Não precisamos ficar aqui lamentando o quão ingênuas são aquelas opiniões “revolucionárias” a respeito de filmes “hollywoodianos”, as quais apontamos anteriormente. Mas, desta vez, Tim Burton dará um prato cheio para elas.

E o efeito mais infeliz disso é “queimar o filme” (ainda mais) das boas produções industriais, aos olhos daqueles “críticos” que já não costumam ver esse tipo de filme com a devida atenção e daqueles (e isso é o mais infeliz de tudo) espectadores sob a sua esfera nefasta de influência. Muito obrigado, Sr. Burton, por entregar de mão-beijada a sua arte; por entregá-la não simplesmente ao comércio, mas à forma mais abjeta de comércio. Convenhamos: transformar, no final do filme, Alice numa CEO do imperialismo britânico é forçar a amizade do espectador, não? Quanta desfaçatez...

De quem terá sido essa decisão? Do próprio diretor? Da roteirista? De algum executivo dos estúdios Disney? Do projeto burguês inserido no neoliberalismo (e neo-imperialismo) global? Não interessa saber. O fato é que, em termos da arte, cultura e entretenimento que merecem Lewis Carroll e o próprio cinema (não importando qual seja), batizar de “Wonder” um navio de “comércio” com a China é de uma infelicidade quase indizível. Não obstante, em favor da análise dialética que propusemos no começo, poderia-se contra-argumentar que a sequência dada por Burton às aventuras da Alice de Carroll insere-se dentro da visão de mundo dominante na era vitoriana, em relação à qual o filme seria bastante coerente.

Por exemplo: seria um anacronismo de nossa parte desqualificar os Lusíadas – patrimonial epopéia de Camões – por “defender” o colonialismo, quando o poeta diz: “E entre gente remota edificaram / Novo reino, que tanto sublimaram.” Assim, a Alice imperialista de Burton nada mais representaria do que valores e projetos de vida muito caros à época de Lewis Carroll. Mas tal interpretação comporta dois problemas. Primeiramente, ela sugere que este filme teria se baseado nas análises psicanalíticas mais maliciosas (e reducionistas) da Alice original, entendendo a história como uma mera simbolização do processo de crescimento e amadurecimento do indivíduo

– mais uma vez, o nonsense do autor sofre as piores coerções. Tim Burton parece, de fato, ter seguido essa linha. A sua Alice já tem 19 anos e está prestes a ser “premiada” com um casamento arranjado. O inconformismo dela e o seu comportamento irreverente na festa de noivado mostram que a personagem é uma daquelas almas “de artista”, num sentido romântico bem próprio a Burton (quem não se lembra de Jack Skellington, ou de Vincent?). Neste momento, logo do começo, promete-se um grande filme. Mas tal não se cumprirá, infelizmente.

Por isso, é ainda mais trágico vermos, no final, essa mesma Alice “capitalizando” seu inconformismo e imaginação criativa, canalizando-os naquela forma mais perfeitamente “lógica” do empreendedorismo, onipresente em tantos livros e palestras de auto-ajuda. Entretanto, é este o processo de crescimento rumo à vida “adulta” que Tim Burton parece querer afirmar; a contradição aqui chega ao seu paroxismo, se formos nos lembrar das velhas ideologias do artista romântico, sobre as quais o cineasta parece ter construído – até agora – sua persona e sua obra.

Esta Alice não passa de uma narrativa exemplar para os adolescentes de hoje, que precisam tomar rumo na vida após o Ensino Médio. O fato de ela ter rejeitado definitivamente o casamento arranjado e boa parte do projeto de vida que os padrões burgueses / aristocráticos impunham às mulheres da era vitoriana não deve ser interpretado como algo propriamente subversivo. Quando muito, isso é uma daquelas formas mais datadas e reacionárias de “feminismo”. Tudo bem, é ótimo para as mulheres saírem do fogão e passarem a comandar corporações. Mas o fato a ser devidamente observado aqui é: não devem existir corporações!

Existe um modelo econômico que deve ser em si mesmo questionado, não importa quem o comande: homem ou mulher, negro ou branco, hétero ou homossexual, etc. Um ditador é sempre um ditador. Isso nos leva ao segundo problema daquela possível leitura “positiva” que poderíamos fazer de Alice. Se este filme tivesse sido produzido na época histórica em que o empreendimento imperialista tinha de fato prestígio e legitimidade (século XIX), poderíamos até aceitar o seu discurso como ele é – sob a pena de incorrermos na crítica anacrônica que aplicamos hipoteticamente a respeito de Camões.

Mas, em um mundo no qual se faz presente (supostamente) uma Organização das Nações Unidas, seria no mínimo irresponsabilidade (e no máximo, malícia) um filme como este pretender apenas retratar a visão de mundo de uma época. Ou seja, Tim Burton e cia. são ou ingênuos demais ou estrategistas ideológicos com pouca sutileza e escrúpulo. Em outras palavras: para ser coerente consigo mesmo (apenas representando a mentalidade imperialista da maneira heróica como ela aparecia em produtos culturais da época, tais como os romances que narram as aventuras de Allan Quatermain – como “As Minas do Rei Salomão”,

escritos por H. R. Haggard, ou as narrativas infanto-juvenis de Rudyard Kipling, como “Kim”; claro está que Lewis Carroll não se enquadra nesses casos), o filme tem que contradizer muitos discursos legítimos de nossa época (em que se costuma criticar o imperialismo do XIX, correndo o risco, por isso mesmo, de ser interpretado como condescendente ou apologético em relação a tal sistema econômico; ou seja, não faz o menor sentido o fato de Tim Burton, hoje, querer produzir uma obra nas mesmas condições da forma mais baixa da literatura-entretenimento do século retrasado; mesmo uma possível ironia – como Paul Verhoeven faz em Tropas Estelares, de 1997 – estaria fora de questão; Alice parece ser um filme sério no que mostra).

Agora, pode ser que Alice seja mesmo uma propaganda das formas equivalentes desse imperialismo que ainda resistem hoje em dia, defendendo os interesses de grupos sociais poderosos que estão por detrás de toda esta máquina cinema-economia. Neste caso, a produção (roteiro) do filme seria coerente com a realidade mostrada (século XIX) e também com certos discursos mais ou menos legítimos de hoje (as formas de imperialismo em nosso tempo são mais sutis e menos confessas do que antigamente). Mas, de qualquer maneira, Lewis Carroll ainda se reviraria em seu caixão. Mataram a poesia.