É estimulante pensar na função da narrativa em O Leitor (“The Reader”, EUA / Alemanha, 2008, dir.: Stephen Daldry). Não só a narrativa do filme enquanto discurso, ou a narrativa do romance (da autoria de Bernhard Schilnk, recém-lançado no Brasil pela Editora Record) no qual o roteiro de David Hare (As Horas – 2004) se baseou. Falo da função psíquica- sócio-mítica das múltiplas narrativas que se realizam e se entrecruzam neste filme. O filósofo alemão Walter Benjamin reflete de maneira bastante crítica sobre a decadência da experiência coletiva dentro do regime capitalista.
No modo de vida “fordista” da era industrial, o indivíduo é transformado em um autômato, condenado a repetir solitariamente os mesmos gestos, já esvaziados de qualquer significação (pelo menos, no âmbito de sua própria consciência). Para Benjamin, ao exilar o indivíduo das trocas humanas da coletividade (e do seu próprio conhecimento), o capitalismo arranca dele a sua própria história – uma vez que esta se acha sempre vinculada a uma tradição. Desmantelado o coletivo, desaparecerá do indivíduo a capacidade de narrar, pois a narrativa supõe uma experiência em comum (o contato e as vivências comuns entre o “contador” e o ouvinte).
Extinta a narrativa – grande elo de ligação entre a dimensão individual e a coletiva da vida e da história – extinguir-se-á também a faculdade da memória. A dissociação entre as pessoas e o seu próprio patrimônio cultural é o princípio do nascimento da barbárie, ainda segundo o filósofo. É por aí que começamos a compreender a natureza da “culpa” de todos nós, segundo o curto e tão inflamado discurso do jovem estudante companheiro do protagonista Michael Berg, no filme de Daldry. É por aí também que devemos analisar o fato de a proletária e analfabeta Hanna Schmitz ter tomado parte na barbárie, mesmo sem revelar dentro de si qualquer sinal de uma personalidade sádica, doentia, ou o que quer que seja.
E também sem revelar qualquer sinal de concordância ideológica com o regime vigente (muito provavelmente, ela mal saberia explicar qual era a proposta político-ideológica do partido “nacional-socialista”). Perceba-se que este caso, que se enquadra bem dentro daquele dos autômatos da era industrial de que fala Benjamin, vítimas e autores da barbárie a um só tempo e que se encontram particularmente dentre as classes proletárias, este caso é bem diferente dos oficiais que em Nuremberg alegavam que apenas “cumpriam ordens”. O pragmatismo das ações “criminosas” de Hanna Schmitz, conforme ela as explica aos juízes em seu próprio julgamento, condiz antes com uma visão – digamos – “fordista” do seu trabalho do que com qualquer princípio de “maldade”, psicológica, social ou filosófica.
Hanna é antes uma ingênua, “alienada” – para colocar em termos sociológicos –, do que propriamente “nazista”. Assim como muitos dos trabalhadores do nosso tempo, estejam eles nas fábricas, nos escritórios, nas escolas, hospitais, etc. Agora, a pergunta que surgirá é: mas será que nossos trabalhadores seriam capazes de assassinar? E alguém quer fazer o teste? Ou seja, oferecendo de novo todas as condições para o estabelecimento social e político da barbárie? Hanna Schmitz é o paradigma do indivíduo desvinculado de uma coletividade significativa; conseqüentemente, desvinculado de si mesmo, sem memória, sem história e sem a capacidade de narrar.
Quem é ela, exatamente? O filme só nos revela sua pseudo-história da pseudo-coletividade do capitalismo na barbárie; ou seja, ela era funcionária de uma grande corporação que decidiu alistar-se na SS em busca de melhores condições profissionais. Mas qual é a sua família? Qual a sua história pessoal, história de vida? Há um grande vazio. Não se trata de uma lacuna não-preenchida pelo filme, mas de um vácuo mesmo, rigorosamente calculado pelo roteirista (ou pelo romancista). Simbolicamente, ela não tem vida, família ou história. E seu analfabetismo simboliza a sua carência narrativa. Tais indivíduos são o primeiro efeito da barbárie, estão dentre os seus primeiros sinais; e a barbárie retirará o mais de sua força e eficácia de indivíduos nessas condições.
Contudo, a barbárie jamais poderá arrancar das pessoas a própria carência de narrativas, o desejo, a necessidade, a mera intuição de que há dimensões transcendentes ao indivíduo que precisam ser exploradas. E é nesse campo que o filme se impõe, como discurso narrativo e tomada de posição em relação aos fatos. Comecemos pela necessidade da própria Hanna, que fará com que suas cativas (no campo de concentração) e, posteriormente, com que o próprio Michael Berg leia para ela toda a sorte de literaturas. Sentimos nela uma ânsia curiosa quase infantil de conhecer e descobrir tudo o que é novo – e o que é novo para ela é praticamente tudo, em termos de história das experiências humanas, desde a Odisséia de Homero até O Amante de Lady Chatterley de D. H. Lawrence, passando por obras infantis.
As leituras que as cativas e o jovem Sr. Berg faziam à Hanna são a maior, mais bela e eficiente arma que este filme oferece contra a barbárie. Perceba-se o como que o elemento de humanidade revelado aí não serve (não deve servir) para atenuar a culpa de Hanna, mas tal humanidade é a única coisa capaz de prevenir ou curar a barbárie, impedindo assim para sempre que surjam novas “Hannas”. Naturalmente, a vítima mais imediata de Hanna, sobrevivente ao holocausto, não compreenderá tal dimensão dos fatos e das pessoas – nem é o caso mesmo de que ela compreenda. Por isso, é muito forte, bela e significativa a cena em que o Sr. Berg tenta, em vão, explicar à antiga vítima quem era, na verdade, Hanna – logicamente, sem qualquer tentativa de inocentá-la.
É mais forte, bela e significativa ainda a reação emocional de Berg a esse fato, sua angústia, uma angústia que ninguém mais poderá entender. Assim, dentro da função política e moral que a narrativa exerce neste filme, temos as narrativas que eram lidas para Hanna Schmitz, aprendizado de sua humanidade. Em contraste, há o livro de memórias de uma sobrevivente do holocausto, vítima imediata de Hanna (o qual será usado em sua acusação). Tal livro é a eternização da memória, a constante presentificação do passado, para que a barbárie nunca mais volte a acontecer (Benjamin). No final, haverá a narrativa do próprio Sr. Berg – que, no entanto, já aparece desde o começo e constitui a maior parte do filme, nos “flashbacks” de sua memória afetiva.
A última cena é exemplar: Michael Berg, já um homem de meia-idade, começando a contar a sua história com Hanna Schmitz para a filha adolescente. É a maravilhosa função redentora da narrativa; externar, expressar a memória a um outro, construindo e mantendo com isso uma coletividade significativa – mesmo que seja apenas, em princípio, a da estrutura familiar. O protagonista, dessa maneira, livra-se do peso individual da memória e da experiência humana, compartilhando-a com outros (sua filha e também com a antiga vítima de Hanna), dando a outros algo que é, na verdade coletivo. O Sr. Berg, assim, também se põe significativamente na dimensão da coletividade, o que fará por completar a sua própria realização enquanto indivíduo. Se no começo do filme, ele é um homem atormentado pelo passado, no final a situação se transfigurará. Mais uma lição contra a barbárie.
No modo de vida “fordista” da era industrial, o indivíduo é transformado em um autômato, condenado a repetir solitariamente os mesmos gestos, já esvaziados de qualquer significação (pelo menos, no âmbito de sua própria consciência). Para Benjamin, ao exilar o indivíduo das trocas humanas da coletividade (e do seu próprio conhecimento), o capitalismo arranca dele a sua própria história – uma vez que esta se acha sempre vinculada a uma tradição. Desmantelado o coletivo, desaparecerá do indivíduo a capacidade de narrar, pois a narrativa supõe uma experiência em comum (o contato e as vivências comuns entre o “contador” e o ouvinte).
Extinta a narrativa – grande elo de ligação entre a dimensão individual e a coletiva da vida e da história – extinguir-se-á também a faculdade da memória. A dissociação entre as pessoas e o seu próprio patrimônio cultural é o princípio do nascimento da barbárie, ainda segundo o filósofo. É por aí que começamos a compreender a natureza da “culpa” de todos nós, segundo o curto e tão inflamado discurso do jovem estudante companheiro do protagonista Michael Berg, no filme de Daldry. É por aí também que devemos analisar o fato de a proletária e analfabeta Hanna Schmitz ter tomado parte na barbárie, mesmo sem revelar dentro de si qualquer sinal de uma personalidade sádica, doentia, ou o que quer que seja.
E também sem revelar qualquer sinal de concordância ideológica com o regime vigente (muito provavelmente, ela mal saberia explicar qual era a proposta político-ideológica do partido “nacional-socialista”). Perceba-se que este caso, que se enquadra bem dentro daquele dos autômatos da era industrial de que fala Benjamin, vítimas e autores da barbárie a um só tempo e que se encontram particularmente dentre as classes proletárias, este caso é bem diferente dos oficiais que em Nuremberg alegavam que apenas “cumpriam ordens”. O pragmatismo das ações “criminosas” de Hanna Schmitz, conforme ela as explica aos juízes em seu próprio julgamento, condiz antes com uma visão – digamos – “fordista” do seu trabalho do que com qualquer princípio de “maldade”, psicológica, social ou filosófica.
Hanna é antes uma ingênua, “alienada” – para colocar em termos sociológicos –, do que propriamente “nazista”. Assim como muitos dos trabalhadores do nosso tempo, estejam eles nas fábricas, nos escritórios, nas escolas, hospitais, etc. Agora, a pergunta que surgirá é: mas será que nossos trabalhadores seriam capazes de assassinar? E alguém quer fazer o teste? Ou seja, oferecendo de novo todas as condições para o estabelecimento social e político da barbárie? Hanna Schmitz é o paradigma do indivíduo desvinculado de uma coletividade significativa; conseqüentemente, desvinculado de si mesmo, sem memória, sem história e sem a capacidade de narrar.
Quem é ela, exatamente? O filme só nos revela sua pseudo-história da pseudo-coletividade do capitalismo na barbárie; ou seja, ela era funcionária de uma grande corporação que decidiu alistar-se na SS em busca de melhores condições profissionais. Mas qual é a sua família? Qual a sua história pessoal, história de vida? Há um grande vazio. Não se trata de uma lacuna não-preenchida pelo filme, mas de um vácuo mesmo, rigorosamente calculado pelo roteirista (ou pelo romancista). Simbolicamente, ela não tem vida, família ou história. E seu analfabetismo simboliza a sua carência narrativa. Tais indivíduos são o primeiro efeito da barbárie, estão dentre os seus primeiros sinais; e a barbárie retirará o mais de sua força e eficácia de indivíduos nessas condições.
Contudo, a barbárie jamais poderá arrancar das pessoas a própria carência de narrativas, o desejo, a necessidade, a mera intuição de que há dimensões transcendentes ao indivíduo que precisam ser exploradas. E é nesse campo que o filme se impõe, como discurso narrativo e tomada de posição em relação aos fatos. Comecemos pela necessidade da própria Hanna, que fará com que suas cativas (no campo de concentração) e, posteriormente, com que o próprio Michael Berg leia para ela toda a sorte de literaturas. Sentimos nela uma ânsia curiosa quase infantil de conhecer e descobrir tudo o que é novo – e o que é novo para ela é praticamente tudo, em termos de história das experiências humanas, desde a Odisséia de Homero até O Amante de Lady Chatterley de D. H. Lawrence, passando por obras infantis.
As leituras que as cativas e o jovem Sr. Berg faziam à Hanna são a maior, mais bela e eficiente arma que este filme oferece contra a barbárie. Perceba-se o como que o elemento de humanidade revelado aí não serve (não deve servir) para atenuar a culpa de Hanna, mas tal humanidade é a única coisa capaz de prevenir ou curar a barbárie, impedindo assim para sempre que surjam novas “Hannas”. Naturalmente, a vítima mais imediata de Hanna, sobrevivente ao holocausto, não compreenderá tal dimensão dos fatos e das pessoas – nem é o caso mesmo de que ela compreenda. Por isso, é muito forte, bela e significativa a cena em que o Sr. Berg tenta, em vão, explicar à antiga vítima quem era, na verdade, Hanna – logicamente, sem qualquer tentativa de inocentá-la.
É mais forte, bela e significativa ainda a reação emocional de Berg a esse fato, sua angústia, uma angústia que ninguém mais poderá entender. Assim, dentro da função política e moral que a narrativa exerce neste filme, temos as narrativas que eram lidas para Hanna Schmitz, aprendizado de sua humanidade. Em contraste, há o livro de memórias de uma sobrevivente do holocausto, vítima imediata de Hanna (o qual será usado em sua acusação). Tal livro é a eternização da memória, a constante presentificação do passado, para que a barbárie nunca mais volte a acontecer (Benjamin). No final, haverá a narrativa do próprio Sr. Berg – que, no entanto, já aparece desde o começo e constitui a maior parte do filme, nos “flashbacks” de sua memória afetiva.
A última cena é exemplar: Michael Berg, já um homem de meia-idade, começando a contar a sua história com Hanna Schmitz para a filha adolescente. É a maravilhosa função redentora da narrativa; externar, expressar a memória a um outro, construindo e mantendo com isso uma coletividade significativa – mesmo que seja apenas, em princípio, a da estrutura familiar. O protagonista, dessa maneira, livra-se do peso individual da memória e da experiência humana, compartilhando-a com outros (sua filha e também com a antiga vítima de Hanna), dando a outros algo que é, na verdade coletivo. O Sr. Berg, assim, também se põe significativamente na dimensão da coletividade, o que fará por completar a sua própria realização enquanto indivíduo. Se no começo do filme, ele é um homem atormentado pelo passado, no final a situação se transfigurará. Mais uma lição contra a barbárie.
5 comentários:
Goso bastante de "O Leitor". É mais um acerto na exemplar carreira de Stephen Daldry.
* gosto
foi parecido com o que comentei sobre esse filme. hanna é uma mulher que arrumou um emprego e cumpria ordens. era uma boa funcionária. conheço várias pessoas que por falta de oportunidade de trabalho tb seriam boas funcionárias sem questionar as ordens. isso não as exime de suas responsabilidades. mas ser esses peões a assumirem a responsabilidade de seus contratantes é muito estranho. beijos, pedrita
Essas questões de vínculos e responsabilidades empregatícias merecem mesmo toda a discussão, já que estão na base dos horrores nazistas e continuam por aí com grande força até hoje, Pedrita. Muita gente que eu também conheço não pensaria duas vezes em aceitar um trabalho qualquer na Souza Cruz, por exemplo... É claro que os nossos exemplos não são tão drásticos como as coisas que acontecem no filme, mas é por aí que começa...
Estupenda sua análise. E concordo muitíssimo. Eu adorei o filme, ainda que apresente suas falhas. O discurso do filme é magnífico.
Ciao!
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