sábado, março 06, 2010

O Silêncio


Um adendo ao comentário de anteontem sobre Asas do Desejo: Wim Wenders dedica as aventuras do anjo Damiel, apaixonado pela existência, aos “ex-anjos” Yasujiro Ozu, François Truffaut e Andrei Tarkovski. O filme termina com a imagem solitária do anjo Cassiel – parceiro de Damiel – e com o manjado logotipo: “to be continued...” Muito bem. A continuação foi Tão Longe, Tão Perto (“Far Away, So Close”, Alemanha, 1993), que mostra a “queda” de Cassiel. Contudo, diferentemente do seu amigo, o anjo loiro receberá nesta vida e neste mundo apenas as doses cavalares de indiferença, violência, frustração, dúvida, sofrimento e... morte.

Já faz muito tempo que vi Tão Longe, Tão Perto, lembro-me de poucos detalhes e não sei se há nele alguma dedicatória. Mas se houver, bem que poderia ser àqueles cineastas que também são ex-anjos, mas cuja visão e filosofia identifiquem-se à vida que coube a Cassiel. Falo de Carl Theodor Dreyer, Michelangelo Antonioni, Ingmar Bergman... E aqui chegamos a O Silêncio (“Tystnaden”, Suécia, 1963). Ninguém soube mergulhar nas trevas da alma como Bergman. Pelo menos, não com um cinema que não seja apenas discurso (as intenções do diretor) ou estética “marketeira”.

Bergman é cinema de gente grande. Não é um “garoto enxaqueca”... É um HOMEM-enxaqueca – só para colocar em termos mais brincalões. A fotografia de O Silêncio é voltada muito para o olhar das personagens, um olhar blasé na maior parte do tempo – mesmo o do garoto Johan. E a postura “blasé” (o tédio existencial) não se manifesta, por sua própria natureza, em atos de maior consequência. O tédio, assim como o velho cinismo, implica grande indiferença, negligência até. A não-participação voluntária. Ou, pelo menos, uma participação “não-participativa”, que guarda sempre algum distanciamento defensivo entre o sujeito e o objeto, entre sujeito e outro sujeito.

Eis o caráter das relações no filme, que toma seu lugar na chamada “trilogia do silêncio” ou “trilogia da fé” empreendida pelo diretor sueco. As outras partes são: Através de Um Espelho (1961) e Luz de Inverno (1962). Assim, O Silêncio é um filme das inconsequências: olhares inconsequentes, diálogos inconsequentes, gestos inconsequentes, movimentos inconsequentes, decisões inconsequentes... Toda essa indiferença e distanciamento são bem próprios aos corpos-fantasmas de Ester, sua irmã Anna e o filho desta, Johan, vagando pelo vazio de um hotel quase deserto, confinados no limbo do próprio ser-no-mundo

– a coisa mais inconsequente de todas, pois quaisquer relações entre a coisa e o ser, ou ainda entre este e Deus, revelam-se inexistentes. Para Bergman, as relações ditas humanas são pautadas pela indiferença, pelo ressentimento (a querela entre as duas irmãs remonta ao passado mais distante) e pela impossibilidade de qualquer comunicação, qualquer entendimento. Então, o silêncio impera. Pensamos agora na também famosa trilogia da incomunicabilidade de Antonioni (A Aventura – 1960; A Noite – 1961; O Eclipse – 1962), outro poeta maldito do cinema... anjo caído.

Eis o cinema da inércia (pois não importa o quanto as personagens se movimentem, os seus problemas não serão resolvidos) e do silêncio, um cinema no qual só resta o tempo, percebido com todo o seu peso do inexorável. Enquanto tudo o resto permanece lento, parado ou inexistente, o tempo corre rápido e faz questão de que nós nos demos conta disso. A morte está sempre à espreita e é a “final destination” a que se costuma chegar nos filmes de Bergman. O tique-taque nervoso de um relógio que não se vê, mas que é leitmotiv alegórico neste filme, procura captar a materialidade do tempo que é a única vontade “metafísica” a que estamos sujeitos – pois Deus também se silencia.

Há uma atmosfera de impasse irresolúvel por todo o filme, em todas as linhas de força que digladiam na mise en scène. É bela e significativa a profundidade de campo trabalhada por Bergman em diálogos cuja imagem dos corpos distribuídos no espaço e em perspectiva expressa o distanciamento afetivo, carnal, ontológico. Também o jogo de luz e sombra, de reflexos ao espelho (lembramo-nos duma cena até burlesca entre Ester e o funcionário do hotel), merece destaque aqui: filia-se ao melhor dos mestres escandinavos (Dreyer, Sjöstrom), com seu cinema cruel e fantasmagórico.

Já que falamos em burlesco, podemos até entrever uma solução para os impasses existenciais de O Silêncio (ainda que, no filme, esta seja logo reprimida com toda a agressividade da “natureza” humana): trata-se do nonsense. Em vista da inquestionável falta de sentido da vida e do mundo, assumamos esta mesma falta de sentido, não necessariamente com aquele cinismo amargo, mas com a inocência de uma criança que brinca em completa ignorância da “máquina do mundo”. O irracional e desproposital da brincadeira talvez sejam a única razão e propósito que nos restam. Por isso, é de se prestar atenção nas cenas que envolvem a trupe dos anões circenses. É o mais sublime deste filme.

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