quarta-feira, setembro 21, 2011

Thor


Caçadores de mitos.

“A iconoclastia da Reforma abriu literalmente uma fenda na muralha protetora das imagens sagradas e desde então elas vêm desmoronando umas após as outras. Tornaram-se precárias por colidirem com a razão desperta. Além do mais, muito antes seu significado já fora esquecido. Terá sido realmente um esquecimento? Ou, no fundo, o homem jamais soube o que significavam, e só recentemente a humanidade protestante percebeu que não temos a menor idéia do que quer dizer o nascimento virginal, a divindade de Cristo, e as complexidades da Trindade? Até parece que essas imagens simplesmente surgiam e eram aceitas sem questionamento, sem reflexão, tal como as pessoas enfeitam as árvores de Natal e escondem ovos de Páscoa, sem saberem o que tais costumes significam. O fato é que as imagens arquetípicas têm um sentido a priori tão profundo que nunca questionamos seu sentido real (grifo meu). Por isso os deuses morrem, porque de repente descobrimos que eles nada significam, que foram feitos pela mão do homem, de madeira ou pedra, puras inutilidades. Na verdade, o homem apenas descobriu que até então jamais havia pensado acerca de suas imagens. E quando começa a pensar sobre elas, recorre ao que se chama “razão”; no fundo, porém, essa razão nada mais é do que seus preconceitos e miopias (outro grifo meu).” C. G. Jung, Sobre os arquétipos do inconsciente coletivo, in Os arquétipos e o inconsciente coletivo.

Utilizei o texto acima para discutir O Labirinto do Fauno, em cujo final “surpreendente” o diretor e roteirista Guillermo del Toro pareceu sugerir que as personagens, cenários e acontecimentos fantásticos não passavam de uma defesa psíquica que a jovem protagonista teria criado para lidar com a barbárie fascista a cujo poder a família dela estava submetida. Naquele texto já antigo, defendi a tese de que seria melhor acreditar na realidade diegética da “fantasia” de Ofélia, pois somente assim as imagens seriam capazes de manter um encanto que lhes traria poder para se opor, semanticamente, à verossimilhança da violência cometida por regimes totalitários.

De qualquer maneira, precisamos refletir sobre a tendência “materialista” do cinema fantástico de hoje em dia. Tendência essa que sempre busca, de modo um tanto quanto neurótico, alguma explicação “científica” para fenômenos outrora chamados de mágicos. Isso quando não se amputa, pura e simplesmente, o coração mitológico de narrativas que sempre foram nada mais, nada menos do que lendas, em uma obsessão fetichista / positivista pelo que seja “histórico”, “documentado”, “comprovado”, “possível” de ter acontecido debaixo de nossa abóbada celeste. Essa perversão não deixa de nos fazer lembrar os fetiches de consumo, que se refestelam na perfeição técnica de um objeto plenamente manufaturado, controlado, funcional.

Como exemplos, temos a Troia (“Troy”, 2004), de Wolfgang Petersen, o mesmo que assinara, em 1984, A História Sem Fim – profissão de fé do imaginário poético, ameaçado de extinção pelo pensamento racionalista e utilitário de nossa época. É curioso que, vinte anos depois, ele tenha tomado a Ilíada de Homero (uma das obras fundadoras da mitologia e da literatura ocidentais) e lhe extirpado, muito cirurgicamente, todos os corpos numinosos, reduzindo tudo a um banho de sangue, suor e hormônios, bem ao gosto de qualquer filme de guerra contemporâneo.

Por outro lado, pode não se tratar exatamente de uma “tendência”, já que os contra-exemplos são abundantes e bem-sucedidos: dentre eles, podemos contar a Fúria de Titãs (“Clash of The Titans”, 2010, de Louis Leterrier) e a série Harry Potter (2001-2011). Mas a tara cientificizante e historicizante existe mesmo assim, e nos parece que os produtores, diretores ou roteiristas subestimam a suspensão de descrença por parte do público ao ostentarem diante de nossos narizes coisas como Thor (2011, de Kenneth Branagh). Convenhamos: ficou ridículo aplicar as não menos ridículas teorias do clássico best-seller “Eram os deuses astronautas?” à beleza poética dos mitos nórdicos, não?

Tudo bem que se trata da mitologia viking filtrada pela pulp fiction de Stan Lee – é o que um velho “lente” poderia contra-argumentar, dizendo que risível já é o próprio fato de transformar o deus do trovão em um super-heroi dos EUA. Mas tenhamos um pouco de boa vontade em nossos corações e reconheçamos que as histórias em quadrinhos ocuparam um cargo (bem ou mal, isso não vem ao caso neste texto) que tinha ficado vago após a tão falada “morte” dos deuses, iniciada na reforma protestante citada por Jung e cujos golpes de misericórdia foram dados por Marx, Nietzche e Freud. Um verdadeiro, sistemático e muito ecumênico deicídio.

Essa liberdade de filhos pródigos não deixa de nos causar um profundo mal-estar; com isso, ao invés de buscarmos apoio nas verdades metafísicas em que não podemos mais acreditar, voltamo-nos carentes para imagens propriamente físicas que estejam mais ao alcance curto das nossas mãos científicas: é aí que entra o messianismo extraterrestre, cujo profeta-mor é o Steven Spielberg de Contatos Imediatos de Terceiro Grau (1977) – um filme cujo tom e atmosfera recuperam a solenidade, o assombro e o gozo epifânico de qualquer narrativa mais “primitiva” do patrimônio arquetípico da espécie dominante no planeta Terra.

Seu discípulo principal (até agora) parece ser o Chris Carter responsável pela mítica série de TV Arquivo X (1993-2002): “Eu quero acreditar” era o mantra do seu protagonista (o agente do FBI Fox Mulder, que buscava evidências de vida extraterrestre como a um Santo Graal), assim como dos fãs mais fervorosos, e revela a força quase doutrinária de uma fé desencantada, desesperada. Mas voltemos ao Thor de Branagh. Este filme casa bem, em espírito, com alguns “documentários” do Discovery Channel, ou do History Channel (canais de TV paga): chamá-los de sensacionalistas seria um pleonasmo. De qualquer maneira, que gosta desse “oba-oba” terá um prato cheio em mãos.

Agora, quem cresceu em contato próximo com as narrativas mito-poéticas das mais diferentes tradições e culturas (e mesmo quem cresceu lendo os quadrinhos da Marvel), só terá a lamentar quando um companheiro de Thor tenta dissuadi-lo de voltar à Terra porque será inevitavelmente “adorado como um deus” (o que é tido como grande bobagem). Ou quando os personagens cientistas concordam, frente à evidência do contato imediato com o “deus do trovão”, que muito do que se achava mágico só estava à espera de uma análise científica... Sem contar outras falas e diálogos igualmente torpes que nem vale a pena lembrar.

E sem contar também o “design” das armaduras e elmos dos ET’s / deidades que habitam Asgard, que mais parecem ser assinados por algum engenheiro-chefe da Volkswagen. Ou a não menos constrangedora “forçada de barra” ao se pingar um afro-descendente e um oriental dentre os “deuses” nórdicos, tudo para que o filme seja bem-vendável nos cinco continentes – pois não cremos que essa escolha se inspire pelo politicamente correto (esqueceram os latinos; mas até aí, Loki – o antagonista de Thor – possui olhos e cabelos escuros, além de certo ar “carcamano”). Enfim, eis um filme de imaginação fortemente míope, alvo fácil para os “caçadores de mitos”...

terça-feira, setembro 20, 2011

O Guerreiro Silencioso


Saiu a RUA (Revista Universitária do Audiovisual) de setembro. A colaboração do autor de Sombras Elétricas se dá com um texto sobre o filme O Guerreiro Silencioso (“Valhalla Rising”, Dinamarca / Reino Unido, 2009, de Nicolas Winding Refn).

domingo, setembro 11, 2011

understatement


“O único cineasta de quem tenho inveja é Walt Disney, porque, quando está descontente com um de seus atores, pode rasgá-lo.”

Alfred Hitchcock, citado por François Truffaut em O Prazer dos Olhos: escritos sobre cinema (Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2005, pg. 243).

quinta-feira, setembro 08, 2011

A Alegria


Um filme de super-heróis

A Alegria (Brasil, 2010, dir.: Felipe Bragança e Marina Meliande) é um filme que pode deixar o crítico desconcertado. Pois quando o torno mecânico do materialismo dialético se revela pouco hábil para manejar a delicada película de cineastas mais preocupados com coisas eternas e além-mundo (ou internas à alma), o posicionamento do resenhista costuma tomar um de dois rumos: ou se desqualifica e deslegitima, pura e simplesmente, a obra como puro devaneio de mentes mais ou menos alienadas; ou se presta um elogio muito vago e burocrático em termos de “linguagem poética”, “novos rumos para o cinema”, etc.

Contudo, para o bom entendimento deste filme, cuja franqueza é inversamente proporcional ao aparato técnico / material de sua produção (equipe de apenas 25 pessoas), vamos acionar aqui uma outra dialética: a que conecta realidade e mito. A sua mistura se dá através do olhar agregador da figura quase arquetípica do adolescente, cuja disponibilidade absoluta para a vida define a poesia ultrarromântica, irônica, nonsense, da qual a câmera dos jovens Bragança e Meliande se ocupa em registrar – com uma sensível condescendência que pouco se vê no cinema que se debruça sobre os teens.

O foco narrativo está posicionado em Luíza (Tainá Medina), uma estudante carioca de 16 anos, sempre acompanhada do namorado e de um casal de amigos. Inconformista como todo ser em sua idade, Luíza busca uma autoafirmação guerrilheira em meio à violência urbana (o primo dela é sobrevivente de uma chacina), aos constrangimentos sistemáticos da escola (a cena em que o professor lhe arranca o telefone celular das mãos é exemplo contundente disso) e ao futuro pequeno-burguês que o mundo adulto reserva para ela (o pai, bastante compreensivo, defende-a após ela se envolver num protesto de rua – com ação violenta da polícia).

Nesse contexto todo, seria muito pouco dizer que a jovem protagonista escapa para uma fantasia antropofágica no melhor estilo do sincretismo religioso brasileiro. O fato é que, aqui, o mito aparece como figuração poética das mais adequadas para a inquietude e as turbulências da alma imberbe de indivíduos dilacerados entre a inserção e a exclusão, essa alma que jamais deixará ser reduzida completamente a determinismos histórico-sociais (ainda que estes façam lá algum papel). N’A Alegria de Bragança e Meliande, ouvimos ecos do Labirinto do Fauno (2006), de Guillermo del Toro, e do clássico O Clube dos Cinco (1985), do saudoso mestre John Hughes.

Hughes sabia ouvir, como ninguém (à exceção, talvez, de François Truffaut), a voz da juventude – com o perdão da expressão meio cafona: “And these children that you spit on as they try to change their worlds are immune to your consultations. They’re quite aware of what they’re going through…” (E essas crianças, nas quais você cospe enquanto elas tentam mudar o mundo delas, são imunes aos seus conselhos. Elas sabem muito bem pelo que estão passando...). Eis a epígrafe, nas palavras de David Bowie, para o The Breakfast Club do diretor norte-americano.

Elemento definidor: as semelhanças temáticas com del Toro e com Hughes são filtradas pela influência estética mais direta do cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul (de Tio Bonnme, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas – 2010), até incluído nos agradecimentos que rolam junto dos créditos finais (o título do longa anterior de Bragança e Meliande – e que será lançado comercialmente este mês – é bastante weerasethakuliano: A Fuga, A Raiva, A Dança, A Bunda, A Boca, A Calma, A Vida da Mulher-Gorila – 2009). A partir daí, um novo gênero – ou escola – parece se definir: o “neorrealismo mágico” (a expressão é de um crítico norte-americano).

Weerasethakul e seus aprendizes parecem habitar a “twilight zone” que serve de fronteira móvel entre as narrativas literárias do realismo mágico latino-americano (Borges, Márquez, Cortázar), nas quais o fantástico é intrínseco ao real (prenhe de tensões sociais ou políticas), e as narrativas cinematográficas do neorrealismo italiano (Rosselini, de Sica), dignas de todo o despojamento técnico e estilístico na submissão à ontologia da imagem registrada pela câmera (a qual remete a uma realidade não menos carregada das mesmas tensões).

A Alegria é parte central de uma trilogia chamada pelos diretores de “Coração no Fogo” (o primeiro filme é a Fuga (...) da Mulher-Gorila, citado mais atrás). Vem fazer corpo ao recente As Melhores Coisas do Mundo (2010, de Laís Bodansky), como retrato da adolescência contemporânea que se realiza, sobretudo, com grande empatia e com um discurso calculado que não eclipsa o brilho das próprias personagens e do seu mundo. E isso é mais do que se pode dizer a respeito de Os Famosos e Os Duendes da Morte (2009, de Esmir Filho), no qual o gosto indie do cineasta torna-se responsável por um filme excessivamente poser. Um desserviço à causa jovem.