Se entendermos como barbárie a degradação sistemática daquela parcela de nossas almas que nos torna sensíveis ao que esta humanidade já produziu de melhor e de pior, então ficará difícil pensar num antídoto maior para um tão medonho veneno do que a Arte. A oposição que se deve fazer não é sequer em relação àquelas mentalidades que desinfetam a arte como “perfumaria”. E sim, em relação aos connaisseurs esnobes que cercam inescrupulosamente os mais tenros frutos do Belo, empossando-se deles como seus latifúndios pessoais.
E com que suposto direito eles fazem isso? Seus advogados perversos são coisas como: erudição, educação acadêmica, talento, inteligência, dentre outros medalhões que lhes compram a autoridade para dizerem-se homens sensíveis e verdadeiros amantes das belas artes, com o prejuízo de todos os outros que ficam do lado de fora de suas torres obscenas de marfim. A bem da verdade, não sabemos quem é pior: se aqueles que desprezam e não desperdiçam qualquer oportunidade de reprimir a produção artística ou destruir em escala industrial os seus rebentos, ou se aqueles outros que se apossam dos bens artísticos, acumulando-os para a ostentação da sua própria soberba inapropriada.
O que você prefere, leitor artista? Que as suas preciosas obras sejam queimadas em fogueira de praça pública por altivos fanáticos, ou saqueadas e escondidas ostensivamente nas indiferentes paredes de salões privados por não menos altivos “apreciadores”? Esta é apenas uma parcela das coisas a que somos levados a pensar graças a esta obra-prima de John Frankenheimer, denominada O Trem (“The Train”, EUA / França / Itália, 1964).
Poucas vezes o cinema norte-americano clássico, com sua decupagem transparente e seu processo de identificação / catarse, atingiu a quase perfeição narrativa – seja em termos literários (construção dos personagens, desenrolar dos acontecimentos), seja nos aspectos propriamente cinematográficos (a tão aludida mise en scène). Quem achar que o Bastardos Inglórios (2009), de Quentin Tarantino, é um bom tributo aos thrillers sobre a II Guerra Mundial (parece que este diretor só sabe fazer “tributos” mesmo), faça um favor a si mesmo e divirta-se – muito mais – com Frankenheimer.
O Trem nos mostra um fanático oficial nazista (é um pleonasmo dizer isso, não?), chamado Von Waldheim (virtuosamente encarnado pelo ator shakespeariano Paul Scofield, numa performance que lembra a de Christoph Waltz na película de Tarantino – uma das poucas coisas boas daquela), que saqueia uma coleção de pinturas modernas de um museu parisiense (incluindo obras famosas de Picasso, Renoir, Gaughin, Degas). Von Waldheim lamenta ser o único no 3º Reich que aprecia arte “degenerada” e está inquestionavelmente determinado a levar os quadros para Berlin de trem, usando para convencer seus correligionários o argumento de que valem uma fortuna em dinheiro.
Seu incansável oponente é o Sr. Labiche (Burt Lancaster), um funcionário “simplório” da companhia ferroviária e ativo membro – logicamente – da resistência. Em princípio, este não dá muita atenção aos quadros – quando muito, exploda-se o trem. Mas, vendo o empenho – e o sacrifício – de seus companheiros em salvar o “tesouro nacional” da França, Labiche decide-se a empregar dos mais engenhosos meios necessários para impedir que o trem passe pela fronteira, sem danificá-lo excessivamente. Mas estamos no final da guerra, e espera-se a chegada das tropas aliadas para os próximos dias.
Von Waldheim não é o bárbaro que põe fogo à arte “degenerada”. Ele pertence ao grupo dos bárbaros “connaisseurs”, como explicamos mais atrás. Sua visão e atitude não diferem muito das que vemos muitas vezes por aí, hoje em dia mesmo. Basta nos lembrarmos de reportagem publicada recentemente na Folha de S. Paulo (28/02/2010), que denuncia colecionadores particulares que se apossam ou compram por miséria pedaços de muros, portões, etc., que contenham trabalhos em grafite de artistas prestigiados, levando-os do espaço público para o privado.
E muitos desses “apreciadores” acham que não estão fazendo mal algum; acreditam até que estão fazendo bem em “preservar” as obras das intempéries atmosféricas e sociais, posando orgulhosamente para as fotos do jornal. Trata-se do mesmíssimo argumento ostentado por Von Waldheim, que não admite perder a batalha para o “ignorante” Labiche. Enfim, todo o filme é pensado e construído com base nesse tour de force épico entre a arte e a barbárie. Frankenheimer domina como poucos a força expressiva e narrativa da imagem em movimento. E isso é cinema. Mais nada.
A primeira sequência já atesta. Vemos em primeiro plano uma placa anunciando um museu de arte francês ocupado pelas forças nazistas – com direito ao logotipo da águia e da suástica. Logo em seguida, um movimento da câmera que se afasta terminará por enquadrar dois soldados fortemente armados, que guardam a entrada do lugar. As marcas da violência e da conspurcação são claras. Então, chega Von Waldheim e fica apreciando, na semi-escuridão, os quadros. Seu olhar é de ódio, malícia, inveja voluptuosa e desesperada incompreensão. É o olhar de um pedófilo, de um sádico.
Ele se julga superior por saber “apreciar” o Belo na Arte, mas o seu olhar contraria o seu discurso. Contrariando a curadora do museu, o oficial decide levar consigo as obras, no recuo das tropas de ocupação com a iminente chegadas dos aliados. Os quadros, então, são encaixotados, e cada caixote lembra um caixão, com o nome do pintor do lado de fora. É uma bela imagem sugestiva, que será retomada na última cena do filme: cada quadro é como um corpo, como um indivíduo barbarizado pelo 3º Reich. O ser humano e as mais altas produções do seu espírito caem ambos vítimas da mesma fúria cega que não reconhece a sua dignidade.
Eis o grande valor da imagem no cinema. Mostrar a coisa em si, na expressão tocante de sua plena realidade denotativa (os corpos caídos, os caixotes-caixões); e mostrar essa mesma coisa como tendo um aspecto que vai além de sua realidade material aparente, remetendo a um caráter mais abstrato, de modo conotativo: o valor da coisa em si e o valor de sua transcendência. Eis a imagem totalizante. Esse é o aspecto talvez privilegiado da representação cinematográfica.
Em outro momento do filme, Frankenheimer utiliza com grande sutileza uma referência ao cinema clássico francês, como arma da sensibilidade e da arte humanas contra o horror. A primeira reunião da resistência francesa, com a participação de Labiche e que definirá os planos contra o trem de Von Waldheim, acontece num barco idêntico ao de O Atalante (França, 1934), obra-prima de Jean Vigo, filho do militante anarquista Miguel Almereyda e cineasta da liberdade, do surrealismo e do jouie de vivre francês, como o atesta também a película Zero de Conduta (1933).
Durante essa mesma reunião, os personagens (a maioria trabalhadores da ferrovia) fazem referência a um colega maquinista, também resistente, chamado Papa Boule. Este será o condutor do trem com os quadros, no primeiro trecho de seu percurso. Acontece que Papa Boule é interpretado por Michel Simon, que possui em seu currículo o simpático, leal e heroico marujo (Père Jules) de O Atalante. Mais uma vez, esqueça-se Tarantino e similares. Isto aqui sim é que é tributo, um jogo de citações, referências, influências e intertextualidades altamente significativo, vivo, organicamente ligado aos conteúdos do filme.
É por isso que O Trem é um grande filme. É um filme com doses boas de gênero (ação, guerra, thriller) muito bem trabalhadas e boas doses autorais, também muito bem trabalhadas. Sobretudo, é um filme que leva em conta a história do cinema (não que isso seja rigorosamente necessário), mas o faz criativamente, sem cair submisso à frivolidade das citações, das entrelinhas. A referência a Vigo mostra, neste caso específico, que Frankenheimer tem o que dizer e sabe fazê-lo. Hoje em dia, o único que talvez tenha condições, em Hollywood, de fazer um remake de O Trem, ou fazer um filme que lhe seja à altura é Martin Scorsese. Sonhemos.
E com que suposto direito eles fazem isso? Seus advogados perversos são coisas como: erudição, educação acadêmica, talento, inteligência, dentre outros medalhões que lhes compram a autoridade para dizerem-se homens sensíveis e verdadeiros amantes das belas artes, com o prejuízo de todos os outros que ficam do lado de fora de suas torres obscenas de marfim. A bem da verdade, não sabemos quem é pior: se aqueles que desprezam e não desperdiçam qualquer oportunidade de reprimir a produção artística ou destruir em escala industrial os seus rebentos, ou se aqueles outros que se apossam dos bens artísticos, acumulando-os para a ostentação da sua própria soberba inapropriada.
O que você prefere, leitor artista? Que as suas preciosas obras sejam queimadas em fogueira de praça pública por altivos fanáticos, ou saqueadas e escondidas ostensivamente nas indiferentes paredes de salões privados por não menos altivos “apreciadores”? Esta é apenas uma parcela das coisas a que somos levados a pensar graças a esta obra-prima de John Frankenheimer, denominada O Trem (“The Train”, EUA / França / Itália, 1964).
Poucas vezes o cinema norte-americano clássico, com sua decupagem transparente e seu processo de identificação / catarse, atingiu a quase perfeição narrativa – seja em termos literários (construção dos personagens, desenrolar dos acontecimentos), seja nos aspectos propriamente cinematográficos (a tão aludida mise en scène). Quem achar que o Bastardos Inglórios (2009), de Quentin Tarantino, é um bom tributo aos thrillers sobre a II Guerra Mundial (parece que este diretor só sabe fazer “tributos” mesmo), faça um favor a si mesmo e divirta-se – muito mais – com Frankenheimer.
O Trem nos mostra um fanático oficial nazista (é um pleonasmo dizer isso, não?), chamado Von Waldheim (virtuosamente encarnado pelo ator shakespeariano Paul Scofield, numa performance que lembra a de Christoph Waltz na película de Tarantino – uma das poucas coisas boas daquela), que saqueia uma coleção de pinturas modernas de um museu parisiense (incluindo obras famosas de Picasso, Renoir, Gaughin, Degas). Von Waldheim lamenta ser o único no 3º Reich que aprecia arte “degenerada” e está inquestionavelmente determinado a levar os quadros para Berlin de trem, usando para convencer seus correligionários o argumento de que valem uma fortuna em dinheiro.
Seu incansável oponente é o Sr. Labiche (Burt Lancaster), um funcionário “simplório” da companhia ferroviária e ativo membro – logicamente – da resistência. Em princípio, este não dá muita atenção aos quadros – quando muito, exploda-se o trem. Mas, vendo o empenho – e o sacrifício – de seus companheiros em salvar o “tesouro nacional” da França, Labiche decide-se a empregar dos mais engenhosos meios necessários para impedir que o trem passe pela fronteira, sem danificá-lo excessivamente. Mas estamos no final da guerra, e espera-se a chegada das tropas aliadas para os próximos dias.
Von Waldheim não é o bárbaro que põe fogo à arte “degenerada”. Ele pertence ao grupo dos bárbaros “connaisseurs”, como explicamos mais atrás. Sua visão e atitude não diferem muito das que vemos muitas vezes por aí, hoje em dia mesmo. Basta nos lembrarmos de reportagem publicada recentemente na Folha de S. Paulo (28/02/2010), que denuncia colecionadores particulares que se apossam ou compram por miséria pedaços de muros, portões, etc., que contenham trabalhos em grafite de artistas prestigiados, levando-os do espaço público para o privado.
E muitos desses “apreciadores” acham que não estão fazendo mal algum; acreditam até que estão fazendo bem em “preservar” as obras das intempéries atmosféricas e sociais, posando orgulhosamente para as fotos do jornal. Trata-se do mesmíssimo argumento ostentado por Von Waldheim, que não admite perder a batalha para o “ignorante” Labiche. Enfim, todo o filme é pensado e construído com base nesse tour de force épico entre a arte e a barbárie. Frankenheimer domina como poucos a força expressiva e narrativa da imagem em movimento. E isso é cinema. Mais nada.
A primeira sequência já atesta. Vemos em primeiro plano uma placa anunciando um museu de arte francês ocupado pelas forças nazistas – com direito ao logotipo da águia e da suástica. Logo em seguida, um movimento da câmera que se afasta terminará por enquadrar dois soldados fortemente armados, que guardam a entrada do lugar. As marcas da violência e da conspurcação são claras. Então, chega Von Waldheim e fica apreciando, na semi-escuridão, os quadros. Seu olhar é de ódio, malícia, inveja voluptuosa e desesperada incompreensão. É o olhar de um pedófilo, de um sádico.
Ele se julga superior por saber “apreciar” o Belo na Arte, mas o seu olhar contraria o seu discurso. Contrariando a curadora do museu, o oficial decide levar consigo as obras, no recuo das tropas de ocupação com a iminente chegadas dos aliados. Os quadros, então, são encaixotados, e cada caixote lembra um caixão, com o nome do pintor do lado de fora. É uma bela imagem sugestiva, que será retomada na última cena do filme: cada quadro é como um corpo, como um indivíduo barbarizado pelo 3º Reich. O ser humano e as mais altas produções do seu espírito caem ambos vítimas da mesma fúria cega que não reconhece a sua dignidade.
Eis o grande valor da imagem no cinema. Mostrar a coisa em si, na expressão tocante de sua plena realidade denotativa (os corpos caídos, os caixotes-caixões); e mostrar essa mesma coisa como tendo um aspecto que vai além de sua realidade material aparente, remetendo a um caráter mais abstrato, de modo conotativo: o valor da coisa em si e o valor de sua transcendência. Eis a imagem totalizante. Esse é o aspecto talvez privilegiado da representação cinematográfica.
Em outro momento do filme, Frankenheimer utiliza com grande sutileza uma referência ao cinema clássico francês, como arma da sensibilidade e da arte humanas contra o horror. A primeira reunião da resistência francesa, com a participação de Labiche e que definirá os planos contra o trem de Von Waldheim, acontece num barco idêntico ao de O Atalante (França, 1934), obra-prima de Jean Vigo, filho do militante anarquista Miguel Almereyda e cineasta da liberdade, do surrealismo e do jouie de vivre francês, como o atesta também a película Zero de Conduta (1933).
Durante essa mesma reunião, os personagens (a maioria trabalhadores da ferrovia) fazem referência a um colega maquinista, também resistente, chamado Papa Boule. Este será o condutor do trem com os quadros, no primeiro trecho de seu percurso. Acontece que Papa Boule é interpretado por Michel Simon, que possui em seu currículo o simpático, leal e heroico marujo (Père Jules) de O Atalante. Mais uma vez, esqueça-se Tarantino e similares. Isto aqui sim é que é tributo, um jogo de citações, referências, influências e intertextualidades altamente significativo, vivo, organicamente ligado aos conteúdos do filme.
É por isso que O Trem é um grande filme. É um filme com doses boas de gênero (ação, guerra, thriller) muito bem trabalhadas e boas doses autorais, também muito bem trabalhadas. Sobretudo, é um filme que leva em conta a história do cinema (não que isso seja rigorosamente necessário), mas o faz criativamente, sem cair submisso à frivolidade das citações, das entrelinhas. A referência a Vigo mostra, neste caso específico, que Frankenheimer tem o que dizer e sabe fazê-lo. Hoje em dia, o único que talvez tenha condições, em Hollywood, de fazer um remake de O Trem, ou fazer um filme que lhe seja à altura é Martin Scorsese. Sonhemos.
5 comentários:
Andre´, parece que você tem um certo apreço pela escola de Frankfurt.
Rs rs
Escola de Frankfurt não...
Mas tenho muito carinho por um livro de Adorno (Educação e Emancipação, principalmente o ensaio Educação Após Auschwitz) e por alguns escritos de Benjamin...
Caro amigo,
Belo texto!
Este, confesso, eu não conhecia.
Obrigado, companheiro!
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