Pode acreditar: O Balão Vermelho é um daqueles filmes que nos fazem erguer as mãos aos céus e agradecer pela existência de uma coisa chamada Cinema. Estará este pequeno grande filme dentre os maiores da sétima arte? Será ele o maior curta-metragem de todos os tempos? Terá potencial para se tornar um dos maiores filmes na vida de um bom cinéfilo, pelo menos? Não sei, e prefiro nem pensar nessas coisas. O fato é que certas películas só fazem por crescer dentro de nós, logo após as termos finalmente conhecido. Certas películas só fazem por fazer crescer dentro de nós coisas que constituem o melhor de nós, nossa alma. Alguns filmes são cultivadores de almas.
O Balão Vermelho renova em nós a capacidade da visão poética, especificamente a visão da criança. Renova em nós o gosto pela novidade, pelo fantástico cotidiano (ou cotidiano fantástico), a descoberta da própria vida e do mundo (e de coisas além), com todas as suas doses de prazer e de dor, de conforto e de perigo, principalmente. Os perigos mais essenciais, que não se reduzem à “questão social” ou psicológica. São os perigos que constituem a simples questão de se estar vivo. “Viver é muito perigoso”, já dizia o jagunço Riobaldo no Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa.
Todo o filme se constrói e se apresenta dentro de uma tonalidade mítica, o simbólico mais fundamental do balão dotado de todo o brilho do vermelho do technicolor em um mundo cinzento, numa cidade anêmica. O Balão Vermelho (“Le Ballon Rouge”) é uma produção francesa de curta-metragem (34 minutos de duração) escrita e dirigida por Albert Lamorisse em 1956. Recebeu a Palma de Ouro em Cannes no mesmo ano e o Oscar de melhor roteiro original em 1957. Lamorisse é autor de uma outra fita clássica do cinema infantil, uma espécie de realismo mágico infantil (“off-Disney”, naturalmente), chamada O Cavalo Branco (1953).
Ambos os filmes foram relançados em cinemas de São Paulo no ano passado. Mas, pelo que pude ver, não há qualquer sinal ainda de lançamentos em DVD. De qualquer maneira, O Balão Vermelho conta a história de um menino (Pascal Lamorisse, filho do diretor) e seu balão, que o segue pelas ruas de Paris como se fosse um cãozinho. O final é absolutamente incontável. As situações mostradas são de uma imaginação incrível, com um poder sugestivo que só o cinema mesmo consegue obter. Extrair drama e significado a partir da simples e abjeta figura de um balãozinho vermelho exige uma dose de arte e de sensibilidade que não se vê com freqüência.
Vendo este filme, compreendemos melhor as possíveis fontes de obras tão únicas quanto Wall.E (EUA, 2008). Estamos falando aqui de algo que foge completamente daquelas obras pseudo-infantis (na literatura ou no cinema) que mal disfarçam as formas do mais pobre moralismo, as tentativas mais repressoras de se enquadrar (preparar) a criança para a “vida adulta”. Obras que destroem o espírito da criança fazendo dela menos do que ela é. Não é o que acontece com Lamorisse, que só tem uma preocupação: brincar. Brincar com a arte, com a imaginação, com a vida, com o mundo. O poder ilógico e criativo do sonho, da poesia; eis a chave.
André Bazin (“A Montagem Proibida”, in O Cinema: Ensaios) fala do zoomorfismo d’O Balão Vermelho. Entretanto, parece-nos que se trata mais de uma prosopopéia, no sentido que o balãozinho que vemos na tela não é transformado num animal – no que o animal tem de “irracional” e “selvagem”. Somente associamos a imagem do balão vermelho à de um fiel cachorrinho na medida em que costumamos enxergar esse animal como “o melhor amigo do homem”. Dotamos nossos animais de estimação de um caráter específico e atribuímo-lhes comportamentos que nada mais são, na verdade, do que espelho de nossas próprias almas.
Daí a prosopopéia, a personificação, o repositório mais arcaico dos nossos mitos e arquétipos essenciais. Por isso, o balão de Lamorisse está mais para uma antropomorfização simbólica, na medida em que o dotamos de uma “personalidade” significante. O amor que o balão tem pelo garoto é o nosso próprio amor, que transferimos aos animais e objetos para que estes nos devolvam numa relação com o outro cuja função é simbolizar a relação de nós conosco mesmos. A imaginação simbólica exercitada a partir de uma realidade prenhe de magia latente, o realismo mágico. Eis a arte sublime.
Considerando a pura experiência cinematográfica, O Balão Vermelho será uma verdadeira aula, uma apresentação do que é a arte das imagens (e sons) em movimento. A começar pela música tema, composta por Maurice Leroux e absolutamente inesquecível. A emoção, sutil e sublime, evocada pela música logo nos créditos iniciais já nos transporta com carinho e afeição e nos coloca exatamente no centro do universo que virá a seguir, com o próprio filme. Mas as maiores qualidades desta película estão na fotografia. Em primeiro lugar, a sua qualidade cromática: o fortíssimo contraste entre o vermelho do balão e o cinzento do mundo ao redor – com todas as implicações simbólicas, conforme já discutimos.
Em segundo lugar, a composição dos planos no filme apresenta as grandes qualidades pictóricas, fotogênicas, etc, dos maiores fotógrafos franceses. O diretor de fotografia Edmond Séchan aproveitou o rigor e a sensibilidade plástica de Willy Ronis (1910) e os misturou ao senso do “instante decisivo” que é a assinatura estética de Henri Cartier-Bresson (1908-2004), talvez o maior fotógrafo de todos os tempos. Cada fotograma de O Balão Vermelho evoca o rigor e o humanismo, o aspecto do eterno e do passageiro, o insólito e o banal, que habitam a pintura do Renascimento ao Impressionismo.
Bazin, no mesmo ensaio supra citado, faz um elogio da fita de Lamorisse pelo que a riqueza cinematográfica nela não depende da montagem, defendendo com isso a tese de que a montagem não é o velho e tão buscado “específico cinematográfico”, a montagem não é o supra-sumo da arte do cinema. Há uma cena, logo no início do filme, que mostra bem isso. Encerramos este texto com ela, procurando sugerir no leitor o valor único da experiência cinematográfica que ela proporciona (o ponto máximo da aula de cinema do Professor Lamorisse). Vemos o menino descendo por uma escadaria nas ruas de Paris, indo para a escola.
A câmera está colocada pouco mais à frente dele, poucos degraus mais abaixo. Então, o garoto Pascal, ao se aproximar de um poste de luz, tem a sua atenção desviada para cima, para onde imaginamos eu esteja a lâmpada do poste. Ele pára. Começa a escalar o poste, devagar e com cuidado, enquanto a câmera se mantém fixa no corpo do personagem: sem sair do nível do chão, a câmera sobe o seu olhar conforme Pascal vai subindo no poste, sem jamais revelar ao espectador o que o garoto viu lá no alto. Não há nem haverá qualquer corte. Quando o menino finalmente chega ao alto, estende o corpo e o braço, alcançando um balão vermelho que estava enroscado pelo seu cordão no topo do poste.
Pascal desce e segue o seu caminho, carregando seu novo achado. Qualquer corte no meio desta cena estragaria irremediavelmente seu potencial artístico. E o fato de o balão só ser revelado ao espectador no momento exato em que o menino o alcança com os dedos contribui magnificamente para a surpresa, para o valor da descoberta, para a curiosidade e o poder da imaginação que tanto fazem parte do universo infantil e que o filme consegue despertar na alma do espectador utilizando de um mero plano-sequência. Os maiores resultados estéticos de um filme são atingidos com uma sabedoria tão simples...
O Balão Vermelho renova em nós a capacidade da visão poética, especificamente a visão da criança. Renova em nós o gosto pela novidade, pelo fantástico cotidiano (ou cotidiano fantástico), a descoberta da própria vida e do mundo (e de coisas além), com todas as suas doses de prazer e de dor, de conforto e de perigo, principalmente. Os perigos mais essenciais, que não se reduzem à “questão social” ou psicológica. São os perigos que constituem a simples questão de se estar vivo. “Viver é muito perigoso”, já dizia o jagunço Riobaldo no Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa.
Todo o filme se constrói e se apresenta dentro de uma tonalidade mítica, o simbólico mais fundamental do balão dotado de todo o brilho do vermelho do technicolor em um mundo cinzento, numa cidade anêmica. O Balão Vermelho (“Le Ballon Rouge”) é uma produção francesa de curta-metragem (34 minutos de duração) escrita e dirigida por Albert Lamorisse em 1956. Recebeu a Palma de Ouro em Cannes no mesmo ano e o Oscar de melhor roteiro original em 1957. Lamorisse é autor de uma outra fita clássica do cinema infantil, uma espécie de realismo mágico infantil (“off-Disney”, naturalmente), chamada O Cavalo Branco (1953).
Ambos os filmes foram relançados em cinemas de São Paulo no ano passado. Mas, pelo que pude ver, não há qualquer sinal ainda de lançamentos em DVD. De qualquer maneira, O Balão Vermelho conta a história de um menino (Pascal Lamorisse, filho do diretor) e seu balão, que o segue pelas ruas de Paris como se fosse um cãozinho. O final é absolutamente incontável. As situações mostradas são de uma imaginação incrível, com um poder sugestivo que só o cinema mesmo consegue obter. Extrair drama e significado a partir da simples e abjeta figura de um balãozinho vermelho exige uma dose de arte e de sensibilidade que não se vê com freqüência.
Vendo este filme, compreendemos melhor as possíveis fontes de obras tão únicas quanto Wall.E (EUA, 2008). Estamos falando aqui de algo que foge completamente daquelas obras pseudo-infantis (na literatura ou no cinema) que mal disfarçam as formas do mais pobre moralismo, as tentativas mais repressoras de se enquadrar (preparar) a criança para a “vida adulta”. Obras que destroem o espírito da criança fazendo dela menos do que ela é. Não é o que acontece com Lamorisse, que só tem uma preocupação: brincar. Brincar com a arte, com a imaginação, com a vida, com o mundo. O poder ilógico e criativo do sonho, da poesia; eis a chave.
André Bazin (“A Montagem Proibida”, in O Cinema: Ensaios) fala do zoomorfismo d’O Balão Vermelho. Entretanto, parece-nos que se trata mais de uma prosopopéia, no sentido que o balãozinho que vemos na tela não é transformado num animal – no que o animal tem de “irracional” e “selvagem”. Somente associamos a imagem do balão vermelho à de um fiel cachorrinho na medida em que costumamos enxergar esse animal como “o melhor amigo do homem”. Dotamos nossos animais de estimação de um caráter específico e atribuímo-lhes comportamentos que nada mais são, na verdade, do que espelho de nossas próprias almas.
Daí a prosopopéia, a personificação, o repositório mais arcaico dos nossos mitos e arquétipos essenciais. Por isso, o balão de Lamorisse está mais para uma antropomorfização simbólica, na medida em que o dotamos de uma “personalidade” significante. O amor que o balão tem pelo garoto é o nosso próprio amor, que transferimos aos animais e objetos para que estes nos devolvam numa relação com o outro cuja função é simbolizar a relação de nós conosco mesmos. A imaginação simbólica exercitada a partir de uma realidade prenhe de magia latente, o realismo mágico. Eis a arte sublime.
Considerando a pura experiência cinematográfica, O Balão Vermelho será uma verdadeira aula, uma apresentação do que é a arte das imagens (e sons) em movimento. A começar pela música tema, composta por Maurice Leroux e absolutamente inesquecível. A emoção, sutil e sublime, evocada pela música logo nos créditos iniciais já nos transporta com carinho e afeição e nos coloca exatamente no centro do universo que virá a seguir, com o próprio filme. Mas as maiores qualidades desta película estão na fotografia. Em primeiro lugar, a sua qualidade cromática: o fortíssimo contraste entre o vermelho do balão e o cinzento do mundo ao redor – com todas as implicações simbólicas, conforme já discutimos.
Em segundo lugar, a composição dos planos no filme apresenta as grandes qualidades pictóricas, fotogênicas, etc, dos maiores fotógrafos franceses. O diretor de fotografia Edmond Séchan aproveitou o rigor e a sensibilidade plástica de Willy Ronis (1910) e os misturou ao senso do “instante decisivo” que é a assinatura estética de Henri Cartier-Bresson (1908-2004), talvez o maior fotógrafo de todos os tempos. Cada fotograma de O Balão Vermelho evoca o rigor e o humanismo, o aspecto do eterno e do passageiro, o insólito e o banal, que habitam a pintura do Renascimento ao Impressionismo.
Bazin, no mesmo ensaio supra citado, faz um elogio da fita de Lamorisse pelo que a riqueza cinematográfica nela não depende da montagem, defendendo com isso a tese de que a montagem não é o velho e tão buscado “específico cinematográfico”, a montagem não é o supra-sumo da arte do cinema. Há uma cena, logo no início do filme, que mostra bem isso. Encerramos este texto com ela, procurando sugerir no leitor o valor único da experiência cinematográfica que ela proporciona (o ponto máximo da aula de cinema do Professor Lamorisse). Vemos o menino descendo por uma escadaria nas ruas de Paris, indo para a escola.
A câmera está colocada pouco mais à frente dele, poucos degraus mais abaixo. Então, o garoto Pascal, ao se aproximar de um poste de luz, tem a sua atenção desviada para cima, para onde imaginamos eu esteja a lâmpada do poste. Ele pára. Começa a escalar o poste, devagar e com cuidado, enquanto a câmera se mantém fixa no corpo do personagem: sem sair do nível do chão, a câmera sobe o seu olhar conforme Pascal vai subindo no poste, sem jamais revelar ao espectador o que o garoto viu lá no alto. Não há nem haverá qualquer corte. Quando o menino finalmente chega ao alto, estende o corpo e o braço, alcançando um balão vermelho que estava enroscado pelo seu cordão no topo do poste.
Pascal desce e segue o seu caminho, carregando seu novo achado. Qualquer corte no meio desta cena estragaria irremediavelmente seu potencial artístico. E o fato de o balão só ser revelado ao espectador no momento exato em que o menino o alcança com os dedos contribui magnificamente para a surpresa, para o valor da descoberta, para a curiosidade e o poder da imaginação que tanto fazem parte do universo infantil e que o filme consegue despertar na alma do espectador utilizando de um mero plano-sequência. Os maiores resultados estéticos de um filme são atingidos com uma sabedoria tão simples...
3 comentários:
Que "inveja" do seu texto sobre o filme...´Mas é uma daquelas "invejas" que emocionam a gente. Parabéns pela sua tradução desse inesquecível filme. Abraço,
Gilberto
Muito obridado, meu caro!
"O Balão Vermelho" é um daqueles filmes que a gente carrega pela vida... Falar dele não é fácil, porque falar dele é falar de nós mesmos...
Comovente a sua sutileza no uso das palavras para expressar tal obra. Lindo! Tudo tão docemente belo como a infância...
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