É realmente engraçado ver hoje uma ficção científica já antiga em que o futuro se tornou nosso passado. Fuga de Nova York (“Escape From New York”, EUA, 1981) se passa no “distante” ano de 1997, em que os Estados Unidos, mergulhados numa guerra que já deixara de ser fria, tornam-se um estado policial. Com as estatísticas de “criminalidade” fora de controle, o governo decide transformar a ilha de Manhattan numa prisão – ou, melhor dizendo, num depósito de gente indesejada.
Nova York, outrora a porta de entrada para a terra da liberdade, torna-se símbolo de uma América já esquecida dos valores de sua fundação. Quando a nação mais poderosa do planeta passa a ser governada por gente vinda da chamada “América profunda” (aquele meio-oeste tenebroso), é natural que as metrópoles litorâneas mais cosmopolitas sejam as primeiras a cair – a sequência é Fuga de Los Angeles, filmada por John Carpenter em 1996. Mas Fuga de Nova York não é, evidentemente, um libelo anti-Bush.
Ainda que a paranóia americana apenas troque de alvo, mantendo suas características mais típicas, este clássico de Carpenter não trata de terroristas islâmicos, mas dos velhos comunistas. Mas, ei! Com Hugo Chavez à solta, quem foi que disse que o velho “brainstorm” ideológico saiu de moda? De qualquer maneira, no filme testemunhamos o sequestro do avião presidencial norte-americano pela “Aliança de Libertação da América”, a qual, depois de um discurso inflamado pelo rádio de comunicação
(que lembra muito o chavista), arremessa a aeronave contra um dos arranha-céus de Manhattan (!). Então, as autoridades enviam um ex-heroi de guerra – e hoje réu condenado – numa missão secreta (a famosa “stealth action”, ou ação furtiva, que inspirou diretamente a série de video-games “Metal Gear: Solid” – não é à toa que o herói ali responde também pela alcunha de Snake) para resgatar o presidente. Trata-se de Snake Plissken (Kurt Russell), anti-herói por excelência, que entra na ilha graças a um planador que ele pousará cuidadosamente no terraço do World Trade Center (!!).
Uma sinopse dessas naturalmente não dará conta de todo o poder da imaginação, da sugestão e da efabulação provocativas de John Carpenter, que aqui se faz mestre na ficção pós-apocalíptica e distópica. A história e os personagens deste filme, nas mãos de qualquer diretor dos que pululam por aí, serviria apenas de propaganda ideológica da mesma barbárie governamental que Snake Plissken despreza. Não, Snake não é um “Rambo”. Fuga de Nova York é um filme subversivo,
daqueles que temo não serem mais “possíveis” de se fazer em território americano hoje em dia (sim, o futuro chegou, 1997 passou há mais de dez anos), a não ser talvez por um George Romero (Terra dos Mortos – 2005; Diário dos Mortos – 2007). De qualquer maneira, só como exemplo, é curioso o fato de o vencedor de ontem no Oscar de melhor filme, Guerra ao Terror, ter sido financiado na França por não conseguir apoio “em casa”. Enfim, a obra de Carpenter é incrível não só pelo conteúdo,
mas também pela realização formal – que é, em cinema, o que mais interessa e condição imprescindível para um “conteúdo” bem colocado. John Carpenter, como qualquer um de nós – inclusive Osama Bin Laden –, sabe muito bem o poder iconográfico e simbólico da paisagem nova-iorquina. Toda a introdução do filme deixa isso muito claro, em diversos planos que fazem questão de colocar as torres gêmeas numa posição expressiva dentro do quadro. Mas isso, em 1981, era uma opção estética quase instintiva,
assim como é “instintivo” hoje os filmes e fotografias destacarem (voltarem a destacar, muito evidentemente) o Empire State Building. O maior mérito de Carpenter foi transformar o World Trade Center abandonado numa pantagruélica massa fantasmagórica, um monstro-ruínas de uma promessa social que não se concretizou. Vestido de sombra e de escuridão, o WTC provoca no espectador um terror quase infantil, como quando vemos, da calçada ou da rua, a massa noturna de um prédio em construção – ou abandonado.
A maneira como cria suspense e susto em muitos planos revela que John Carpenter é, antes de mais nada, um dos “masters of horror”, mesmo neste filme que não pertence, em princípio, ao gênero do terror. Veja-se, só como dois exemplos, a cena em que a gangue dos esgotos sai para a caçada noturna e, principalmente, uma panorâmica no começo do filme em que a câmera escala o muro de contenção da ilha de Manhattan e revela no horizonte a linha escura da cidade-fantasma, terra sem-lei e de ninguém.
Também são de grande sabedoria fotogênica: a imagem de uma mini-perfuradora de poço de petróleo instalada e funcionando dentro da biblioteca municipal; a imagem do espetáculo de “teatro de variedades” assistido por bêbados e mendigos numa ampla – e arruinada – casa de ópera; as várias imagens de humilhação e tortura física e psicológica infligidas ao presidente-refém, as quais beiram as raias do fetiche sexual (uma das faces da subversão de que já falamos).
O poder visual – o imaginativo tanto quanto o verossímil – de um filme de ficção pós-apocalíptica depende muito da direção de arte, ou do “set decorator”, ou ainda do “production designer”. Fuga de Nova York sempre me surpreendeu nesse sentido (vejo esse filme há uns 25 anos) e continua estimulando nossa imaginação, mesmo em relação à tecnologia mais futurista que produziu Avatar, por exemplo (e que ganhou um Oscar ontem por isso). O mergulho alucinatório em um outro plano de realidade,
eis uma das grandes atribuições do cinema, presente quase desde o seu nascimento (na obra de Georges Méliès) – digo isso apenas para provocar aqueles que acham, por exemplo, que Avatar apenas “engana bem”. Cinema é, antes de mais nada, arte das imagens em movimento. John Carpenter sabe muito bem disso. Fuga de Nova York não é um filme-cabeça. É um filme de gênero, uma produção “hollywoodiana”. Mas é também um filme de autor, tem uma proposta e uma estética. E sabe enganar muito bem. Parabéns.
Nova York, outrora a porta de entrada para a terra da liberdade, torna-se símbolo de uma América já esquecida dos valores de sua fundação. Quando a nação mais poderosa do planeta passa a ser governada por gente vinda da chamada “América profunda” (aquele meio-oeste tenebroso), é natural que as metrópoles litorâneas mais cosmopolitas sejam as primeiras a cair – a sequência é Fuga de Los Angeles, filmada por John Carpenter em 1996. Mas Fuga de Nova York não é, evidentemente, um libelo anti-Bush.
Ainda que a paranóia americana apenas troque de alvo, mantendo suas características mais típicas, este clássico de Carpenter não trata de terroristas islâmicos, mas dos velhos comunistas. Mas, ei! Com Hugo Chavez à solta, quem foi que disse que o velho “brainstorm” ideológico saiu de moda? De qualquer maneira, no filme testemunhamos o sequestro do avião presidencial norte-americano pela “Aliança de Libertação da América”, a qual, depois de um discurso inflamado pelo rádio de comunicação
(que lembra muito o chavista), arremessa a aeronave contra um dos arranha-céus de Manhattan (!). Então, as autoridades enviam um ex-heroi de guerra – e hoje réu condenado – numa missão secreta (a famosa “stealth action”, ou ação furtiva, que inspirou diretamente a série de video-games “Metal Gear: Solid” – não é à toa que o herói ali responde também pela alcunha de Snake) para resgatar o presidente. Trata-se de Snake Plissken (Kurt Russell), anti-herói por excelência, que entra na ilha graças a um planador que ele pousará cuidadosamente no terraço do World Trade Center (!!).
Uma sinopse dessas naturalmente não dará conta de todo o poder da imaginação, da sugestão e da efabulação provocativas de John Carpenter, que aqui se faz mestre na ficção pós-apocalíptica e distópica. A história e os personagens deste filme, nas mãos de qualquer diretor dos que pululam por aí, serviria apenas de propaganda ideológica da mesma barbárie governamental que Snake Plissken despreza. Não, Snake não é um “Rambo”. Fuga de Nova York é um filme subversivo,
daqueles que temo não serem mais “possíveis” de se fazer em território americano hoje em dia (sim, o futuro chegou, 1997 passou há mais de dez anos), a não ser talvez por um George Romero (Terra dos Mortos – 2005; Diário dos Mortos – 2007). De qualquer maneira, só como exemplo, é curioso o fato de o vencedor de ontem no Oscar de melhor filme, Guerra ao Terror, ter sido financiado na França por não conseguir apoio “em casa”. Enfim, a obra de Carpenter é incrível não só pelo conteúdo,
mas também pela realização formal – que é, em cinema, o que mais interessa e condição imprescindível para um “conteúdo” bem colocado. John Carpenter, como qualquer um de nós – inclusive Osama Bin Laden –, sabe muito bem o poder iconográfico e simbólico da paisagem nova-iorquina. Toda a introdução do filme deixa isso muito claro, em diversos planos que fazem questão de colocar as torres gêmeas numa posição expressiva dentro do quadro. Mas isso, em 1981, era uma opção estética quase instintiva,
assim como é “instintivo” hoje os filmes e fotografias destacarem (voltarem a destacar, muito evidentemente) o Empire State Building. O maior mérito de Carpenter foi transformar o World Trade Center abandonado numa pantagruélica massa fantasmagórica, um monstro-ruínas de uma promessa social que não se concretizou. Vestido de sombra e de escuridão, o WTC provoca no espectador um terror quase infantil, como quando vemos, da calçada ou da rua, a massa noturna de um prédio em construção – ou abandonado.
A maneira como cria suspense e susto em muitos planos revela que John Carpenter é, antes de mais nada, um dos “masters of horror”, mesmo neste filme que não pertence, em princípio, ao gênero do terror. Veja-se, só como dois exemplos, a cena em que a gangue dos esgotos sai para a caçada noturna e, principalmente, uma panorâmica no começo do filme em que a câmera escala o muro de contenção da ilha de Manhattan e revela no horizonte a linha escura da cidade-fantasma, terra sem-lei e de ninguém.
Também são de grande sabedoria fotogênica: a imagem de uma mini-perfuradora de poço de petróleo instalada e funcionando dentro da biblioteca municipal; a imagem do espetáculo de “teatro de variedades” assistido por bêbados e mendigos numa ampla – e arruinada – casa de ópera; as várias imagens de humilhação e tortura física e psicológica infligidas ao presidente-refém, as quais beiram as raias do fetiche sexual (uma das faces da subversão de que já falamos).
O poder visual – o imaginativo tanto quanto o verossímil – de um filme de ficção pós-apocalíptica depende muito da direção de arte, ou do “set decorator”, ou ainda do “production designer”. Fuga de Nova York sempre me surpreendeu nesse sentido (vejo esse filme há uns 25 anos) e continua estimulando nossa imaginação, mesmo em relação à tecnologia mais futurista que produziu Avatar, por exemplo (e que ganhou um Oscar ontem por isso). O mergulho alucinatório em um outro plano de realidade,
eis uma das grandes atribuições do cinema, presente quase desde o seu nascimento (na obra de Georges Méliès) – digo isso apenas para provocar aqueles que acham, por exemplo, que Avatar apenas “engana bem”. Cinema é, antes de mais nada, arte das imagens em movimento. John Carpenter sabe muito bem disso. Fuga de Nova York não é um filme-cabeça. É um filme de gênero, uma produção “hollywoodiana”. Mas é também um filme de autor, tem uma proposta e uma estética. E sabe enganar muito bem. Parabéns.
Nenhum comentário:
Postar um comentário