O mundo do diretor espanhol Agustí Villaronga é muito perigoso para as crianças (e adolescentes), definitivamente. Seus filmes compõem uma galeria onde se exibem, semi-explicitamente, as formas mais variadas e perturbadoras de abuso infantil: violência física (surras, torturas, assassinatos a sangue frio), violência psicológica (as mentiras que os adultos contam; se, para Truffaut, o universo adulto vislumbrado pelos olhos dos infantes era o da impunidade – a gente “grande” pode fazer o que lhe der na veneta –, para Villaronga, os pais, professores e demais autoridades só sabem mentir), violência sexual (o semi-explítico a que me referi se constitui de sugestões e elipses bem calculadas; não obstante, todo o sangue e lágrimas que banham as histórias são difíceis de esquecer).
Não há pureza em longa-metragens como o mais recente e bastante premiado Pão Negro (“Pa Negre”: Espanha / França, 2010), grande vencedor dos últimos Goyas (o “Oscar” do cinema espanhol), sendo a primeira produção falada em língua catalã a receber o prêmio de melhor filme; ou O Mar (“El Mar”: Espanha, 2000), onde se testemunha crianças matando crianças – e não com os tiros de chantily de Bugsy Malone: Quando As Metralhadoras Cospem, de Alan Parker (1976). E a inocência que normalmente se atribuiria à infância esvai-se rapidamente nos choques com o Mundo, como a pequena vida dos animaizinhos igualmente maltratados: um gato em O Mar, passarinhos em Pão Negro.
Uma exceção de grau talvez se possa fazer a Moon Child (“El Niño de la Luna”: Espanha, 1989), segundo filme de Villaronga, o único com final “feliz”. Enfim, os pequenos do cineasta são sistematicamente marcados a ferro e a fogo pela guerra (a II Guerra Mundial); pelo totalitarismo (a ditadura de Franco); pela doença (o diretor tem predileção pela tuberculose, o “mal do século” dos poetas do XIX: a lenta degenerescência que provoca nos corpos, de faces macilentas e “podres por dentro”, como bem diz um menino em Pão Negro, assim como a morte apoteótica em explosões de sangue, fazem com que a clássica tísica funcione como figura contundente da poesia grotesca de Villaronga, o qual parece evocar as atmosferas sórdidas dos quadros romântico-barrocos de Francisco Goya);
e, “last but not least”, essas crianças são marcadas pelas mutilações (uma mão que se perde, a castração, um pulmão de ferro, mesmo uma tatuagem que se deixa talhar com sutil masoquismo). Nada se poupa, nada se protege, nada se salva – falamos até agora de corpos, mas sobretudo as almas se perdem: a linha entre inocência e culpa mal pode ser divisada na maioria das personagens aqui, as quais transitam de uma condição a outra, se não com desenvoltura, certamente com frequência desconcertante. É bem outro o estatuto da criança e do adolescente na Espanha fascista do cineasta. Villaronga flerta um tanto com o fantástico: reconhecemos algumas linhas expressionistas nos cenários internos de Pão Negro, além da presença do “fantasma” que habita a floresta e ataca os viajantes; Moon Child é praticamente um conto-de-fadas (macabro): mistura de Harry Potter e O Pianista (2002, Roman Polanski).
Neste ponto, poderíamos aproximá-lo da fábula realista de Guillermo del Toro, O Labirinto do Fauno (2006); mas o sadismo aqui vai além. E infinitamente além, nem se precisa dizer, do universo infantil de Spielberg: só para brincar, vamos imaginar Super 8 dirigido por Villaronga... Mas quero dar uma pouco mais de atenção ao filme de estreia do diretor, o único lançado em DVD no Brasil, em janeiro deste ano, muito discretamente: Prisão de Cristal (“Tras el Cristal”: Espanha, 1987). Trata-se da história de um médico nazista, chamado simplesmente de Klaus, que conduzia experiências (inclusive as pedófilas) com meninos, durante a guerra. O filme abre com fotografias (reais) de crianças, vivas ou mortas, nos campos de concentração; além de mostrar o desenho, feito por uma delas, de pessoas nos “chuveiros” (câmaras de gás).
Essa simples folha de papel, com o traçado vacilante feito por uma mão pequena, causa ao espectador mais comoção do que as fotos ou as cenas violentíssimas que o filme mostrará logo adiante. Pois o que está em jogo aqui é o choque entre a pureza e o sutil da imaginação pictórica de um típico desenho de criança, e a realidade torpe que este evoca. Isso assusta mais do que qualquer representação infantil de fantasmas ou monstros que costumam ser exibidas nos filmes de terror. Com a queda do III Reich, Klaus fugirá, junto com a esposa e a filha, para a Espanha de Franco – e lá será bem acolhido. No entanto, o médico dará continuidade ao seu “trabalho”, clandestinamente, até o momento em que, corroído por remorsos, pulará do alto de um prédio (ou será jogado, persiste a ambiguidade).
Paralisado do pescoço para baixo, Klaus viverá e respirará o resto dos seus dias dentro de um “pulmão de ferro” (iron lung), uma estufa-caixão pressurizado que só deixa a cabeça do paciente de fora. O ex-nazista torna-se mais cadáver do que ser vivo, mais máquina do que homem: tem grande força simbólica a cena em que sua esposa tropeça no fio, desligando da tomada a pesada engenhoca e fazendo Klaus se asfixiar de imediato, enquanto ela demora a religar o aparelho, contemplando com assombro e fascínio a agonia do marido. A mulher contrata, então, um jovem enfermeiro, Ângelo, que aparece misteriosamente por ali. Porém, o rapaz se revela uma antiga vítima de Klaus. É o início de um jogo muito ambíguo de sedução e tortura, que culminará na transformação do “pulmão de ferro” numa espécie de altar para uma missa negra, ao mesmo tempo orgástica e epifânica – e, sobretudo, sacrificial. É o último plano do filme.
Prisão de Cristal tornou-se cult logo em seu lançamento, e também despertou muita controvérsia. É um daqueles filmes de que muito se falava, mas pouco se via, tanto por causa das censuras que se sucederam (o release do DVD ostenta com orgulho que o longa fora banido da Austrália). Parece ser um caso parecido com o que se viu, nestes últimos meses, em relação àquele A Serbian Film (que eu ainda não vi). De qualquer maneira, a estreia de Villaronga ainda é o seu melhor e mais equilibrado filme – embora a concorrência de Pão Negro seja surpreendente e encorajadora. Mas o melhor argumento em defesa de Prisão de Cristal, assim como das outras obras do diretor, será que o seu discurso não é sádico. Há muito sofrimento infligido, o que se mostra ora implícita, ora explicitamente.
Mas não detectamos a mesma volúpia em filmar a violência e a morte que se vê em Lars Von Trier, por exemplo (Anticristo – 2009), ou em Gaspar Noé (Irreversível – 2002). Para uma apreciação realmente cinematográfica, isso faz toda a diferença na hora de se julgar a legitimidade de uma “censura”. Fico curioso para saber em que lado se enquadra A Serbian Film, antes de emitir qualquer opinião sobre as proibições que vem provocando – opinião que alguns dão, às vezes, muito apressadamente. Agustí Villaronga não é mais “sádico” do que Tinto Brass é “pornográfico”. O espanhol utiliza-se dos códigos da violência e do horror da mesma maneira que o mestre italiano se dispõe da sexualidade e do erotismo.
Pode-se aplicar a Prisão de Cristal o que Brass disse a respeito do seu Calígula (1979), que lhe tiraram das mãos na sala de montagem: “Eu quis fazer um filme sobre a orgia do poder, e não sobre o poder da orgia”. As películas de Villaronga são todas variações desse tema da “orgia do poder”. Pois o gozo e a morte podem ser dois lados de uma mesma moeda. Sem querer entrar numa psicanálise de porta de botequim, termino com uma citação de André Bazin:
“Lembro-me de ter escrito certa vez, a propósito de uma célebre sequência de cine-jornal em que se viam ‘espiões comunistas’ sendo executados no meio da rua, em Xangai, por oficiais de Chang Kai-Chek, lembro-me, digo, de ter observado que a obscenidade da imagem era da mesma ordem que a de uma fita pornográfica. Uma pornografia ontológica. A morte é aqui o equivalente negativo do gozo sexual, que não é por menos qualificado de pequena morte (petite morte).” À Margem de “O Erotismo no Cinema”, publicado originalmente nos Cahiers du Cinéma em abril de 1957 e reproduzido na antologia O Cinema: ensaios (ed. Brasiliense, 1991)
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