quinta-feira, março 04, 2010

Asas do Desejo


“Algo aconteceu. Ainda está acontecendo. Me prende. Foi verdade à noite e é verdade agora, neste momento. Quem foi quem? Estive dentro dela e ela, em volta de mim. Quem neste mundo pode dizer que já esteve unido a outro ser? Eu estou unido. Nenhuma criança mortal foi concebida, mas sim um quadro imortal compartilhado. Aprendi sobre estupefação esta noite. Ela me levou para casa, e encontrei o meu lar. Aconteceu uma vez. Aconteceu uma vez, portanto vai acontecer. A imagem que criamos me acompanhará quando morrer. Terei vivido em seu interior. Somente a estupefação com nós dois, a estupefação com o homem e a mulher me tornou humano. Eu agora sei o que nenhum anjo sabe.”

Essa é a última anotação que o ex-anjo Damiel (Bruno Ganz) faz em seu diário. E resume bem o caráter excepcional deste grande filme de Wim Wenders (que já havia realizado uma quase obra-prima em Paris, Texas - 1984). Asas do Desejo (“Wings of Desire”, 1987) é praticamente um manifesto de uma fenomenologia da carne e de um transcendentalismo às avessas: do ideal ao material. Um manifesto prenhe de poesia, de lirismo. Mas, ei! Grandes poetas (Whitman, Drummond) já reconheceram o potencial epifânico da sexualidade e do erotismo. Sem contar a grande poesia do cotidiano, do banal, da vida e do mundo os mais simples e toda a gama de sensações que podem proporcionar aos mortais (o que vemos em Baudelaire, em Pessoa, em Bandeira... e no Manoel de Barros).

Serão todos ex-anjos? Anjos caídos por sua própria escolha e decisão? Anjos-fantasmas em um universo sem Deus, condenados a testemunhar e lembrar pela eternidade a nossa história mortal, sem que possam tomar parte nela, tampouco construir sua própria história? Ah, anjos assim tornam-se os melhores dentre os humanos: os visionários, os profetas, e sobretudo, artistas. Seria essa a filiação sobrenatural (no dizer de outro poeta-anjo, Murilo Mendes) de Wim Wenders? O certo é que ele dedica seu filme a todos os “ex-anjos”, especialmente a “Yasujiro, François e Andrei”... Troquemos em miúdos: trata-se de Ozu, Truffaut e Tarkovski. Todos os três, poetas das imagens em movimento, escultores do tempo (nas palavras do mestre russo).

Apaixonados pela vida, pelo mundo e pelo ser... sim, apaixonados pelo mero existir de tudo e de si mesmos, mesmo reconhecendo – ou porque reconhecendo – todas as suas vicissitudes. É preferível sentir e morrer, o que já caracteriza uma história, do que não-viver por toda a eternidade, não? Os anjos Cassiel (Otto Sander) e Damiel são curiosos de história. Este busca a sua própria; aquele a dos homens: por isso, ele acompanha os passos e os pensamentos do velho “Homero”, o qual lamenta que a humanidade perdeu os ouvidos da história; o poeta / aedo hoje é uma figura patética e solitária. É irônico que o servo da deusa Mnemosine (a Memória) termine sua história relegado ao esquecimento – o olvido... É o famoso “fim da história”, já se fazendo ver nos últimos dias de uma Berlim dividida?

Ou trata-se, na verdade, da impossibilidade da história, de uma história totalizante, nos tempos pós-modernos, pós-barbárie? Lembrar fragmentos, eis o que resta a “Homero” e a Cassiel: fragmentos do nazismo – o maior atentado já perpetrado contra a memória / história. Eis o drama do anjo loiro. Agora, vamos ao anjo moreno. Damiel não é um fantasma. Damiel é um corpo, uma presença concreta nos termos que são os que realmente interessam aqui: os diegéticos. Em todo o filme, Wim Wenders nos ensina uma grande lição de estética cinematográfica: é importantíssima a presença física em cena de Bruno Ganz. Para o espectador, que vê a tela do cinema como janela para o real – janela precisamente desenhada pelos óculos que vestem o olhar do diretor alemão,

como ele mesmo gosta de afirmar no documentário Janela da Alma (Brasil, 2002, dir.: João Jardim) –, é curioso imaginar os outros atores representando seus papéis como se o anjo Damiel / Ganz não estivesse ali. A sua presença, “visível” apenas para nós, torna-se gritante. Qualquer diretor menor de hoje em dia, daqueles com muita técnica e pouca estética, colocaria logo a figura de Ganz em sobreimpressão. Victor Sjöström utiliza tal expediente em A Carruagem Fantasma (“Körkarlen”, Suécia, 1921), mas nesse caso está tudo bem, pois os efeitos especiais mais elementares do cinematógrafo ainda precisavam ser explorados. Hoje, uma solução dessas soaria para lá de banal.

Wim Wenders é sábio em usar a sobreimpressão apenas no plano que mostra rapidamente as asas do anjo Damiel de pé no alto de um prédio, logo no começo do filme, para que não surjam quaisquer dúvidas a respeito da natureza do personagem. Estas asas são o único elemento efetivamente fantasmagórico do filme, uma vez que não fazem parte do universo humano. Por sua vez, todo o resto do corpo de Damiel – ou melhor, a imagem do seu corpo – é devidamente humano, familiar na forma e também no conteúdo (que é o desejo, coisa que define a trajetória de nossas vidas). Uma tal identidade justifica à perfeição a presença física do ator no espaço diegético em que se move o personagem. Vemos ali um corpo como o nosso, não-materializado, mas um corpo de desejo tanto quanto o nosso,

desejoso da sensação de tomar banho, beber um café, unir-se ao corpo de uma mulher... É um corpo que assiste ao nosso plano de existência, mas não tem contato direto com ele, não é sensorial para nós; por isso fica-lhe e resta a ele a vontade da sensação, do tato, do olfato. Trata-se do mesmo quinhão reservado ao espectador de cinema: dentro da sala escura – mesmo nas mais modernas com imagens em 3D – somos todos anjos de Wim Wenders... Vem daí o efeito, a comoção tão sutil e ao mesmo tempo tão impactante que esta película provoca em nós? “Quando a criança era criança, não sabia que...”, diria Damiel. Jamais saberemos. Mas eu gostaria de voltar à filiação que o diretor se propõe aos “former angels” Yasujiro Ozu, François Truffaut e Andrei Tarkovski, respectivamente.

Asas do Desejo dialoga com a alegre condescendência de Bom Dia (Japão, 1959): a preferência pelas coisas e pessoas simples; com a alegria de filmar de Jules et Jim (França, 1961): a busca da vida brincalhona de amor e prazer; e com a meditação serena de Stalker (URSS, 1979): o ritmo vagaroso, apegado aos “tempos mortos” da narrativa – a imagem-tempo segundo Giles Deleuze, ou aquele esculpir o tempo, segundo o próprio cineasta russo. Especialmente relação a este último, Wenders também vai buscar no Tarkovski a alternância entre imagens em preto-e-branco e em cores, assim como os longos monólogos de ares filosóficos. Mas justamente por toda essa emulação, Asas do Desejo talvez não tenha o potencial para clássico de Paris, Texas. Mesmo assim, vale muitíssimo a pena ver, rever e guardar no coração.

5 comentários:

Wally disse...

Preciso conhecer o Cinema de Wim Wenders. Este primeiro parágrafo seu aí me instigou muito. Qual filme dele recomenda para iniciação?

André Renato disse...

Cara, preciso confessar que não vi todos os do Wenders ainda, principalmente os mais antigos... Mas recomendo em primeiro lugar "Paris, Texas". Depois, veja "Asas do Desejo" e sua sequência, "Tão Longe, Tão Perto". Os filmes mais novos, como "Million Dollar Hotel", já não acho tão interessantes...

Jonathan Pereira disse...

Olá André,

Chegamos ao seu belo blog, procurando críticas sobre esse filme. Nós acabamos de assisti-lo e em breve postaremos nossas análises no 'http://oteatrodavida.blogspot.com' onde comentamos, entre outros temas, os '1001 Filmes Para Ver Antes De Morrer'.

Aproveito para parabenizá-lo pelo blog, comunicá-lo que colocamos este espaço no nosso blogroll e convidá-lo a nos visitar e participar do nosso espaço.

Abraços,

Jonathan Pereira

Nyx disse...

A muitos anos queria assitir a esse filme. Tive a honra e o prazer de fazê-lo na madrugada de ontem. E justamente o que me encantou no filme foi a ausência de "efeitos especiais", a competência de transmitir em imagens simples, a agonia, a ânsia de querer "provar" a humanidade, no seu estado mais puro e físico, e de emocionar. Trazer à tona a empatia, a memória de ser um anjo, um ser etéreo que a tudo assiste, nem sempre placidamente. Parabéns ao cineasta por esta obra riquíssima!

Anônimo disse...

Post legal, é o primeiro filme de Wanders que assistir, mas ele me conquistou pelas raizes...e o Tão longe, tão perto? alguem já viu?

tbm fiz uma resenha desse filme, vejam lá pessoas :)