segunda-feira, março 22, 2010

O Segredo dos Seus Olhos


Eu me lembro de ter falado muito mal a respeito de Desejo e Reparação (“Atonement”, 2007). O filme parecia ter sido feito segundo uma receita: uma colher de sopa de romance (e romance impossível, é lógico), duas pitadas de drama social com cobertura histórica, uma colher de chá de suspense (um mistério a ser resolvido, melhor ainda se for um crime); misturar tudo numa narrativa sofisticada que aconteça paralelamente em diversos planos (presente e passado, aqui e lá, devaneio e realidade) e enfeitar com uma fotografia “de revista”, com uma fina direção de arte (sem esquecer os figurinos) e com uma trilha sonora que vá pautando e conduzindo os momentos mais emocionais. Muito bem. Só que o problema da fita de Joe Wright era que tudo isso saiu do forno, no final do processo, com um gosto excessivamente artificial – muito além da conta.

Em princípio, não há problema algum com “fórmulas” – contanto que não se ache que a ciência e a técnica substituam a arte. Ou que esta decorra natural e invariavelmente daquelas – o que é a crença mais comum, infelizmente. Existe algo em toda obra que simplesmente não pode ser encontrado em análises “formalistas”. Algo de sutil, de sublime, de metafísico até. Algo de subjetivo. E isto não se aprende em escolas, faculdades etc. Desejo e Reparação é um filme por demais profissional, feito para provocar efeito, para abocanhar premiações (da Academia, principalmente). Um filme assim não funciona. Agora, O Segredo dos Seus Olhos (“El Secreto de Sus Ojos”, Argentina / Espanha, 2009, dir.: Juan José Campanella) funciona. Por que? As “fórmulas” de ambos são muito parecidas. Mas por que um consegue nos convencer (relativamente) e o outro não?

Eu arriscaria dizer que Campanella (que fez O Filho da Noiva – “El Hijo de La Novia”, 2001) é um diretor que se coloca mais de coração. E, principalmente, ele sabe equilibrar esse coração com os outros elementos que devem compor um filme, de acordo mesmo com os padrões da indústria norte-americana. Afinal de contas, os filmes que costumam ganhar óscares são uma mistura bem bolada de padrões artísticos e padrões “comerciais”, de razão e emoção, não é mesmo? No que Desejo e Reparação fracassou, O Segredo dos Seus Olhos chegou lá – ganhou este ano o prêmio de melhor filme estrangeiro. Campanella já tem currículo em Hollywood: dirigiu vários episódios de diversos seriados de TV: House, Law & Order, 3rd Rock etc. Mas o filme de Wright também busca equilibrar em sua receita todas essas coisas. Então, o que deu errado... mesmo?

Podemos até afirmar que O Segredo dos Seus Olhos foi feito para mastigar o Oscar. Mas, nessa feitura, o seu aspecto “profissional” (que já é muito grande) não sombreia por completo o seu aspecto “artístico” – ou, se preferirem a terminologia mais cara à crítica de cinema, o seu aspecto “autoral”. Se alguns filmes são biscoito fino, posto que industrializados, esta película de Campanella tem mais gosto de comidinha da vovó (mas não muito; a fita ainda se arvora majoritariamente na linha do cinema industrial “de qualidade”). Eu tinha dito lá atrás que subjetividade artística não se aprende na escola ou na faculdade. Isso continua verdadeiro. E significa que não há método formal (com o perdão do pleonasmo, uma vez que todo “método” já pressupõe uma formalização e racionalização) de aprendizado, exercício e manifestação de coisas mais íntimas.

Não obstante, não é o caso de que a esfera do subjetivo esteja entregue à mais anárquica das espontaneidades. É perfeitamente possível passarmos por uma “educação sentimental”, através da vivência e de exemplos artísticos. E neste sentido, os clássicos são os melhores materiais didáticos de que podemos dispor. O fato é: percebemos em Campanella a profundidade temática e o rigor estilístico (ambos em equilíbrio, produzindo uma rica atmosfera) próprios do cinema clássico de Hollywood. As narrativas em paralelo, o carisma das personagens, a mistura de gêneros (o humor em algumas cenas, associado ao romance, ao drama e ao suspense) e o incrível plano-sequência no estádio de futebol são – dentre outros elementos – coisa de cineasta culto, de cineasta cinéfilo. Eis a diferença: Desejo e Reparação e O Segredo dos Seus Olhos podem compartilhar da mesma receita.

Mas aquele foi buscá-la em alguma cartilha de faculdade de audiovisual, enquanto este encontrou o seu modo de ser vendo as obras-primas da História do Cinema. Com o perdão da rápida associação, eis alguns nomes que nos parecem servir de base ao diretor: William Wyler, Billy Wilder, Michael Curtiz, Carol Reed e... Costa-Gravas. Isso não quer dizer, logicamente, que Campanella tenha produzido uma obra-prima como as dos seus “ídolos”. A distância aqui é bem maior do que aquela que sentimos entre a Ilha do Medo – que discutimos recentemente – e os mestres que Scorsese pareceu querer emular nesse filme. O Segredo dos Seus Olhos possui alguns defeitos próprios de filmes “biscoitos-finos”: 1. alguns primeiros-planos em que se deixa nítido somente o centro do quadro (sendo que as laterais estão no mesmo plano e fazem parte, muitas vezes, do mesmo objeto de interesse).

Para que isso? Só para ficar “bonito”? Só para ficar com cara de fotografia da National Geographic? Esse esteticismo vazio resvala perigosamente na publicidade (basta ver qualquer filme de propaganda que apele muito emocionalmente para coisas bonitas como amor, memória, família... tal como aquelas “campanhas” de carros ou de bancos, que costumam aparecer antes dos “trailers” nas salas de exibição – hábito cruel esse). 2. o enquadramento levemente inclinado de alguns planos, sem que haja nada que justifique tal escolha: ela não expressa a visão subjetiva de alguma personagem, nem a tensão psicológica da cena, ou qualquer outra tentativa de alegorização que pudemos identificar. Orson Welles exerceu-os muito bem; mas Carol Reed, em O Terceiro Homem (1949), também abusou gratuitamente desses efeitos (conforme alguns críticos já apontaram).

Pesando tudo na balança, o conjunto e o resultado finais de O Segredo dos Seus Olhos parecem-nos satisfatórios – as inconsistências citadas não são sistematicamente repetidas e enfatizadas, na crença ingênua de serem qualidades (o que é o mais irritante a respeito de Desejo e Reparação). Comparem-se os dois planos-sequência presentes em ambos os filmes: qual é o mais “espetacular” – e vazio – e qual o mais “maduro” – e significativo? Por tudo o que vimos, faz sentido o filme de Campanella ter ganhado o Oscar e A Fita Branca de Haneke ter ficado “apenas” com a Palma de Outro em Cannes. De resto, não dá para comparar as duas obras para dizer qual é a “melhor”. São gêneros, estéticas, propostas absolutamente diferentes. O bom cinéfilo saberá apreciar ambas, no que cada uma tem de particular a oferecer.

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