segunda-feira, março 29, 2010

O Cavaleiro das Trevas em I-Max


Escrevi o texto abaixo em fevereiro de 2009; foi publicado originalmente no site Cinefilia.

Em novembro de 1989, meus pais me levaram para assistir a Batman (o do Tim Burton) no velho cine Marabá, na avenida Ipiranga, em São Paulo. Lembro que havia uma fila imensa – que chegava a dobrar esquina – para entrar naquela que era uma das maiores (se não a maior) sala de cinema da cidade, com uma tela gigantesca (ainda mais para a perspectiva de uma criança). Já não era, nem de longe, a primeira vez que eu ia ao cinema, mesmo o Marabá. Mas assistir ao épico gótico do homem-morcego ali era uma experiência cujo assombro ninguém explica – mas a criança o compreende, apenas. Naquela época, os maiores, mais bem equipados, mais confortáveis e mais baratos cinemas de São Paulo ficavam no centro: além do já citado, despertam saudades o cine Metro, o Comodoro, o Ipiranga, o Ritz, o Marrocos...

As salas de shoppings eram poucas, caras, pequenas e de qualidade muito, muito inferior às clássicas salas de rua. Hoje, como todos sabem, a situação se encontra invertida. O charme de sair de um filme e cair diretamente na rua, ainda mais à noite, perdeu-se em grande parte. Não era apenas um charme; ocorria alguma espécie de transfiguração “fenomenológico-estética” do nosso olhar ao contemplar os carros, as luzes noturnas, o pavimento, as pessoas andando para lá e para cá; era como se ainda estivéssemos dentro do filme. Ainda me lembro que, ao sair do Marabá com o meu pai e minha mãe, após a exibição do primeiro Batman, tendo o céu já escurecido, tive um medo terrível de que fôssemos cercados por assaltantes em algum beco escuro do centro de SP, assim como acontecera ao jovem Bruce Wayne.

E o que é que tudo isso tem a ver com a exibição de Batman – O Cavaleiro das Trevas na sala I-MAX do Shopping Bourbon Pompéia? Ora, é simplesmente deprimente sair dessa imersão quase literal no Cinema para um ambiente tão claustrofóbico, anti-séptico, excessivamente iluminado e artificial em todos os sentidos de um “shopping center”. Até descer todas as escadas, dar as várias voltas procurando a saída daquele maldito labirinto e chegar à rua e ao mundo real, o efeito lisérgico provocado pelas “sombras elétricas” (conforme os chineses denominavam a invenção de Lumière nos primeiros tempos) na sala escura já terá passado... De qualquer maneira, ver esse filme, nessa sala, trouxe-me algumas das sensações de quase vinte anos atrás, no antigo Marabá. Sensações que eu já reputava bem adormecidas, mas que despertam ao menor estímulo apropriado.

A experiência audiovisual (sim, o som também nos transporta, e muito) do I-MAX em 2D é algo simplesmente assustador. Já fazia muito tempo que eu não sofria esse efeito de realidade hiperbolizada que é o grande fator em jogo de se ir até o cinema. Imersão, eis a palavra-chave. Mas não uma imersão na realidade que tanto conhecemos (caso do 3D), mas numa espécie de universo de gigantes, onde as imagens desproporcionais dilatam nossas pupilas até o limite; e o som, cuja materialidade sentimos com a força de golpes constantes em nosso peito, dilata os tímpanos às raias do incômodo. O I-MAX em 3D não produz esses mesmos resultados. Com os óculos especiais no rosto, perdemos a noção assombrosa da dimensão da tela no espaço restrito da sala (sim, a sala do I-MAX é bem menor do que se pode pressupor).

Assim, o que vemos encontra-se como que inserido no espaço diminuto das duas lentes coladas à nossa face. A graça do 3D é, naturalmente, o efeito único da perspectiva, a terceira dimensão, o fato de sentirmos o impulso de tocar e provar a textura de algum objeto pequeno – um peixe, uma moeda – colocado à frende de nossos olhos. A maravilha do I-MAX em 2D é bem outra. É indescritível a fenomenologia de você, em alguns momentos do filme, olhar para os lados e para trás, tentando abarcar e relacionar a visão da tela pantagruélica com a visão das pessoas totalmente hipnotizadas por aquele moderníssimo totem, numa novíssima e escuríssima caverna de Platão. Inebriante. No entanto, a experiência sensorial anda de mãos dadas com a experiência estética. Desse modo, vejamos o como a arte específica do cinema pode aproveitar a promessa do I-MAX.

O novo modo de filmagem e exibição em I-MAX traz de volta boa parte das reflexões que se faziam na época do advento do Cinemascope e do Cinerama (anos 50). O I-MAX não se trata de uma mudança de paradigmas, caso potencial do 3D, mas apresenta-se como um novo grau de uma escala que começou lá atrás: a da melhor imersão possível do espectador no universo hiperbólico de um filme bidimensional. Assim, no espírito das velhas discussões e considerando a contribuição de Batman – O Cavaleiro das Trevas como uma experiência-teste, quero propor o seguinte. Antes de mais nada, devem-se planejar e realizar filmes que sejam voltados para o I-MAX em sua totalidade; a fita de Christopher Nolan apresenta apenas algumas cenas que ocupam toda a tela da nova tecnologia. Mesmo assim, todos os outros momentos do filme ganham uma proporção inédita.

Entretanto, o problema de se pensar, rodar e vender um filme que aproveite todo o potencial do I-MAX é o que está implícito aí mesmo: tal filme só poderá ser 100% vivenciado sensorial e esteticamente numa sala apropriada. É a mesma angústia que temos, hoje, ao assistir na tela da TV a velhas fitas dos anos 50 e 60 pensadas para o Cinemascope (mesmo que os DVD’s e as TV’s sejam “widescreen”). Sabemos o como a televisão influenciou a linguagem e a estética do cinema e o como os produtores, hoje em dia, procuram a maximização dos lucros nas diversas plataformas (cinemas, DVD, TV a cabo). Assim, acredito eu que seria preciso grande coragem para rodar um filme que “radicalize” a proposta do I-MAX. Não obstante, supondo que apareça um genial e audacioso “Stanley Kubrick” do I-MAX, o que é que ele faria, em termos mais exatos?

Em primeiro lugar, esse cineasta voltaria a rezar pelo evangelho de André Bazin: eliminar-se-ia a montagem, diminuir-se-ia ao máximo a sua função narrativa e estética, tudo em função da fotografia, da composição do plano. Isso porque, um filme com cortes rápidos e constantes, um ritmo acelerado, algo à lá Eisenstein no I-MAX não daria certo de modo algum. Pela simples razão de que as pessoas vomitariam, cegariam, tonteariam, desorientar-se-iam sensorialmente por toda a sala de exibição. A montagem no I-MAX – principalmente a de “corte seco” – seria um ato de extrema violência e arbitrariedade com relação ao espectador. É fisicamente difícil acompanhar um filme com muitos cortes na barriga do Pantagruel que é o I-MAX. As cenas de O Cavaleiro das Trevas que melhor funcionam, sensorial e esteticamente, são as cenas fechadas em um único plano, o velho e famoso plano-sequência.

Dessa maneira, a nova estética do I-MAX deve resgatar e potencializar ao máximo o plano-sequência, de preferência com prolíficos movimentos de câmera (“travellings” e panorâmicas). A movimentação da câmera, num filme exibido em I-MAX, é um dos elementos que mais contribuem para o efeito inebriante de “imersão” do espectador dentro da tela. A sequência da aventura aérea de Batman em Hong Kong é um dos momentos mais entusiasmantes deste filme. Assim sendo, uma vez que se componha o filme tendo-se o plano como principal conceito de linguagem e de estética, dever-se-á – logicamente – aproveitar o plano em todos os cantos de sua dimensão bidimensional (largura e altura) e no implícito que é o seu aspecto tridimensional.

Ou seja, deve-se preencher significativamente e com foco perfeitamente nítido (o que é devidamente possibilitado pela tecnologia do I-MAX) todas as áreas da tela, inclusive o fundo – através do qual será reabilitado um outro princípio estilístico muito caro a Bazin: a profundidade de campo. A desfocalização ou focalização seletiva seria um pecado mortal no I-MAX, não só pelas razões bazinianas de que arrancaria ao espectador a liberdade de escolher o que ver e no que prestar atenção, mas pela razão bem prática de que seria um copioso desperdício de muitas dezenas (talvez centenas) de metros quadrados de superfície de exibição que ficariam absolutamente ociosos – mas que, outrossim, poderiam ser aproveitados descritivamente, narrativamente, esteticamente, etc. A não ser que a proposta artística do filme inclua exatamente algo como esses “latifúndios improdutivos” de tela.

Imagine um filme que mostrasse diversos pontos de interesse em cada plano, separados por muitos metros de distância, levando o espectador a virar os olhos grandemente, ou quem sabe a própria cabeça. Mas não é nada que o Cinemascope já não tenha feito. De qualquer maneira, essa questão do grande espaço da tela e dos múltiplos pontos de interesse leva-nos a conclusão de que os filmes em I-MAX deverão trabalhar, o máximo possível, com planos de conjunto, especialmente os paisagísticos (mais uma vez, vêm à memória os velhos épicos e faroestes do Cinemascope). Em O Cavaleiro das Trevas, são as melhores imagens. Entretanto, esse potencial não deve se tornar uma lei. O primeiro plano, principalmente o do rosto humano, hiperbolizado pelo I-MAX pode ganhar uma expressividade e dramaticidade enlouquecedoras (voltam aí as idéias de um outro grande teórico do cinema, Bela Balázs).

Imagine assistir ao Martírio de Joana D’Arc, de Carl. T. Dreyer, numa tela de 21 metros de comprimento por 14 metros de altura (isso porque a tela do I-MAX em São Paulo está “apenas” dentre as 50 maiores do mundo). É por essas e outras que continuo a acreditar no cinema. As tecnologias são instrumentos que apenas os verdadeiros artistas dominarão e utilizarão da maneira a mais significativa. Por ora, o que temos são experiências, testes, explorações e descobertas, aberturas e indicações de caminhos; preparações de terreno para os grandes e futuros gênios, desta ou de outras novas invenções. Batman – O Cavaleiro das Trevas é, como filme de cinema, uma grande obra – a ser vista e revista, pensada e repensada, uma fábula pós-moderna; como cinema em I-MAX, é uma obra cambaleante: são os primeiros passos. Vamos ver o que o futuro nos reserva.

domingo, março 28, 2010

A Conversação


Eis que entre duas obras-primas do cinema norte-americano (O Poderoso Chefão – 1972; e Apocalipse Now – 1979) Francis Ford Coppola encaixa uma fita à lá cinema europeu. Isto significa que A Conversação (“The Conversation”: EUA, 1974) promove uma impressão mais direta do tempo na tela, em planos mais longos cujos acontecimentos mostrados não se resolvem necessariamente no encaminhamento da intriga.

Ou até se resolvem, mas descrevendo nos mínimos detalhes os gestos e atitudes envolvidos, o que contribui sobremaneira para aprofundar (ou afundar mesmo) o espectador no universo íntimo da personagem principal, o espião profissional Harry Caul (Gene Hackman). E o mais importante nesse foco é acompanhar as andanças de passos retraídos ou tomados muito temerariamente por ele, em uma busca infrutífera.

O drama é: não há nada que ele possa fazer – dentre o que ele queira fazer. Pois já está consumado o que ele talvez desejasse não ter feito. A partir daí, as conseqüências escapam-lhe absolutamente. Cortou-se o fio que transmite o gesto do indivíduo ao rodar do mundo. Perdido no espaço, Harry perdeu os referentes e as relações: sua “namorada”, amigos e colegas de trabalho que o digam.

Só lhe resta tocar saxofone – à toa – no apartamento desmantelado – à toa. A verdade não existe. Se existe, a interpretação apressada dos fatos – e apenas fragmentos de fatos, nada mais – impede o acesso a ela. Mas, de tudo não se tem em mãos mais do que fragmentos mesmo; e para o trabalho com tais elementos, o único instrumento que se torna possível é a frágil interpretação.

Chega-se inevitavelmente a um impasse. E impasses provocam ansiedade, pânico. O quarto de hotel em que Harry se hospeda, quando chega mais próximo de descobrir a verdade e fazer uma interferência positiva em relação a ela, mostra bem o que é isso. Agir sem conhecer todas as variáveis de uma situação. Ou sem conhecer qualquer variável. E, ainda por cima, responsabilizar-se plenamente pelas decisões.

A cena mais significativa da contradição entre a ação individual e a real dimensão das coisas é a que mostra Harry contando e juntando, meio atabalhoado, o dinheiro recebido pelo trabalho “sujo” que é – no final das contas – apenas o “mcguffin” (pretexto) que dispara as reflexões propostas pelo filme. Harry tenta, mas não pode se enganar. O que ele faz não é somente um trabalho.

Mas o que é, de fato, ele não faz a menor idéia. Ou melhor, faz uma idéia muito equivocada. E pagará por isso. A cena citada acima, dentre outras, é um grande momento de encenação cinematográfica pois traz em seu bojo o sentido do personagem e do filme, de modo muito sutil. E só mesmo a imagem mais demorada e mais fixa – mais “europeia” portanto – é capaz de expressar tal conteúdo adequadamente.

Citando Andrei Tarkovski, percebemos em “A Conversação” a pressão do tempo dentro de cada plano. A questão em Coppola é que se trata de um tempo que urge decisões, ações. Mas estas são impossíveis ou equivocadas, como vimos. Assim, o tempo faz os planos como que explodirem (no segundo caso, graças à pressão interna de cada um), ou implodirem (no primeiro, graças à pressão externa, ou seja, à força exercida em um plano pelos adjacentes, daí a expressividade da montagem neste filme).

A última cena é construída com planos de “explosão” (o desmantelar desesperado e inútil do próprio apartamento em busca de escutas), sendo que a última imagem é de “implosão” (a desistência de Harry, que fica a tocar seu saxofone no meio do ambiente destruído). Um movimento de câmera muito simples mas bem expressivo marca esse último plano, fazendo a “ligação” entre o personagem e o resultado de sua ação anterior. A tensão, colocada desde o começo do filme, não se resolveu, nem arrefeceu.

quinta-feira, março 25, 2010

Caché


A imagem no cinema revela, desvela. Tudo o que aparece no enquadramento está posto a nu. E nos esquecemos de que o campo de visão na tela remete a um olhar, a um ponto de vista: o da câmera, antes de mais nada; uma máquina colocada em algum ponto daquele mesmo espaço físico, recortando-o e estabelecendo o que chamamos de espaço diegético. Mas o seu próprio corpo, logicamente, fica fora desse espaço “inventado”.

Assim, o que está caché ( = escondido ) é, em primeiro lugar, a própria câmera, a maior responsável pela existência não-velada do filme. A condição necessária para que mostre tudo é a de se esconder a si própria – e ao seu próprio ato. Há algo de vergonha nisso, da relação conflituosa entre pudor e fetiche. O ato da câmera é um ato de vouyerismo. Todas essas constatações são banais, mas por que as fazemos aqui?

Apenas para pensar um pouco na maneira como foi construída a narrativa fílmica de Caché (França / Áustria / Alemanha / Itália / EUA, 2005; dir.: Michael Haneke). Temos ali (o olhar de) uma câmera que invade a esfera da intimidade de uma família burguesa – por direito inviolável. O objetivo subentendido desse primeiro ato de violência é desmascarar a violência primeira que está na formação do indivíduo burguês (no caso, um apresentador de TV).

Para tanto, a própria câmera denunciante (assim como o seu pressuposto operador) não podem jamais se revelar. E isso o diretor leva muito a sério. No intuito de demonstrar sua tese e manter uma espécie de coerência poética, o filme não faz qualquer concessão às expectativas do (olha só o termo) espectador. Caché é bastante naturalista, mas de um modo muito bem elaborado, sofisticado até.

A imagem da câmera de vídeo que espia e a imagem da própria câmera do filme de Haneke entram em indissociável amálgama nos momentos que podemos chamar de “estribilhos” do filme. Mais importante: o filme começa e termina por tal identificação. Sabemos, é claro, que ambas são manuseadas por alguém, por alguma subjetividade.

Mas, para criar na medida do possível o necessário o efeito de objetividade em relação a uma “verdade” descoberta, as subjetividades “sádicas” do terrorista e do próprio Haneke – respectivamente – precisam apagar-se. De que adiantaria Georges (o apresentador) saber que as imagens enviadas para ele foram produzidas por algum desafeto seu (ainda que com grandes motivos), ou ainda por algum psicopata estranho qualquer?

Desse modo, ele não seria posto em contato consigo mesmo, com as próprias e assustadoras verdades interiores que tentou reprimir mas que se manifestam livremente nos seus sonhos (onde mais?). E através desse mesmo “caché”, nós espectadores somos colocados na mesma posição que o protagonista, tornamo-nos cúmplices dele; com isso, podemos supostamente compreender melhor a sua situação.

Assim, o plano do artista (Haneke), o plano da narrativa (Georges) e o plano do espectador ombreiam-se na mesma coerência. Jamais descobriremos, (assim como Georges) a verdade factual, pois a única que interessa é das atitudes e pensamentos do próprio personagem. Para ser bem aproveitado, este filme requer anti-espectadores.

segunda-feira, março 22, 2010

O Segredo dos Seus Olhos


Eu me lembro de ter falado muito mal a respeito de Desejo e Reparação (“Atonement”, 2007). O filme parecia ter sido feito segundo uma receita: uma colher de sopa de romance (e romance impossível, é lógico), duas pitadas de drama social com cobertura histórica, uma colher de chá de suspense (um mistério a ser resolvido, melhor ainda se for um crime); misturar tudo numa narrativa sofisticada que aconteça paralelamente em diversos planos (presente e passado, aqui e lá, devaneio e realidade) e enfeitar com uma fotografia “de revista”, com uma fina direção de arte (sem esquecer os figurinos) e com uma trilha sonora que vá pautando e conduzindo os momentos mais emocionais. Muito bem. Só que o problema da fita de Joe Wright era que tudo isso saiu do forno, no final do processo, com um gosto excessivamente artificial – muito além da conta.

Em princípio, não há problema algum com “fórmulas” – contanto que não se ache que a ciência e a técnica substituam a arte. Ou que esta decorra natural e invariavelmente daquelas – o que é a crença mais comum, infelizmente. Existe algo em toda obra que simplesmente não pode ser encontrado em análises “formalistas”. Algo de sutil, de sublime, de metafísico até. Algo de subjetivo. E isto não se aprende em escolas, faculdades etc. Desejo e Reparação é um filme por demais profissional, feito para provocar efeito, para abocanhar premiações (da Academia, principalmente). Um filme assim não funciona. Agora, O Segredo dos Seus Olhos (“El Secreto de Sus Ojos”, Argentina / Espanha, 2009, dir.: Juan José Campanella) funciona. Por que? As “fórmulas” de ambos são muito parecidas. Mas por que um consegue nos convencer (relativamente) e o outro não?

Eu arriscaria dizer que Campanella (que fez O Filho da Noiva – “El Hijo de La Novia”, 2001) é um diretor que se coloca mais de coração. E, principalmente, ele sabe equilibrar esse coração com os outros elementos que devem compor um filme, de acordo mesmo com os padrões da indústria norte-americana. Afinal de contas, os filmes que costumam ganhar óscares são uma mistura bem bolada de padrões artísticos e padrões “comerciais”, de razão e emoção, não é mesmo? No que Desejo e Reparação fracassou, O Segredo dos Seus Olhos chegou lá – ganhou este ano o prêmio de melhor filme estrangeiro. Campanella já tem currículo em Hollywood: dirigiu vários episódios de diversos seriados de TV: House, Law & Order, 3rd Rock etc. Mas o filme de Wright também busca equilibrar em sua receita todas essas coisas. Então, o que deu errado... mesmo?

Podemos até afirmar que O Segredo dos Seus Olhos foi feito para mastigar o Oscar. Mas, nessa feitura, o seu aspecto “profissional” (que já é muito grande) não sombreia por completo o seu aspecto “artístico” – ou, se preferirem a terminologia mais cara à crítica de cinema, o seu aspecto “autoral”. Se alguns filmes são biscoito fino, posto que industrializados, esta película de Campanella tem mais gosto de comidinha da vovó (mas não muito; a fita ainda se arvora majoritariamente na linha do cinema industrial “de qualidade”). Eu tinha dito lá atrás que subjetividade artística não se aprende na escola ou na faculdade. Isso continua verdadeiro. E significa que não há método formal (com o perdão do pleonasmo, uma vez que todo “método” já pressupõe uma formalização e racionalização) de aprendizado, exercício e manifestação de coisas mais íntimas.

Não obstante, não é o caso de que a esfera do subjetivo esteja entregue à mais anárquica das espontaneidades. É perfeitamente possível passarmos por uma “educação sentimental”, através da vivência e de exemplos artísticos. E neste sentido, os clássicos são os melhores materiais didáticos de que podemos dispor. O fato é: percebemos em Campanella a profundidade temática e o rigor estilístico (ambos em equilíbrio, produzindo uma rica atmosfera) próprios do cinema clássico de Hollywood. As narrativas em paralelo, o carisma das personagens, a mistura de gêneros (o humor em algumas cenas, associado ao romance, ao drama e ao suspense) e o incrível plano-sequência no estádio de futebol são – dentre outros elementos – coisa de cineasta culto, de cineasta cinéfilo. Eis a diferença: Desejo e Reparação e O Segredo dos Seus Olhos podem compartilhar da mesma receita.

Mas aquele foi buscá-la em alguma cartilha de faculdade de audiovisual, enquanto este encontrou o seu modo de ser vendo as obras-primas da História do Cinema. Com o perdão da rápida associação, eis alguns nomes que nos parecem servir de base ao diretor: William Wyler, Billy Wilder, Michael Curtiz, Carol Reed e... Costa-Gravas. Isso não quer dizer, logicamente, que Campanella tenha produzido uma obra-prima como as dos seus “ídolos”. A distância aqui é bem maior do que aquela que sentimos entre a Ilha do Medo – que discutimos recentemente – e os mestres que Scorsese pareceu querer emular nesse filme. O Segredo dos Seus Olhos possui alguns defeitos próprios de filmes “biscoitos-finos”: 1. alguns primeiros-planos em que se deixa nítido somente o centro do quadro (sendo que as laterais estão no mesmo plano e fazem parte, muitas vezes, do mesmo objeto de interesse).

Para que isso? Só para ficar “bonito”? Só para ficar com cara de fotografia da National Geographic? Esse esteticismo vazio resvala perigosamente na publicidade (basta ver qualquer filme de propaganda que apele muito emocionalmente para coisas bonitas como amor, memória, família... tal como aquelas “campanhas” de carros ou de bancos, que costumam aparecer antes dos “trailers” nas salas de exibição – hábito cruel esse). 2. o enquadramento levemente inclinado de alguns planos, sem que haja nada que justifique tal escolha: ela não expressa a visão subjetiva de alguma personagem, nem a tensão psicológica da cena, ou qualquer outra tentativa de alegorização que pudemos identificar. Orson Welles exerceu-os muito bem; mas Carol Reed, em O Terceiro Homem (1949), também abusou gratuitamente desses efeitos (conforme alguns críticos já apontaram).

Pesando tudo na balança, o conjunto e o resultado finais de O Segredo dos Seus Olhos parecem-nos satisfatórios – as inconsistências citadas não são sistematicamente repetidas e enfatizadas, na crença ingênua de serem qualidades (o que é o mais irritante a respeito de Desejo e Reparação). Comparem-se os dois planos-sequência presentes em ambos os filmes: qual é o mais “espetacular” – e vazio – e qual o mais “maduro” – e significativo? Por tudo o que vimos, faz sentido o filme de Campanella ter ganhado o Oscar e A Fita Branca de Haneke ter ficado “apenas” com a Palma de Outro em Cannes. De resto, não dá para comparar as duas obras para dizer qual é a “melhor”. São gêneros, estéticas, propostas absolutamente diferentes. O bom cinéfilo saberá apreciar ambas, no que cada uma tem de particular a oferecer.

quinta-feira, março 18, 2010

A Ilha do Medo


O barco surge de dentro de um manto branco de névoa, como se viesse do nada, como se viesse do começo do mundo, como se o próprio mundo começasse ali. E esse mundo é o da Ilha, o único mundo que existe. Na primeiríssima imagem do filme, Martin Scorsese já mostra que não está para brincadeira. Teremos pela frente um filme de medo. Um filme que vasculha zonas profundas e isoladas do único lugar realmente digno de pavor: a alma. E um filme de incertezas.

O diretor domina perfeitamente os recursos artísticos com que trabalha e conhece muito bem a famosa ontologia da imagem captada e reproduzida por uma máquina (conceito de André Bazin), sabe o seu poder de evocar a realidade – e principalmente a realidade subjetiva, que deverá forçosamente assumir forma objetiva para se tornar cinema (conceito de Andrei Tarkovski). É por isso que A Ilha do Medo (“Shutter Island”, 2010) assusta.

Em termos de composição fotográfica de imagem, não há diferença alguma entre a realidade da fantasia do personagem – a realidade de um louco – e a suposta realidade dos fatos. Scorsese não é expressionista: não faz as escolhas de um Robert Wiene em O Gabinete do Dr. Caligari (1919), no qual os cenários de contornos assimétricos justamente expressavam a falta de juízo do protagonista mergulhado em devaneio.

Scorsese não usa recursos banais da gramática da montagem para fazer a passagem entre o imaginário e o real (fusão, “fade out”, tela esfumaçada, etc). O diretor quer que o espectador fique tão irremediavelmente preso na dúvida enlouquecedora quanto o personagem principal. O filme não oferece saídas. Estamos todos lá, presos na “Ilha do Medo”. Realidade é uma questão de perspectiva.

E a única coisa que temos são perspectivas opostas, e também os discursos que tentam fazê-las valer. É importante ressaltar isto: o filme é ambíguo da primeira à última imagem. Não é porque certas coisas aparecem após outras na ordem narrativa, que poderemos afirmar que o que vem depois possui mais verdade do que a coisa que existia antes, só por tê-la substituído na ordem temporal. O tempo narrativo não soluciona coisa alguma.

Scorsese é artista-mestre da imagem, ao contrário de um Shyamalan, mero artesão (pensamos em algo como O Sexto Sentido – 2000). A já propagandeada “reviravolta” no final de “Shutter Island” não resolve nem esclarece coisa alguma. É um filme de espírito profundamente pós-moderno. O “real” já desapareceu – se é que alguma vez existiu – soterrado por camadas e camadas de escombros de discursos.

Ideologia e ciência compõem a “segunda natureza” que escolhemos, como grupo, habitar. Mas alguns de nossos indivíduos não se contentam com os sutis construtos que preparamos para que eles se acomodem e se calem. Tais indivíduos insistem na busca por verdades que abandonamos faz tempo. Por isso, nós os chamamos de loucos. Por isso, nós os trancamos em manicômios. Pois obviamente não podem vestir as mesmas fantasias que nós – tampouco nós as deles.

Quem é o louco de fato? Aquele que é apontado como louco ou o sujeito que o aponta? Não podemos ter em mãos tais certezas; pelo menos, não em nosso tempo. É por isso que a imagem em Scorsese é sempre dotada de tanta realidade: porque tanto num caso quanto no outro – nas duas formas da loucura: a loucura lúcida e a lucidez louca – a imagem será creditada por alguém.

E isso, para um artista de sensibilidade como Martin Scorsese, já é suficiente para erguer uma obra-monumento que se sustente por suas próprias forças expressivas. Só existe mesmo o mundo como Ilha. Microcosmo? Que seja. Os pontos de vista dos habitantes (habitantes?) da Ilha serão os únicos que enfronharão a realidade-travesseiro na qual deitaremos nossas cabeças em devaneio – quer este se chame psicose, quer se chame psiquiatria, quer se chame... cinema.

A Ilha-Mundo. É por isso que a câmera está posicionada de frente para o barco que chega da névoa impenetrável. É para recepcioná-lo. Pois o olhar da própria máquina – que é o olhar do cineasta e também o do espectador (sim, eu e você) – também se encontra instalado na Ilha. TODOS NÓS SOMOS HABITANTES DA ILHA. Entende? Não há escape. Martin Scorsese amarrou muito bem o nó.

“Shutter Island”: o título em português é imbecil, para variar. “Shutter” pode significar veneziana ou obturador (de máquina fotográfica); de qualquer maneira, trata-se de substantivo derivado do verbo (to) “shut”, que significa fechar, calar. “Shutter” = aquele que fecha (ou faz fechar), aquele que cala (ou faz calar). O sentido no filme vai além do evidente subtexto político-histórico.

Martin Scorsese criou o filme mais hermético dos últimos tempos – e esses “últimos” são tempos que recuam até não me lembro mais onde. Talvez até Samuel Fuller. O cinéfilo Scorsese não perdeu a viagem para tentar se enlaçar a Paixões Que Alucinam (“Shock Corridor”, 1963). E a maturidade do diretor faz com que sua empreitada dispa-se dos coletes “vintage” da influência ou homenagem – peças emboloradas de brechó; “Shutter Island” e “Shock Corridor” são filmes irmãos.

Eis um cinema a ser usado em aulas de cinema.

terça-feira, março 09, 2010

Fuga de Nova York


É realmente engraçado ver hoje uma ficção científica já antiga em que o futuro se tornou nosso passado. Fuga de Nova York (“Escape From New York”, EUA, 1981) se passa no “distante” ano de 1997, em que os Estados Unidos, mergulhados numa guerra que já deixara de ser fria, tornam-se um estado policial. Com as estatísticas de “criminalidade” fora de controle, o governo decide transformar a ilha de Manhattan numa prisão – ou, melhor dizendo, num depósito de gente indesejada.

Nova York, outrora a porta de entrada para a terra da liberdade, torna-se símbolo de uma América já esquecida dos valores de sua fundação. Quando a nação mais poderosa do planeta passa a ser governada por gente vinda da chamada “América profunda” (aquele meio-oeste tenebroso), é natural que as metrópoles litorâneas mais cosmopolitas sejam as primeiras a cair – a sequência é Fuga de Los Angeles, filmada por John Carpenter em 1996. Mas Fuga de Nova York não é, evidentemente, um libelo anti-Bush.

Ainda que a paranóia americana apenas troque de alvo, mantendo suas características mais típicas, este clássico de Carpenter não trata de terroristas islâmicos, mas dos velhos comunistas. Mas, ei! Com Hugo Chavez à solta, quem foi que disse que o velho “brainstorm” ideológico saiu de moda? De qualquer maneira, no filme testemunhamos o sequestro do avião presidencial norte-americano pela “Aliança de Libertação da América”, a qual, depois de um discurso inflamado pelo rádio de comunicação

(que lembra muito o chavista), arremessa a aeronave contra um dos arranha-céus de Manhattan (!). Então, as autoridades enviam um ex-heroi de guerra – e hoje réu condenado – numa missão secreta (a famosa “stealth action”, ou ação furtiva, que inspirou diretamente a série de video-games “Metal Gear: Solid” – não é à toa que o herói ali responde também pela alcunha de Snake) para resgatar o presidente. Trata-se de Snake Plissken (Kurt Russell), anti-herói por excelência, que entra na ilha graças a um planador que ele pousará cuidadosamente no terraço do World Trade Center (!!).

Uma sinopse dessas naturalmente não dará conta de todo o poder da imaginação, da sugestão e da efabulação provocativas de John Carpenter, que aqui se faz mestre na ficção pós-apocalíptica e distópica. A história e os personagens deste filme, nas mãos de qualquer diretor dos que pululam por aí, serviria apenas de propaganda ideológica da mesma barbárie governamental que Snake Plissken despreza. Não, Snake não é um “Rambo”. Fuga de Nova York é um filme subversivo,

daqueles que temo não serem mais “possíveis” de se fazer em território americano hoje em dia (sim, o futuro chegou, 1997 passou há mais de dez anos), a não ser talvez por um George Romero (Terra dos Mortos – 2005; Diário dos Mortos – 2007). De qualquer maneira, só como exemplo, é curioso o fato de o vencedor de ontem no Oscar de melhor filme, Guerra ao Terror, ter sido financiado na França por não conseguir apoio “em casa”. Enfim, a obra de Carpenter é incrível não só pelo conteúdo,

mas também pela realização formal – que é, em cinema, o que mais interessa e condição imprescindível para um “conteúdo” bem colocado. John Carpenter, como qualquer um de nós – inclusive Osama Bin Laden –, sabe muito bem o poder iconográfico e simbólico da paisagem nova-iorquina. Toda a introdução do filme deixa isso muito claro, em diversos planos que fazem questão de colocar as torres gêmeas numa posição expressiva dentro do quadro. Mas isso, em 1981, era uma opção estética quase instintiva,

assim como é “instintivo” hoje os filmes e fotografias destacarem (voltarem a destacar, muito evidentemente) o Empire State Building. O maior mérito de Carpenter foi transformar o World Trade Center abandonado numa pantagruélica massa fantasmagórica, um monstro-ruínas de uma promessa social que não se concretizou. Vestido de sombra e de escuridão, o WTC provoca no espectador um terror quase infantil, como quando vemos, da calçada ou da rua, a massa noturna de um prédio em construção – ou abandonado.

A maneira como cria suspense e susto em muitos planos revela que John Carpenter é, antes de mais nada, um dos “masters of horror”, mesmo neste filme que não pertence, em princípio, ao gênero do terror. Veja-se, só como dois exemplos, a cena em que a gangue dos esgotos sai para a caçada noturna e, principalmente, uma panorâmica no começo do filme em que a câmera escala o muro de contenção da ilha de Manhattan e revela no horizonte a linha escura da cidade-fantasma, terra sem-lei e de ninguém.

Também são de grande sabedoria fotogênica: a imagem de uma mini-perfuradora de poço de petróleo instalada e funcionando dentro da biblioteca municipal; a imagem do espetáculo de “teatro de variedades” assistido por bêbados e mendigos numa ampla – e arruinada – casa de ópera; as várias imagens de humilhação e tortura física e psicológica infligidas ao presidente-refém, as quais beiram as raias do fetiche sexual (uma das faces da subversão de que já falamos).

O poder visual – o imaginativo tanto quanto o verossímil – de um filme de ficção pós-apocalíptica depende muito da direção de arte, ou do “set decorator”, ou ainda do “production designer”. Fuga de Nova York sempre me surpreendeu nesse sentido (vejo esse filme há uns 25 anos) e continua estimulando nossa imaginação, mesmo em relação à tecnologia mais futurista que produziu Avatar, por exemplo (e que ganhou um Oscar ontem por isso). O mergulho alucinatório em um outro plano de realidade,

eis uma das grandes atribuições do cinema, presente quase desde o seu nascimento (na obra de Georges Méliès) – digo isso apenas para provocar aqueles que acham, por exemplo, que Avatar apenas “engana bem”. Cinema é, antes de mais nada, arte das imagens em movimento. John Carpenter sabe muito bem disso. Fuga de Nova York não é um filme-cabeça. É um filme de gênero, uma produção “hollywoodiana”. Mas é também um filme de autor, tem uma proposta e uma estética. E sabe enganar muito bem. Parabéns.

sábado, março 06, 2010

O Silêncio


Um adendo ao comentário de anteontem sobre Asas do Desejo: Wim Wenders dedica as aventuras do anjo Damiel, apaixonado pela existência, aos “ex-anjos” Yasujiro Ozu, François Truffaut e Andrei Tarkovski. O filme termina com a imagem solitária do anjo Cassiel – parceiro de Damiel – e com o manjado logotipo: “to be continued...” Muito bem. A continuação foi Tão Longe, Tão Perto (“Far Away, So Close”, Alemanha, 1993), que mostra a “queda” de Cassiel. Contudo, diferentemente do seu amigo, o anjo loiro receberá nesta vida e neste mundo apenas as doses cavalares de indiferença, violência, frustração, dúvida, sofrimento e... morte.

Já faz muito tempo que vi Tão Longe, Tão Perto, lembro-me de poucos detalhes e não sei se há nele alguma dedicatória. Mas se houver, bem que poderia ser àqueles cineastas que também são ex-anjos, mas cuja visão e filosofia identifiquem-se à vida que coube a Cassiel. Falo de Carl Theodor Dreyer, Michelangelo Antonioni, Ingmar Bergman... E aqui chegamos a O Silêncio (“Tystnaden”, Suécia, 1963). Ninguém soube mergulhar nas trevas da alma como Bergman. Pelo menos, não com um cinema que não seja apenas discurso (as intenções do diretor) ou estética “marketeira”.

Bergman é cinema de gente grande. Não é um “garoto enxaqueca”... É um HOMEM-enxaqueca – só para colocar em termos mais brincalões. A fotografia de O Silêncio é voltada muito para o olhar das personagens, um olhar blasé na maior parte do tempo – mesmo o do garoto Johan. E a postura “blasé” (o tédio existencial) não se manifesta, por sua própria natureza, em atos de maior consequência. O tédio, assim como o velho cinismo, implica grande indiferença, negligência até. A não-participação voluntária. Ou, pelo menos, uma participação “não-participativa”, que guarda sempre algum distanciamento defensivo entre o sujeito e o objeto, entre sujeito e outro sujeito.

Eis o caráter das relações no filme, que toma seu lugar na chamada “trilogia do silêncio” ou “trilogia da fé” empreendida pelo diretor sueco. As outras partes são: Através de Um Espelho (1961) e Luz de Inverno (1962). Assim, O Silêncio é um filme das inconsequências: olhares inconsequentes, diálogos inconsequentes, gestos inconsequentes, movimentos inconsequentes, decisões inconsequentes... Toda essa indiferença e distanciamento são bem próprios aos corpos-fantasmas de Ester, sua irmã Anna e o filho desta, Johan, vagando pelo vazio de um hotel quase deserto, confinados no limbo do próprio ser-no-mundo

– a coisa mais inconsequente de todas, pois quaisquer relações entre a coisa e o ser, ou ainda entre este e Deus, revelam-se inexistentes. Para Bergman, as relações ditas humanas são pautadas pela indiferença, pelo ressentimento (a querela entre as duas irmãs remonta ao passado mais distante) e pela impossibilidade de qualquer comunicação, qualquer entendimento. Então, o silêncio impera. Pensamos agora na também famosa trilogia da incomunicabilidade de Antonioni (A Aventura – 1960; A Noite – 1961; O Eclipse – 1962), outro poeta maldito do cinema... anjo caído.

Eis o cinema da inércia (pois não importa o quanto as personagens se movimentem, os seus problemas não serão resolvidos) e do silêncio, um cinema no qual só resta o tempo, percebido com todo o seu peso do inexorável. Enquanto tudo o resto permanece lento, parado ou inexistente, o tempo corre rápido e faz questão de que nós nos demos conta disso. A morte está sempre à espreita e é a “final destination” a que se costuma chegar nos filmes de Bergman. O tique-taque nervoso de um relógio que não se vê, mas que é leitmotiv alegórico neste filme, procura captar a materialidade do tempo que é a única vontade “metafísica” a que estamos sujeitos – pois Deus também se silencia.

Há uma atmosfera de impasse irresolúvel por todo o filme, em todas as linhas de força que digladiam na mise en scène. É bela e significativa a profundidade de campo trabalhada por Bergman em diálogos cuja imagem dos corpos distribuídos no espaço e em perspectiva expressa o distanciamento afetivo, carnal, ontológico. Também o jogo de luz e sombra, de reflexos ao espelho (lembramo-nos duma cena até burlesca entre Ester e o funcionário do hotel), merece destaque aqui: filia-se ao melhor dos mestres escandinavos (Dreyer, Sjöstrom), com seu cinema cruel e fantasmagórico.

Já que falamos em burlesco, podemos até entrever uma solução para os impasses existenciais de O Silêncio (ainda que, no filme, esta seja logo reprimida com toda a agressividade da “natureza” humana): trata-se do nonsense. Em vista da inquestionável falta de sentido da vida e do mundo, assumamos esta mesma falta de sentido, não necessariamente com aquele cinismo amargo, mas com a inocência de uma criança que brinca em completa ignorância da “máquina do mundo”. O irracional e desproposital da brincadeira talvez sejam a única razão e propósito que nos restam. Por isso, é de se prestar atenção nas cenas que envolvem a trupe dos anões circenses. É o mais sublime deste filme.

quinta-feira, março 04, 2010

Asas do Desejo


“Algo aconteceu. Ainda está acontecendo. Me prende. Foi verdade à noite e é verdade agora, neste momento. Quem foi quem? Estive dentro dela e ela, em volta de mim. Quem neste mundo pode dizer que já esteve unido a outro ser? Eu estou unido. Nenhuma criança mortal foi concebida, mas sim um quadro imortal compartilhado. Aprendi sobre estupefação esta noite. Ela me levou para casa, e encontrei o meu lar. Aconteceu uma vez. Aconteceu uma vez, portanto vai acontecer. A imagem que criamos me acompanhará quando morrer. Terei vivido em seu interior. Somente a estupefação com nós dois, a estupefação com o homem e a mulher me tornou humano. Eu agora sei o que nenhum anjo sabe.”

Essa é a última anotação que o ex-anjo Damiel (Bruno Ganz) faz em seu diário. E resume bem o caráter excepcional deste grande filme de Wim Wenders (que já havia realizado uma quase obra-prima em Paris, Texas - 1984). Asas do Desejo (“Wings of Desire”, 1987) é praticamente um manifesto de uma fenomenologia da carne e de um transcendentalismo às avessas: do ideal ao material. Um manifesto prenhe de poesia, de lirismo. Mas, ei! Grandes poetas (Whitman, Drummond) já reconheceram o potencial epifânico da sexualidade e do erotismo. Sem contar a grande poesia do cotidiano, do banal, da vida e do mundo os mais simples e toda a gama de sensações que podem proporcionar aos mortais (o que vemos em Baudelaire, em Pessoa, em Bandeira... e no Manoel de Barros).

Serão todos ex-anjos? Anjos caídos por sua própria escolha e decisão? Anjos-fantasmas em um universo sem Deus, condenados a testemunhar e lembrar pela eternidade a nossa história mortal, sem que possam tomar parte nela, tampouco construir sua própria história? Ah, anjos assim tornam-se os melhores dentre os humanos: os visionários, os profetas, e sobretudo, artistas. Seria essa a filiação sobrenatural (no dizer de outro poeta-anjo, Murilo Mendes) de Wim Wenders? O certo é que ele dedica seu filme a todos os “ex-anjos”, especialmente a “Yasujiro, François e Andrei”... Troquemos em miúdos: trata-se de Ozu, Truffaut e Tarkovski. Todos os três, poetas das imagens em movimento, escultores do tempo (nas palavras do mestre russo).

Apaixonados pela vida, pelo mundo e pelo ser... sim, apaixonados pelo mero existir de tudo e de si mesmos, mesmo reconhecendo – ou porque reconhecendo – todas as suas vicissitudes. É preferível sentir e morrer, o que já caracteriza uma história, do que não-viver por toda a eternidade, não? Os anjos Cassiel (Otto Sander) e Damiel são curiosos de história. Este busca a sua própria; aquele a dos homens: por isso, ele acompanha os passos e os pensamentos do velho “Homero”, o qual lamenta que a humanidade perdeu os ouvidos da história; o poeta / aedo hoje é uma figura patética e solitária. É irônico que o servo da deusa Mnemosine (a Memória) termine sua história relegado ao esquecimento – o olvido... É o famoso “fim da história”, já se fazendo ver nos últimos dias de uma Berlim dividida?

Ou trata-se, na verdade, da impossibilidade da história, de uma história totalizante, nos tempos pós-modernos, pós-barbárie? Lembrar fragmentos, eis o que resta a “Homero” e a Cassiel: fragmentos do nazismo – o maior atentado já perpetrado contra a memória / história. Eis o drama do anjo loiro. Agora, vamos ao anjo moreno. Damiel não é um fantasma. Damiel é um corpo, uma presença concreta nos termos que são os que realmente interessam aqui: os diegéticos. Em todo o filme, Wim Wenders nos ensina uma grande lição de estética cinematográfica: é importantíssima a presença física em cena de Bruno Ganz. Para o espectador, que vê a tela do cinema como janela para o real – janela precisamente desenhada pelos óculos que vestem o olhar do diretor alemão,

como ele mesmo gosta de afirmar no documentário Janela da Alma (Brasil, 2002, dir.: João Jardim) –, é curioso imaginar os outros atores representando seus papéis como se o anjo Damiel / Ganz não estivesse ali. A sua presença, “visível” apenas para nós, torna-se gritante. Qualquer diretor menor de hoje em dia, daqueles com muita técnica e pouca estética, colocaria logo a figura de Ganz em sobreimpressão. Victor Sjöström utiliza tal expediente em A Carruagem Fantasma (“Körkarlen”, Suécia, 1921), mas nesse caso está tudo bem, pois os efeitos especiais mais elementares do cinematógrafo ainda precisavam ser explorados. Hoje, uma solução dessas soaria para lá de banal.

Wim Wenders é sábio em usar a sobreimpressão apenas no plano que mostra rapidamente as asas do anjo Damiel de pé no alto de um prédio, logo no começo do filme, para que não surjam quaisquer dúvidas a respeito da natureza do personagem. Estas asas são o único elemento efetivamente fantasmagórico do filme, uma vez que não fazem parte do universo humano. Por sua vez, todo o resto do corpo de Damiel – ou melhor, a imagem do seu corpo – é devidamente humano, familiar na forma e também no conteúdo (que é o desejo, coisa que define a trajetória de nossas vidas). Uma tal identidade justifica à perfeição a presença física do ator no espaço diegético em que se move o personagem. Vemos ali um corpo como o nosso, não-materializado, mas um corpo de desejo tanto quanto o nosso,

desejoso da sensação de tomar banho, beber um café, unir-se ao corpo de uma mulher... É um corpo que assiste ao nosso plano de existência, mas não tem contato direto com ele, não é sensorial para nós; por isso fica-lhe e resta a ele a vontade da sensação, do tato, do olfato. Trata-se do mesmo quinhão reservado ao espectador de cinema: dentro da sala escura – mesmo nas mais modernas com imagens em 3D – somos todos anjos de Wim Wenders... Vem daí o efeito, a comoção tão sutil e ao mesmo tempo tão impactante que esta película provoca em nós? “Quando a criança era criança, não sabia que...”, diria Damiel. Jamais saberemos. Mas eu gostaria de voltar à filiação que o diretor se propõe aos “former angels” Yasujiro Ozu, François Truffaut e Andrei Tarkovski, respectivamente.

Asas do Desejo dialoga com a alegre condescendência de Bom Dia (Japão, 1959): a preferência pelas coisas e pessoas simples; com a alegria de filmar de Jules et Jim (França, 1961): a busca da vida brincalhona de amor e prazer; e com a meditação serena de Stalker (URSS, 1979): o ritmo vagaroso, apegado aos “tempos mortos” da narrativa – a imagem-tempo segundo Giles Deleuze, ou aquele esculpir o tempo, segundo o próprio cineasta russo. Especialmente relação a este último, Wenders também vai buscar no Tarkovski a alternância entre imagens em preto-e-branco e em cores, assim como os longos monólogos de ares filosóficos. Mas justamente por toda essa emulação, Asas do Desejo talvez não tenha o potencial para clássico de Paris, Texas. Mesmo assim, vale muitíssimo a pena ver, rever e guardar no coração.

quarta-feira, março 03, 2010

O Atalante


Jean Vigo é poeta. Sua visão é aquela que se fascina com a novidade das coisas, com o inusitado das coisas. Essa fascinação é algo absolutamente espontâneo, instintivo, não estando ligada a qualquer processo reflexivo-racional. Jean Vigo simplesmente se abre à sensação. Principalmente a dos olhos. Por isso, Jean Vigo é um poeta do cinema. O diretor de O Atalante (1934) olha para as coisas como a criança que está descobrindo o mundo – e este é um olhar sempre renovado de curiosidade e paixão feérica.

Daí o lirismo muito particular de seus filmes, um lirismo “sapeca”: meio nonsense meio brincalhão. A melhor sequência de O Atalante revela de maneira quase didática muito do estilo do cineasta: o velho marujo Pai Jules (Michel Simon) tem em mãos um disco que não pode ser tocado no gramofone quebrado, que está ao lado; ele começa a girar o dedo dentro do raio do disco, como se fosse uma agulha; imediatamente, a música começa a tocar; Pai Jules para e observa, intrigado; volta a girar o dedo

e a música volta a tocar; para e retorna mais uma vez, com o mesmo resultado; então, vê que o jovem grumete da embarcação em que ambos trabalham está meio escondido a tocar um acordeão, divertindo-se com a reação do velho imediato. Logo mais, vemos o capitão Jean (Jean Dasté) mergulhando nas águas profundas e vendo a imagem fantasmagórica de sua jovem esposa (em sobreimpressão) que acabara de fugir – anteriormente, ela tinha lhe dito que aqueles que mergulham a cabeça de olhos abertos n’água

veem a figura da mulher amada. Mais uma vez, o cinema de poesia de Jean Vigo impera. Logo após, o diretor nos mostra o velho gramofone, devidamente consertado por Pai Jules, a tocar alegremente com os muitos gatos do personagem se aproximando e parecendo ouvir a música atentamente – um deles até entra dentro da concha do aparelho. Ainda no mesmo pedaço do filme, é feita uma bela montagem paralela entre Jean no barco (o Atalante) e Juliette (Dita Parlo) em Paris – ambos sofrendo a ausência um do outro.

No final desta cena, vemo-los cada um em sua cama, revirando-se e mexendo os braços como se abraçassem um ao outro – primeiro através da montagem paralela e depois através de uma muito bem encaixada sobreimpressão. Juntemos a isso a preferência do diretor por enquadramentos em ângulos pouco comuns, principalmente a profusão de plongées e contre-plongées; e o jogo de contraste entre o branco e o preto: o branco dos trajes de Juliette e o preto daqueles de Jean,

e especialmente o plano talvez mais belo do filme – Juliette toda de branco andando pelo convés negro do Atalante durante a noitinha e a câmera acompanhando-a em panorâmica. Jean Vigo é um cineasta que entende como poucos o poder da fotogenia, que está no DNA das artes visuais – particularmente a fotografia e o cinema. Este é o único longa-metragem do diretor, que morreu pouco tempo depois. Resta-nos imaginar as obras-primas jamais realizadas.

segunda-feira, março 01, 2010

Na Teia do Destino



A “boat house” da família burguesa da Sra. Harper não é apenas símbolo do seu status. É também a câmara escura onde são praticados e ficam relegados os crimes necessários à boa manutenção das aparências e do estilo de vida dos cidadãos de bem. Tudo em segredo, logicamente. A própria configuração do espaço dramático nesta pérola clássica (1949) de Max Ophüls – não por acaso, homem de teatro tanto quanto de cinema – remete simbolicamente ao choque de forças do qual o filme extrai sua grandeza estética.

Na frente, vemos a casa da família, com seus cômodos típicos, muito bem iluminados e limpos. Ambiente onde se desenrolarão aqueles pequenos dramas desimportantes do cotidiano cinza da classe média norte-americana: o pai ausente em viagem de trabalho, o filho David entrando na puberdade e já querendo ser o “homem da casa”, a filha Beatrice envolvida com um namorado que a mãe não aprova...

Mas as consequências mais constrangedoras deste último, o trabalho sujo que ele requerirá será feito nos fundos, na “boat house”, no cômodo sujo, desorganizado e sobretudo escuro. É lá que Bea, num encontro secreto com seu amante – o suspeito Sr. Darby – descobrirá algumas verdades sobre ele e, tentando se livrar dos seus braços, dará um golpe em sua cabeça e fugirá. O homem, desorientado, cairá de um parapeito mal conservado por sobre uma âncora e morrerá.

A mãe, Lucia (Joan Bennett), encontrará o cadáver na manhã seguinte e rapidamente tomará uma péssima decisão: ocultá-lo. Arrasta-o para o barco da família e leva-o para ser despejado mais ou menos longe dali. É aí que a fita passará de melodrama familiar para um autêntico film noir. O título original (“Reckless Moment” = momento atrevido, inconsequente) também se justificará na cena em questão, verdadeira aula de cinema: a movimentação de câmera, os primeiros planos, os raccords,

tudo é feito de uma maneira que a expressividade dos gestos e das expressões faciais atinja o paroxismo. E o que é mais interessante: neste único dos vários momentos dramáticos do filme, a música silencia. Sim, o cinema fala mais alto do que o melodrama. Mas muito dessa estilística toda contagia o filme por completo. Lucia enfrentará as trágicas consequências da sua decisão na figura de um chantagista, o Sr. Donnely (James Mason), que mantém as cartas que Bea trocava com Darby.

A circunspecção da face e da fala de James Mason, em oposição ao medo e à insegurança manifestos em Joan Bennett também dão sabor especial a esta realização cinematográfica. Não contarei mais do enredo. Apenas que outras atitudes “atrevidas” serão tomadas na boat house e que, no final, os cidadãos de bem (Lucia e Bea) se salvarão e a vida voltará ao normal. Mas será que ao normal mesmo? A última cena é a chave de ouro do soneto: extremamente abalada pelo desenlace (sempre secreto) da história,

Lucia tem que se fazer de mãe e esposa solícita, e atender àquela ligação banal do marido para botar a conversa em dia, você sabe, falar da árvore de natal, das travessuras do filho, etc. O noir também se faz na alma, nos fundos escondidos dela. Mas tudo bem. A sujeira da boat house não chegou a atingir – muito – a casa principal. E a figura do marido ausente também é simbólica – até irônica: o Sr. Harper encontra-se em Berlim, ajudando a reconstruir a cidade, limpando-a dos últimos sinais de outros “reckless moments”.