quarta-feira, outubro 04, 2006

continuação de Guimarães Rosa e Cinema

(continuação do post acima)

Agora, o caso à parte é O Grande Sertão (1965), dirigido pelos gêmeos Geraldo e Renato Santos Pereira – o primeiro dirigiu, recentemente, Aleijadinho, Paixão e Glória (2003), escrito pelo segundo. O filme veio vinte anos antes da famosa minissérie da TV Globo, Grande Sertão: Veredas (que não vi). Ambos tentam traduzir e adaptar o volumoso romance de Rosa, um dos maiores de nossa literatura, e de qualidade internacional. Grande Sertão: Veredas é a narrativa mais ambiciosa de Guimarães Rosa, no aspecto formal (a experimentação e as misturas lingüísticas do escritor estão todas lá, nas cerca de 600 páginas em um único bloco, sem a divisão de capítulos) e no de conteúdo: as reflexões filosóficas generalizantes são representadas em uma história grandiosa, ao mesmo tempo fortemente lírica (as memórias do ex-jagunço Riobaldo), épica (as guerras dos grupos de Jagunços no sertão mineiro) e dramática (a peculiar relação entre Riobaldo e o seu companheiro Diadorim). É uma novela de cavalaria sertaneja.

Assim, foi com grande entusiasmo que peguei para ver esse filme. Mas que desastre! Talvez eu nem devesse falar dele; bastaria representar o diálogo de uma tirinha da série Níquel Náusea, de Fernando Gonsales (se eu tivesse um scaner, colocaria a tira inteira):

“O famoso rato azul está lendo um livro de histórias para os seus filhotes. Ele diz:
- Essa de chapéu vermelho é entregadora de pizza! Ela perguntou pro lobo o endereço da velha. Êpa! A velha se transformou num lobo!
Um dos seus filhotes diz para outro:
- Pra mim, ele não sabe ler!”

Esse trecho nos ajuda a entender de uma maneira toda especial o filme Grande Sertão e a sua relação com a obra original de João Guimarães Rosa. Não me lembro de ter visto uma adaptação literária pior. Um dos objetivos deste post é documentar algo sobre esse filme na Internet, pois é bem pouco o que eu encontrei sobre ele na rede. Em princípio, eu achava que a escassez de informações devia-se ao velho problema de divulgação e distribuição de filmes nacionais, principalmente dos mais antigos; acreditava eu que era um filme “cult” que precisava ser redescoberto. Agora, penso eu que não se fala muito sobre ele simplesmente porque é muito ruim, não deve ter despertado atenção nem sobrevivido à peneira da história.

O começo é até bom, com os jagunços saindo do meio da névoa – como anjos do apocalipse, numa cena de aura mítica e mística bem de acordo com a literatura de Rosa. Essa cena precede a da abertura de Táxi Driver (1976), de Martin Scorsese, com o táxi também saindo do meio da névoa escura, como um anjo (ou demônio) vingador. A apresentação dos personagens, os diálogos na linguagem sertaneja, as cenas paisagísticas do sertão mineiro com a voz em “off” de Riobaldo interpretando o belíssimo texto original de Guimarães Rosa, tudo isso é muito bonito e bom como cinema. Mas...

Quando, antes da metade do filme, descobrimos (assim como Riobaldo) o segredo sagrado de Diadorim, todo meu encantamento caiu por terra, foi substituído por uma raiva que é difícil eu sentir em relação a um filme. Falo de maneira tão contundente, pois considero essa película um gritante desrespeito artístico para com a narrativa original de João Guimarães Rosa. Toda a estrutura narrativa do longo romance é construída em torno do segredo de Diadorim, das dúvidas e medos de Riobaldo em relação ao seu sentimento pelo amigo e à ambigüidade sutil da relação entre os dois. Pois o filme dos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira, que já é muito curto (92 minutos), destrói tudo isso antes da metade de sua duração. A partir daí, essa “obra-prima” cinematográfica transforma o relacionamento Riobaldo-Diadorim num dramalhão folhetinesco inacreditável. Eu fiquei estupefato. O roteirista é Roberto Farias, que dirigira pouco antes o magnífico Assalto ao Trem Pagador (1962)...

Não vou dizer como termina o livro, pois isso seria um “spoiler” grande demais (apesar de já ser um fato folclórico no meio literário). Digo apenas que a narrativa do romance só veio a existir como processamento que Riobaldo faz de suas memórias e sentimentos com relação a fatos passados que ele não pôde controlar – pois não sabia do que se tratava – e, assim que soube, tarde demais, não pôde fazer nada para mudar. O filme, ao jogar tudo isso no lixo, acaba criando petulantemente uma outra história, com outros personagens. Não se deixe enganar por essa “adaptação”. A quem quiser fazer-se a si mesmo um grande bem, leia o romance Grande Sertão: Veredas, deixe-se conduzir por sua maravilhosa narrativa e surpreenda-se no final.

Obras de João Guimarães Rosa adaptadas para o Cinema e TV:

“O Grande Sertão”: 1965, dirigido por Geraldo e Renato Santos Pereira. Baseado em Grande Sertão: Veredas, romance originalmente publicado em 1956. Existe em DVD.

“A Hora e Vez de Augusto Matraga”: 1965, dirigido por Roberto Santos. Baseado no conto homônimo, do livro Sagarana, originalmente publicado em 1946. Não existe em DVD.

“Sagarana: O Duelo”: 1973, dirigido por Paulo Thiago. Baseado majoritariamente no conto O Duelo, do livro Sagarana, originalmente publicado em 1946. Existe em DVD.

“Grande Sertão: Veredas”: 1985, dirigido por Walter Avancini. Minissérie originalmente exibida na Rede Globo de televisão, baseada no romance homônimo originalmente publicado em 1956. Não existe em DVD.

“A Terceira Margem do Rio”: 1994, dirigido por Nelson Pereira dos Santos. Baseado em cinco contos do livro Primeiras Estórias, originalmente publicado em 1962: o que dá título ao filme, A Menina de Lá, Os Irmãos Dagobé, Seqüência e Fatalidade. Não existe em DVD.

“Outras Estórias”: 1999, dirigido por Pedro Bial. Baseado em alguns contos do livro Primeiras Estórias, publicado originalmente em 1962, dentre os quais: Famigerado, Nada e a nossa condição, e Substância. Não existe em DVD.

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