domingo, outubro 22, 2006

continuação de "A Sensação de Ver"



A história mostra um professor de Inglês de meia-idade, o Sr. Finn (Strathairn), que, traumatizado por uma tragédia recente, abandona família e profissão para vender enciclopédias de porta em porta numa cidadezinha do nordeste norte-americano (Peterborough, em New Hampshire). Suas andanças são acompanhadas por reflexões existenciais; ele claramente perdeu o rumo na vida. Ao longo do caminho, o Sr. Finn vai encontrando e se relacionando (arduamente) com pessoas ligadas (de algum modo) ao seu passado e à citada tragédia.

Até aqui, não há nada que chame muito a atenção. Não é um filme ruim, mas também não ultrapassa os lugares-comuns do cinema “independente”. Mais do que “independente”, este é um filme “indie”. Os personagens todos têm aquele charme dos desajustados, suas vidas têm aquela insignificância típica, seus segredos não-revelados deixam o espectador com a pulga atrás da orelha... Enfim, um ótimo candidato a filme “cult”, habitante natural das mostras do cinema de arte (São Paulo, San Sebastian, etc).

Pra falar a verdade, eu cochilei no meio do filme, que é longo (134 min.): ficava apagando e acordando intermitentemente, perdia alguns diálogos, mas sabia que nada de muito importante estava acontecendo. Então, aconteceu! No último terço, a narrativa ganha uma força incrível, os mistérios começam a ser revelados, peças começam a encaixar (pois tudo estava muito solto antes, o filme apenas acompanhava como uma testemunha o cotidiano banal dos personagens), o drama começa a crescer imensamente e se aprofundar. Os personagens passam de “figurinhas indies” a pessoas singulares e graves. A revelação da “tragédia” em questão (que, como eu disse, é o centro de tudo), dota o filme e os seus personagens de uma especificidade e profundidade que levam o espectador a realmente se comover... de modo como ele nunca havia se comovido antes (com esta narrativa) e nem esperava que pudesse ser comovido assim. O filme surpreende. Se até então tudo estava muito genérico, no final a particularização cai com o peso de um piano nos olhos e na cabeça do espectador. Isso também ajuda a explicar o título: “A Sensação de Ver”, pois o final é de uma densidade poética admirável.

As reações da platéia mostram bem os efeitos dessa singular progressão narrativa. A reação do espectador, na última parte do filme, é: “Ah! então é por isso que...” e então vêm as lágrimas: quero dizer, se antes estávamos muito indiferentes em relação a tudo, a partir de certo momento passamos a nos envolver incrivelmente com os personagens (especialmente com o Sr. Finn e com Drifter (Ian Somerhalder). A revelação visual da tragédia ao espectador traz todo o impacto da “sensação de ver” (conforme eu disse no começo); assim, nós passamos a compreender porque é tão difícil para o Sr. Finn lidar com ela.

A forte oposição entre o filme “pré-revelação” e o filme “pós-revelação” é também evidente na câmera: na maior parte do tempo, ela é absolutamente fixa e sóbria; na última terça parte, ela ganha (muito) mais movimento e agilidade, especialmente em determinada cena entre o Sr. Finn e Drifter, de um nervosismo dramático extremamente intenso.

Todo filme tem um momento em que se revela: como bom filme (às vezes, grande filme, uma obra-prima) ou como mau filme (às vezes, uma porcaria inacreditável, caso de “O Grande Sertão”, que discuti num post anterior). É aquilo que, nos bons filmes, Henri Agel chama de “alma” – no magnífico livro O cinema tem alma? Em muitos grandes filmes, essa alma aparece com toda a sua força logo nos dez primeiros minutos de exibição (caso de “O Pianista”, de Roman Polanski). Contudo, é mais surpreendente quando ela aparece depois de uma ou uma hora e meia de relativa indiferença do espectador. É chocante, porque temos que dar o braço a torcer: um filme que, em sua maior parte, parecia que não daria nenhum vôo um pouco mais alto, de repente dispara como um foguete. Isso não é contraditório, pois essa “disparada” faz com que, revendo o filme como um todo, todas as partes se encaixem com lógica, tudo se explica, inclusive os “vôos baixos” do começo, que, após vermos o final, entendemos que não são tão “baixos” assim.

A Sensação de Ver – “The Sensation of Sight” – EUA, 2006 – 134 min
Produção: Buzz McLaughlin (Either / Or’s)
Direção: Aaron J. Wiederspahn
Roteiro: Aaron J. Wiederspahn
Fotografia: Christophe Lanzenberg
Montagem: Mario Ontal
Música: Rupert A. Thompson
Elenco: David Strathairn, Ian Somerhalder, Daniel Gillies, Scott Wilson, Jane Adams, Ann Cusack, Joseph Mazzello, Elisabeth Waterston.
Data de estréia: por enquanto, o filme está sendo exibido apenas em mostras e festivais ao redor do mundo; não há data de estréia comercial nos EUA, muito menos no Brasil.

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