Reproduzo o texto da coluna “Ponto de Fuga” – de Jorge Coli – publicado domingo passado na Folha de S. Paulo, que me levou a algumas reflexões.
De que cor eram as meias de Hitler?
Umberto Eco fala sobre diferenças entre cultura e erudição numa entrevista recente à revista francesa “Le Nouvel Observateur”. Diz assim: “Erudição não é cultura, mas uma sua forma particular e secundária. Cultura não é saber a data de nascimento de Francisco 1º. Ser culto significa antes de tudo saber que ele foi um rei da França no Renascimento e qual era o papel da França no contexto europeu da época. Quanto à sua data de nascimento, a cultura permite encontrar essa informação, se temos necessidade dela”.
Ainda: “Borges nos contou, em “Ficções”, a história de ‘Funes, el Memorioso’, esse homem que se lembrava de tudo, de cada folha que ele vira sobre cada árvore, de cada palavra que ele ouvira ao longo de sua vida e que, por causa de sua memória total, era um perfeito idiota. A cultura é igualmente um processo de conservação e de filtragem, pelos quais nós sabemos quem era Hitler, mas não qual era a cor de suas meias no dia em que ele se suicidou em seu bunker”.
Memória e filtragem, dois instrumentos essenciais nessa distinção. A memória é instrumento da cultura e o objetivo da erudição; o filtro é uma rede de relações que pesca aquilo de que precisa. A oposição entre cultura e erudição é clássica.
Insisto no aspecto da filtragem. É lamentável ver, por exemplo, o quanto a educação escolar (ainda) está muito mais apegada à “erudição” do que à “cultura”. A maioria de nós fomos traumatizados pela “decoreba” de conteúdos absolutamente inúteis. Obriga-se o aluno a conhecer muita coisa, mas ninguém o faz desenvolver o senso crítico, o raciocínio livre que nos leva a realmente saber as coisas. Em um curso universitário, ou qualquer outro de caráter profissionalizante, é lógico que se busque a erudição (sem deixar de lado, evidentemente, o senso crítico), pois o especialista deve ter um conhecimento específico, detalhado e profundo do seu objeto de trabalho. Mas levar essa mentalidade para o ensino básico é condená-lo ao fracasso. Essa situação é ainda mais triste no campo do ensino das artes e da literatura. Em muitas escolas, o aluno decora nomes de escritores e de suas obras, datas de início e de término de movimentos literários, mas fica sem fazer a menor idéia do que seja a arte da Literatura, de fato. Conseqüentemente, esse aluno acaba desenvolvendo aversão à disciplina. Triste.
O sistema de vestibular também está muito ligado a essa situação, embora mudanças já venham tomando espaço (lentamente). A oposição clássica entre cultura e erudição é trabalhada por Kant quando ele estabelece as diferenças entre “apreender” e “compreender” (na Crítica da Faculdade de Juízo): apreender é a tarefa do erudito, enquanto compreender é o objetivo e preocupação do culto. A compreensão é um trabalho mais profundo e complexo: é o verdadeiro entendimento, pois pressupõe um raciocínio analítico, analógico e crítico. Não se trata apenas do “input” de dados (o que se aproximaria da apreensão). Um computador, atualmente, jamais poderia compreender a filosofia de Kant, por exemplo. Mas poderia apreendê-la facilmente. É possível condicionar um cão ou um aluno do ensino médio a aprender a filosofia de Kant, mas será que eles realmente a saberiam, desse modo? Montagne, no ensaio Sobre a educação das crianças, também defende o verdadeiro e produtivo aprendizado (próximo da “compreensão” de Kant e da “cultura” de Eco), em detrimento de um aprendizado estéril (ligado à “apreensão” e à “erudição”).
Mas enfim, alguém já pode estar se perguntando: o que tudo isso tem a ver com cinema? – já que este é um blog sobre cinema. A relação é simples, talvez evidente. Há pessoas que buscam nos filmes mais erudição do que cultura. Por que motivo? Talvez a velha vaidade. Excluo os profissionais (é claro), visto que o seu caso, como já disse, é compreensível. Mas quando um cinéfilo recita muita coisa de cor e salteado a respeito de filmes e cineastas, eu fico na dúvida se tamanha erudição se faz acompanhar por uma cultura adequada ou não. Será que o cara entende mesmo (e aprecia) todos esses filmes, idéias e pessoas de que fala, ou esse discurso todo é apenas uma questão de soberba e vaidade? Ambos os casos acontecem e variam de pessoa para pessoa. Cultura e erudição dificilmente têm o mesmo peso na balança do indivíduo, mas também esse peso não é absolutamente desigual todas as vezes. Enfim, acredito que isso aconteça com todas as artes, pelo menos na literatura eu sei que também é assim.
Poderíamos acrescentar aos textos de Jorge Coli e de Umberto Eco que a erudição muitas vezes está ligada a imperativos de moda e padrões socialmente aceitos e sobrevalorizados (o que se relaciona à questão supra citada da vaidade). Por exemplo: um cinéfilo pode ser “erudito” no cinema de Jean-Luc Godard e Ingmar Bergman não apenas por “gostar” deles, mas porque são cineastas muito valorizados (às vezes até demais) no meio “cinéfilo”; e esse indivíduo sabe que, se ele quiser ser “cinéfilo de verdade” (ou seja, ser bem considerado como cinéfilo pelos outros cinéfilos), ele tem que conhecer bem e idolatrar Godard, Bergman e outros que compõem o “panteão”. Casos assim podem nos parecer ridículos, absurdos, pueris ou raros, mas são reais.
A questão difícil de responder é: em que medida realmente apreciamos um artista e sua obra por valores intrínsecos e em que medida só damos atenção a eles por estarem na “ordem do dia”? Na longa história da literatura, encontramos escritores que eram considerados gênios imortais em suas épocas, mas que hoje estão quase absolutamente esquecidos. E esquecidos porque a rigorosa peneira do tempo provou que não eram “imortais” de fato. Não resistem ao envelhecimento. Na curta história do cinema, já aparecem alguns filmes que não envelheceram bem. Mas o tempo futuro pode muito bem mostrar que não só filmes, como também cineastas e talvez até movimentos cinematográficos que adoramos não são tão ricos assim. Eventualmente, são bastante pobres.
Acredito que o homem de cultura (em oposição ao erudito), que exerce um pensamento mais livre, abrangente, profundo e crítico, não se deixa deslumbrar pela purpurina nos olhos das modas contemporâneas, ele resiste àquilo que na música rock-pop chama-se “hype”. Quantos cineastas e filmes não são também alvo de “hype”?
Enfim, esse tema rendeu mais do que eu imaginava. Amanhã colocarei o resto do texto de Jorge Coli e refletirei sobre outras coisas, como o papel do profissional dentro da erudição.
De que cor eram as meias de Hitler?
Umberto Eco fala sobre diferenças entre cultura e erudição numa entrevista recente à revista francesa “Le Nouvel Observateur”. Diz assim: “Erudição não é cultura, mas uma sua forma particular e secundária. Cultura não é saber a data de nascimento de Francisco 1º. Ser culto significa antes de tudo saber que ele foi um rei da França no Renascimento e qual era o papel da França no contexto europeu da época. Quanto à sua data de nascimento, a cultura permite encontrar essa informação, se temos necessidade dela”.
Ainda: “Borges nos contou, em “Ficções”, a história de ‘Funes, el Memorioso’, esse homem que se lembrava de tudo, de cada folha que ele vira sobre cada árvore, de cada palavra que ele ouvira ao longo de sua vida e que, por causa de sua memória total, era um perfeito idiota. A cultura é igualmente um processo de conservação e de filtragem, pelos quais nós sabemos quem era Hitler, mas não qual era a cor de suas meias no dia em que ele se suicidou em seu bunker”.
Memória e filtragem, dois instrumentos essenciais nessa distinção. A memória é instrumento da cultura e o objetivo da erudição; o filtro é uma rede de relações que pesca aquilo de que precisa. A oposição entre cultura e erudição é clássica.
Insisto no aspecto da filtragem. É lamentável ver, por exemplo, o quanto a educação escolar (ainda) está muito mais apegada à “erudição” do que à “cultura”. A maioria de nós fomos traumatizados pela “decoreba” de conteúdos absolutamente inúteis. Obriga-se o aluno a conhecer muita coisa, mas ninguém o faz desenvolver o senso crítico, o raciocínio livre que nos leva a realmente saber as coisas. Em um curso universitário, ou qualquer outro de caráter profissionalizante, é lógico que se busque a erudição (sem deixar de lado, evidentemente, o senso crítico), pois o especialista deve ter um conhecimento específico, detalhado e profundo do seu objeto de trabalho. Mas levar essa mentalidade para o ensino básico é condená-lo ao fracasso. Essa situação é ainda mais triste no campo do ensino das artes e da literatura. Em muitas escolas, o aluno decora nomes de escritores e de suas obras, datas de início e de término de movimentos literários, mas fica sem fazer a menor idéia do que seja a arte da Literatura, de fato. Conseqüentemente, esse aluno acaba desenvolvendo aversão à disciplina. Triste.
O sistema de vestibular também está muito ligado a essa situação, embora mudanças já venham tomando espaço (lentamente). A oposição clássica entre cultura e erudição é trabalhada por Kant quando ele estabelece as diferenças entre “apreender” e “compreender” (na Crítica da Faculdade de Juízo): apreender é a tarefa do erudito, enquanto compreender é o objetivo e preocupação do culto. A compreensão é um trabalho mais profundo e complexo: é o verdadeiro entendimento, pois pressupõe um raciocínio analítico, analógico e crítico. Não se trata apenas do “input” de dados (o que se aproximaria da apreensão). Um computador, atualmente, jamais poderia compreender a filosofia de Kant, por exemplo. Mas poderia apreendê-la facilmente. É possível condicionar um cão ou um aluno do ensino médio a aprender a filosofia de Kant, mas será que eles realmente a saberiam, desse modo? Montagne, no ensaio Sobre a educação das crianças, também defende o verdadeiro e produtivo aprendizado (próximo da “compreensão” de Kant e da “cultura” de Eco), em detrimento de um aprendizado estéril (ligado à “apreensão” e à “erudição”).
Mas enfim, alguém já pode estar se perguntando: o que tudo isso tem a ver com cinema? – já que este é um blog sobre cinema. A relação é simples, talvez evidente. Há pessoas que buscam nos filmes mais erudição do que cultura. Por que motivo? Talvez a velha vaidade. Excluo os profissionais (é claro), visto que o seu caso, como já disse, é compreensível. Mas quando um cinéfilo recita muita coisa de cor e salteado a respeito de filmes e cineastas, eu fico na dúvida se tamanha erudição se faz acompanhar por uma cultura adequada ou não. Será que o cara entende mesmo (e aprecia) todos esses filmes, idéias e pessoas de que fala, ou esse discurso todo é apenas uma questão de soberba e vaidade? Ambos os casos acontecem e variam de pessoa para pessoa. Cultura e erudição dificilmente têm o mesmo peso na balança do indivíduo, mas também esse peso não é absolutamente desigual todas as vezes. Enfim, acredito que isso aconteça com todas as artes, pelo menos na literatura eu sei que também é assim.
Poderíamos acrescentar aos textos de Jorge Coli e de Umberto Eco que a erudição muitas vezes está ligada a imperativos de moda e padrões socialmente aceitos e sobrevalorizados (o que se relaciona à questão supra citada da vaidade). Por exemplo: um cinéfilo pode ser “erudito” no cinema de Jean-Luc Godard e Ingmar Bergman não apenas por “gostar” deles, mas porque são cineastas muito valorizados (às vezes até demais) no meio “cinéfilo”; e esse indivíduo sabe que, se ele quiser ser “cinéfilo de verdade” (ou seja, ser bem considerado como cinéfilo pelos outros cinéfilos), ele tem que conhecer bem e idolatrar Godard, Bergman e outros que compõem o “panteão”. Casos assim podem nos parecer ridículos, absurdos, pueris ou raros, mas são reais.
A questão difícil de responder é: em que medida realmente apreciamos um artista e sua obra por valores intrínsecos e em que medida só damos atenção a eles por estarem na “ordem do dia”? Na longa história da literatura, encontramos escritores que eram considerados gênios imortais em suas épocas, mas que hoje estão quase absolutamente esquecidos. E esquecidos porque a rigorosa peneira do tempo provou que não eram “imortais” de fato. Não resistem ao envelhecimento. Na curta história do cinema, já aparecem alguns filmes que não envelheceram bem. Mas o tempo futuro pode muito bem mostrar que não só filmes, como também cineastas e talvez até movimentos cinematográficos que adoramos não são tão ricos assim. Eventualmente, são bastante pobres.
Acredito que o homem de cultura (em oposição ao erudito), que exerce um pensamento mais livre, abrangente, profundo e crítico, não se deixa deslumbrar pela purpurina nos olhos das modas contemporâneas, ele resiste àquilo que na música rock-pop chama-se “hype”. Quantos cineastas e filmes não são também alvo de “hype”?
Enfim, esse tema rendeu mais do que eu imaginava. Amanhã colocarei o resto do texto de Jorge Coli e refletirei sobre outras coisas, como o papel do profissional dentro da erudição.
Um comentário:
Bem elucidativo tal texto, consegui enfim saber a diferença entre erudito e culto. Sobre cinema, confesso que embora eu goste, não sou de gravar nomes e afins, mas sobre isso se ele é rico ou não, creio eu, que depende unicamente de quem o assiste. No campo da literatura por exemplo, uma pessoa pode ler O Pequeno Príncipe e achar o texto ridículo e infantil, de eles já tiver em si os valores trazidos no livro a tal ponto de os achar óbvios, ou por mera vaidade, como pode achar o livro uma obra-prima. Até a mais pobre obra pode deslumbrar os sentidos daqueles que a observam.
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