Um filme de super-heróis
A Alegria (Brasil, 2010, dir.: Felipe Bragança e Marina Meliande) é um filme que pode deixar o crítico desconcertado. Pois quando o torno mecânico do materialismo dialético se revela pouco hábil para manejar a delicada película de cineastas mais preocupados com coisas eternas e além-mundo (ou internas à alma), o posicionamento do resenhista costuma tomar um de dois rumos: ou se desqualifica e deslegitima, pura e simplesmente, a obra como puro devaneio de mentes mais ou menos alienadas; ou se presta um elogio muito vago e burocrático em termos de “linguagem poética”, “novos rumos para o cinema”, etc.
Contudo, para o bom entendimento deste filme, cuja franqueza é inversamente proporcional ao aparato técnico / material de sua produção (equipe de apenas 25 pessoas), vamos acionar aqui uma outra dialética: a que conecta realidade e mito. A sua mistura se dá através do olhar agregador da figura quase arquetípica do adolescente, cuja disponibilidade absoluta para a vida define a poesia ultrarromântica, irônica, nonsense, da qual a câmera dos jovens Bragança e Meliande se ocupa em registrar – com uma sensível condescendência que pouco se vê no cinema que se debruça sobre os teens.
O foco narrativo está posicionado em Luíza (Tainá Medina), uma estudante carioca de 16 anos, sempre acompanhada do namorado e de um casal de amigos. Inconformista como todo ser em sua idade, Luíza busca uma autoafirmação guerrilheira em meio à violência urbana (o primo dela é sobrevivente de uma chacina), aos constrangimentos sistemáticos da escola (a cena em que o professor lhe arranca o telefone celular das mãos é exemplo contundente disso) e ao futuro pequeno-burguês que o mundo adulto reserva para ela (o pai, bastante compreensivo, defende-a após ela se envolver num protesto de rua – com ação violenta da polícia).
Nesse contexto todo, seria muito pouco dizer que a jovem protagonista escapa para uma fantasia antropofágica no melhor estilo do sincretismo religioso brasileiro. O fato é que, aqui, o mito aparece como figuração poética das mais adequadas para a inquietude e as turbulências da alma imberbe de indivíduos dilacerados entre a inserção e a exclusão, essa alma que jamais deixará ser reduzida completamente a determinismos histórico-sociais (ainda que estes façam lá algum papel). N’A Alegria de Bragança e Meliande, ouvimos ecos do Labirinto do Fauno (2006), de Guillermo del Toro, e do clássico O Clube dos Cinco (1985), do saudoso mestre John Hughes.
Hughes sabia ouvir, como ninguém (à exceção, talvez, de François Truffaut), a voz da juventude – com o perdão da expressão meio cafona: “And these children that you spit on as they try to change their worlds are immune to your consultations. They’re quite aware of what they’re going through…” (E essas crianças, nas quais você cospe enquanto elas tentam mudar o mundo delas, são imunes aos seus conselhos. Elas sabem muito bem pelo que estão passando...). Eis a epígrafe, nas palavras de David Bowie, para o The Breakfast Club do diretor norte-americano.
Elemento definidor: as semelhanças temáticas com del Toro e com Hughes são filtradas pela influência estética mais direta do cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul (de Tio Bonnme, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas – 2010), até incluído nos agradecimentos que rolam junto dos créditos finais (o título do longa anterior de Bragança e Meliande – e que será lançado comercialmente este mês – é bastante weerasethakuliano: A Fuga, A Raiva, A Dança, A Bunda, A Boca, A Calma, A Vida da Mulher-Gorila – 2009). A partir daí, um novo gênero – ou escola – parece se definir: o “neorrealismo mágico” (a expressão é de um crítico norte-americano).
Weerasethakul e seus aprendizes parecem habitar a “twilight zone” que serve de fronteira móvel entre as narrativas literárias do realismo mágico latino-americano (Borges, Márquez, Cortázar), nas quais o fantástico é intrínseco ao real (prenhe de tensões sociais ou políticas), e as narrativas cinematográficas do neorrealismo italiano (Rosselini, de Sica), dignas de todo o despojamento técnico e estilístico na submissão à ontologia da imagem registrada pela câmera (a qual remete a uma realidade não menos carregada das mesmas tensões).
A Alegria é parte central de uma trilogia chamada pelos diretores de “Coração no Fogo” (o primeiro filme é a Fuga (...) da Mulher-Gorila, citado mais atrás). Vem fazer corpo ao recente As Melhores Coisas do Mundo (2010, de Laís Bodansky), como retrato da adolescência contemporânea que se realiza, sobretudo, com grande empatia e com um discurso calculado que não eclipsa o brilho das próprias personagens e do seu mundo. E isso é mais do que se pode dizer a respeito de Os Famosos e Os Duendes da Morte (2009, de Esmir Filho), no qual o gosto indie do cineasta torna-se responsável por um filme excessivamente poser. Um desserviço à causa jovem.
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