Durante o século XIX, houve um costume sinistro: algumas famílias tiravam fotografias dos seus mortos, pouco após a hora derradeira, vestidos como costumavam se vestir e colocados em posições bem cotidianas, como se estivessem vivos e “posando”. Tais retratos eram emoldurados e expostos junto à mobília do lar. O procedimento era aplicado a parentes de todas as idades, inclusive crianças. Pois bem. George A. Romero demonstra, mais uma vez, a agudeza do seu pensamento colocado nos filmes, ao incorporar uma referência imagética e dramática a tal hábito em seu mais novo capítulo da saga dos mortos-vivos: Ilha dos Mortos (“Survival of the Dead”, EUA, 2009).
As questões familiares sempre estiveram presentes nas histórias de zumbis do diretor, desde o seminal A Noite dos Mortos-Vivos (“Night of the Living Dead”, 1968). O drama de se ter os entes mais queridos transformados em carniças antropófagas, e o que fazer em relação a isso – leia-se: matar ou ser morto –, comparece em todos os 6 filmes da cinessérie. Mas o que realmente interessa não é tanto a fantasia em si – que pode soar até um pouco ridícula –, perto do significado alegórico que os “mortos” de Romero sempre tiveram. Os zumbis não passam de pretextos para discutir as relações entre afeto e memória que permeiam, acorrentam e tensionam todas as estruturas familiares.
É por este cais que devemos aportar à Ilha dos Mortos, na qual o roteirista-cineasta-produtor desenvolve a temática das relações “de sangue” ao seu ponto mais alto, se comparado aos filmes anteriores. Para George A. Romero – principalmente na cena dos retratos dos falecidos a caráter –, a memória dos mortos é algo que não conseguimos simplesmente apartar de nós, da presença quase física de nossa consciência cotidiana. A memória é algo que irremediavelmente voltará para nos morder a carne, refestelar-se em nosso sangue, sugar-nos a vida. Eis a função simbólica dos zumbis de Romero. Faz-se dramaticamente expressiva em três ou quatro cenas deste filme – pelo menos.
Os mortos aqui já não são os excluídos da ordem social (como em Terra dos Mortos – “Land of the Dead”, 2005), nem os consumidores dentro dessa mesma ordem (Despertar dos Mortos – “Dawn of the Dead”, 1978; conforme o poeta José Paulo Paes diria: consumidoidos). No final das contas, a ironia do diretor também se faz muito presente no fato de, nesta última fita (que está saindo no Brasil somente em DVD), o maior número de mortes “matadas” acontecer pelo fato de os vivos atirarem uns nos outros, movidos por suas eternas rixas. A violência sanguinolenta das mortes causadas pelos ataques zumbis são bastante anêmicas perto da agressividade psicológica e moral dos que ainda respiram.
A narrativa já começa com uma grande ironia: vemos o sargento de um grupo da guarda nacional (que se tornaram bandoleiros de estrada) falar que o maior problema pós-despertar dos mortos são os assassinatos e suicídios. Falar em homicídio (mesmo o de vivo contra vivo) numa epidemia zumbi tem tanto significado quanto julgar alguém por homicídio dentro de uma guerra (há que lembrar a também alegoria do juízo final que é o Apocalipse Now de Coppola). Também é irônico o possível subtexto vegetariano que Romero destila desta vez: os seus zumbis não atacam animais (não mesmo?).
O comentário social também se faz presente na fábula distópica que Ilha dos Mortos apresenta (versão rural da distopia urbana que víamos em Terra dos Mortos). A tal ilha e sua natureza exuberante configuram-se muito ironicamente (é o tom central em todo o discurso de Romero) como um espaço anti-idílico por excelência. Não há lugar para a nostalgia e para o naïf românticos nos contos de Romero. A figura hedionda dos cadáveres ambulantes em plena decomposição infecta e polui, irremediavelmente, todo e qualquer cenário de possível escape. Não obstante, os sobreviventes não abandonam jamais a demanda.
Mas a maior mácula da ilha não são os mortos-vivos. E sim, os vivos-mortos. Estes são representados pelos dois latifundiários que (mal) dividem o pequeno território insular. O’Flynn e Muldoon são os grandes representantes da “Améria profunda”; na verdade, encarnam quaisquer resquícios putrefatos de sociedades tradicionais e patriarcais que ainda sobrevivem, à moda zumbi, no mundo contemporâneo. Desse modo, a ilha, longe de se apresentar como uma novíssima “Shangri-Lá”, está mais para um descabido e risível entrave arcaico-colonial numa civilização moribunda.
Agora, o melhor de tudo é que o Romero artista sabe que cinema é discurso, que se realiza segundo convenções de gênero, as quais, por sua vez, dialogam com as condições sociais em que se produzem os filmes, ou que emprestam a estes os temas. Assim, qual a maneira mais adequada de se mostrar, dramaticamente, os conflitos entre a família O’Flynn e a família Muldoon que não seja acionando os elementos constitutivos do western? Eis a mais recente sacada de George Andrew Romero: fazer um faroeste zumbi; o seu próprio “Gunfight at ‘Zombie’ Corral” (lembremos o clássico Sem Lei e Sem Alma – “Gunfight at O.K. Corral”, 1957, de John Sturges). Que o mostre para nós a incrível sequência final deste Ilha dos Mortos.
As questões familiares sempre estiveram presentes nas histórias de zumbis do diretor, desde o seminal A Noite dos Mortos-Vivos (“Night of the Living Dead”, 1968). O drama de se ter os entes mais queridos transformados em carniças antropófagas, e o que fazer em relação a isso – leia-se: matar ou ser morto –, comparece em todos os 6 filmes da cinessérie. Mas o que realmente interessa não é tanto a fantasia em si – que pode soar até um pouco ridícula –, perto do significado alegórico que os “mortos” de Romero sempre tiveram. Os zumbis não passam de pretextos para discutir as relações entre afeto e memória que permeiam, acorrentam e tensionam todas as estruturas familiares.
É por este cais que devemos aportar à Ilha dos Mortos, na qual o roteirista-cineasta-produtor desenvolve a temática das relações “de sangue” ao seu ponto mais alto, se comparado aos filmes anteriores. Para George A. Romero – principalmente na cena dos retratos dos falecidos a caráter –, a memória dos mortos é algo que não conseguimos simplesmente apartar de nós, da presença quase física de nossa consciência cotidiana. A memória é algo que irremediavelmente voltará para nos morder a carne, refestelar-se em nosso sangue, sugar-nos a vida. Eis a função simbólica dos zumbis de Romero. Faz-se dramaticamente expressiva em três ou quatro cenas deste filme – pelo menos.
Os mortos aqui já não são os excluídos da ordem social (como em Terra dos Mortos – “Land of the Dead”, 2005), nem os consumidores dentro dessa mesma ordem (Despertar dos Mortos – “Dawn of the Dead”, 1978; conforme o poeta José Paulo Paes diria: consumidoidos). No final das contas, a ironia do diretor também se faz muito presente no fato de, nesta última fita (que está saindo no Brasil somente em DVD), o maior número de mortes “matadas” acontecer pelo fato de os vivos atirarem uns nos outros, movidos por suas eternas rixas. A violência sanguinolenta das mortes causadas pelos ataques zumbis são bastante anêmicas perto da agressividade psicológica e moral dos que ainda respiram.
A narrativa já começa com uma grande ironia: vemos o sargento de um grupo da guarda nacional (que se tornaram bandoleiros de estrada) falar que o maior problema pós-despertar dos mortos são os assassinatos e suicídios. Falar em homicídio (mesmo o de vivo contra vivo) numa epidemia zumbi tem tanto significado quanto julgar alguém por homicídio dentro de uma guerra (há que lembrar a também alegoria do juízo final que é o Apocalipse Now de Coppola). Também é irônico o possível subtexto vegetariano que Romero destila desta vez: os seus zumbis não atacam animais (não mesmo?).
O comentário social também se faz presente na fábula distópica que Ilha dos Mortos apresenta (versão rural da distopia urbana que víamos em Terra dos Mortos). A tal ilha e sua natureza exuberante configuram-se muito ironicamente (é o tom central em todo o discurso de Romero) como um espaço anti-idílico por excelência. Não há lugar para a nostalgia e para o naïf românticos nos contos de Romero. A figura hedionda dos cadáveres ambulantes em plena decomposição infecta e polui, irremediavelmente, todo e qualquer cenário de possível escape. Não obstante, os sobreviventes não abandonam jamais a demanda.
Mas a maior mácula da ilha não são os mortos-vivos. E sim, os vivos-mortos. Estes são representados pelos dois latifundiários que (mal) dividem o pequeno território insular. O’Flynn e Muldoon são os grandes representantes da “Améria profunda”; na verdade, encarnam quaisquer resquícios putrefatos de sociedades tradicionais e patriarcais que ainda sobrevivem, à moda zumbi, no mundo contemporâneo. Desse modo, a ilha, longe de se apresentar como uma novíssima “Shangri-Lá”, está mais para um descabido e risível entrave arcaico-colonial numa civilização moribunda.
Agora, o melhor de tudo é que o Romero artista sabe que cinema é discurso, que se realiza segundo convenções de gênero, as quais, por sua vez, dialogam com as condições sociais em que se produzem os filmes, ou que emprestam a estes os temas. Assim, qual a maneira mais adequada de se mostrar, dramaticamente, os conflitos entre a família O’Flynn e a família Muldoon que não seja acionando os elementos constitutivos do western? Eis a mais recente sacada de George Andrew Romero: fazer um faroeste zumbi; o seu próprio “Gunfight at ‘Zombie’ Corral” (lembremos o clássico Sem Lei e Sem Alma – “Gunfight at O.K. Corral”, 1957, de John Sturges). Que o mostre para nós a incrível sequência final deste Ilha dos Mortos.
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